A domesticarização no mundo do trabalho

Fotografia: Pablo Valadares/Agência Senado

Os entregadores de alimentos e demais produtos, assim como grande parte das domésticas, não interromperam as suas atividades por ocasião da pandemia do coronavírus, demonstrando toda a crueza da domesticarização.

Marcelo Tolomei Teixeira

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 20/08/2020

Nos últimos tempos, a entrega em domicílio de mercadorias encomendadas por Internet substituindo compras, a entrega em domicílio de comida pronta acabando com a obrigação de cozinhar, o personal trainer individualizando o exercício físico, seja na academia ou nas residências, o uso dos aplicativos para utilização de transporte se tornou cada vez mais intensificado, assim como dos chamados passeadores de cachorros, já que o profissional sobrecarregado não tem tempo para tal. Sem falar do nosso tradicional trabalho doméstico – nossas diaristas ou trabalhadoras mensais.

O sociólogo francês André Gorz já denunciava, nos anos 80, que o tempo que essas atividades nos oferecem, ou seja, o tempo que nós ganhamos com a contratação de tais serviços, principalmente por parte da classe média, não é mais produtivo, mas de consumo, de conforto, que está a serviço de nossos deleites privados. Demonstra o sociólogo que essas relações de trabalho são de tipo servil (“neodomesticidade”), geralmente subqualificadas e sub-remuneradas, mas que podem representar o que ele chama de uma “jazida de empregos”.

Cabe a ressalva de que as pessoas, necessitando de trabalhar, recorrem à domesticarização (junção com terceirização, já que há um terceiro utilizado para nossas atividades domésticas ou privativas), e muitas vezes de forma dolorosa. Podemos pensar no tempo que não podem, mas que gostariam de ficar com seus filhos, e daí recorrem às babás ou serviços de creches. Por outro lado, a utilização dos carros por aplicativos barateou os gastos com transportes e abriu o leque para sua utilização até por setores mais populares.

Os entregadores de alimentos e demais produtos, assim como grande parte das domésticas, não interromperam as suas atividades por ocasião da pandemia do coronavírus, demonstrando toda a crueza da domesticarização. Tais atividades não são rigorosamente essenciais, já que em situação de guerra, como na da atual pandemia, as pessoas ou famílias deveriam cuidar de cozinhar e manter a higiene de suas casas, são, no entanto, ainda servidos…

O desenvolvimento de tais serviços só é possível em um contexto de desigualdade social crescente, onde uma parte da população açombarca as atividades bem remuneradas e constrange outra parte ao papel de serviçal. E isso vem ocorrendo no mundo todo, do Brasil aos Estados Unidos – relembrando o aumento da desigualdade social americana, que, notoriamente, possui imensos bolsões de misérias, com negros e imigrantes com ocupações subalternas.

São as chamadas produções parasitárias, de acordo com a previsão dos liberais clássicos, como Adam Smith, que tinha horror ao trabalho doméstico e acreditava que tais relações seriam cessadas, uma vez que a busca da riqueza pelos indivíduos acabaria por englobar atividades somente benéficas à sociedade, garantindo o bem-estar de todos. 

Em tempos de pandemia e mesmo pós-pandemia, com a economia retraída, a oferta de tais serviços pessoais pode ser ainda maior, com a demanda tendo ou não condições de absorver. Desesperador para tantas pessoas que se lançaram em tais trabalhos como estratégia de sobrevivência. Não obstante, estamos tendo movimentos reivindicatórios de tais trabalhadores (chamados de trabalhadores das plataformas digitais), já que as suas jornadas são extenuantes, atuam em péssimas condições de segurança, sem uma remuneração básica e, o que é pior: estão ligados a um estilo de vida sem perspectivas de ascensão profissional ou social. Curiosamente, esses trabalhadores, em suas lutas, vão adquirindo uma identidade baseada no trabalho, por mais precário e instável que sejam tais atividades.

Claro que o objeto da presente análise – a domesticarização – é apenas uma das faces maléficas de nosso mercado de trabalho, temos outras como o trabalho temporário, a terceirização e o próprio desemprego estrutural, que fazem alguns teóricos considerarem a existência de uma nova categoria: o trabalhador precarizado, que hoje trabalha, depois fica desempregado por um longo período. Muitas vezes são jovens à procura do primeiro emprego, beneficiários da recente ajuda econômica criada pelo Governo Federal, que mudam constantemente de atividades e, consequentemente, não podem usufruir de garantias dos empregos formais.

Portando, tudo clama, tudo é prelúdio, para a necessidade de se pensar em uma nova sociedade de trabalho, na qual todos trabalhassem menos e pudessem assumir mais as suas tarefas domésticas e afetivas, eliminando a pobreza e o desemprego involuntário, que jamais pode ser uma questão de responsabilidade individual como propõe o neoliberalismo. As inseguranças no mundo do trabalho resultam em doenças sociais crônicas com acidentes e doenças profissionais, vícios e suicídios, ansiedades e encarceramentos em massa.

Mudar será difícil no sistema do capital, capitaneado hoje pela política neoliberal, da competitividade e do individualismo, mas como intitula essa coluna são necessárias ocupações dignas e/ou rendas básicas para se evitar o colapso da civilização.

Marcelo Tolomei Teixeira é juiz titular da 7a Vara do Trabalho de Vitória/ES e professor universitário. Doutor em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Mestre em Filosofia do Direito pela UFSC. 

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