Reginaldo Corrêa de Moraes
Fonte: Jornal da Unicamp
Data original da publicação: 02/08/2018
Que o capitalismo se expande mundo afora, está longe de ser algo novo. O Manifesto Comunista já anunciava essa tendência inexorável. E o famoso Imperialismo, de Lenin, traçava a nova linha divisória: a exportação de capitais seguia a de mercadorias.
Mas depois da Segunda Guerra, uma fase ainda mais nova começa, com a exportação de capitais manufatureiros. Era algo um pouco diferente do que ocorrera na era de Lenin, quando a exportação de capitais ia massivamente para agricultura, mineração e infraestrutura ligada a tais atividades (transportes, geração de energia). Depois de 1945, as indústrias norte-americanas (e depois as europeias) fazem uma revoada para o exterior, montando plantas em outros países, para vender suas mercadorias a partir dessas filiais. Em parte, o ABC paulista é filho dessa onda.
Degrau por degrau, isso se transforma numa enorme escada. Com os americanos sempre liderando as “inovações”. Já em 1965, os governos do México e dos EUA deslancharam o “programa das maquiadoras”, com incentivos para a produção de componentes de automóveis, TVs, equipamento médico e assim por diante. Réplicas das montadoras automotivas eram o próximo passo. E o North American Free Trade Agreement (NAFTA, 1994) seria a cereja do bolo. Uma cadeia continental.
Esse movimento para fora – o offshore – foi crescendo. Um artigo no Wall Street Journal, em 2011, assinado por David Wessel, registra que:
“As companhias reduzem sua força de trabalho nos Estados Unidos em 2,9 milhões de cabeças durante os anos 2000s, ao mesmo tempo em que aumentam o emprego ultramar em 2,4 milhões (….) É uma grande mudança com relação aos anos 1990, quando elas adicionavam empregos em toda parte: 4,4 milhões nos Estados Unidos e 2,7 milhões no exterior. (…) No total, em 2009, as multinacionais norte-americanas empregavam em 2 21,1 milhões dentro do pais e 10,3 milhões fora, incluindo crescente numero de trabalhadores estrangeiros altamente qualificados”
O artigo de Wessel expõe um gráfico que espelha o drama. Traduzo e adapto para o leitor brasileiro:
Somemos esse movimento com a automação e a fragmentação dos grandes conglomerados, a reengenharia dos anos 1980. Daí, é possível perceber o tamanho da onda de transformações que atingiu a classe trabalhadora e, claro, seus instrumentos de formação de identidade, os sindicatos. E mais: como os sindicatos haviam se transformado em referência fundamental para o Partido Democrata, depois do New Deal, também o cenário eleitoral seria afetado.
Não foram atingidos apenas os trabalhadores da indústria – a onda desorganizadora espraiou-se para a construção civil, as usinas elétricas, os grandes centros logísticos e armazéns, os portos, as ferrovias.
O centro do movimento estava na classe operária industrial por vários motivos. Ela nunca fora a maioria da força de trabalho – em nenhum país, aliás. Mas a planta industrial era o centro de força da nova economia desde o século XIX – e o modelo de organização para o resto das atividades. Não se tem apenas uma fábrica taylorista, por exemplo – a sociedade se tayloriza. No começo do século XX, o presidente da Carnegie Foundation chegou a pedir a Taylor um estudo sobre a aplicação do seu sistema às escolas – um discípulo, Morris Llewellyn Cooke, se encarregou de montar o relatório.
O avanço da onda é claro. Em 1960, numa força de trabalho de quase 55 milhões, uns 16 milhões eram trabalhadores da manufatura (quase 30%). Em 2009, esse percentual tinha caído a uns 10%. Atenção: a manufatura era, em 1960, o setor de mais alta sindicalização no país. Isso também foi mudando drasticamente.
O crescimento do setor de serviços foi visível – 44% já em 1960; quase 70% em 2009. No meio dessas datas, em 1973, o sociólogo Daniel Bell anunciava a chegada da Sociedade Pós-Industrial. A descrição de Bell era idílica. O crescimento do terciário seria sintoma de um enorme progresso e de uma nova era, em que a riqueza deixava de ser o eixo de estruturação da ordem social, substituída pela tecnologia, o conhecimento, o mérito intelectual. Para felicidade dos conservadores, a expressão “sociedade capitalista” poderia ser aposentada do léxico político – com todas as tentações subversivas a ela associadas.
A nova fonte de empregos jorrava outro tipo de água, porém. O trabalhador que perdia o emprego na GM podia encontrar um outro, quem sabe, no McDonald’s ou no Walmart. Por menos da metade de salário, sem plano de saúde ou de aposentadoria. Não por acaso, significativo número dos trabalhadores desse tipo de empresa sobrevive apelando a programas de ajuda federal, como o Food Stamp, inventado na era Roosevelt. E uns 60 milhões de americanos são desprovidos de qualquer atendimento de saúde, público ou privado. Os planos de aposentadoria deixam de ser vinculados aos contratos de trabalho e viram fundos de investimento, um novo foco de especulações financeiras.
Mas algo escapava das previsões, pelo menos em parte. O crescimento dos serviços públicos, fazia surgir um novo filão sindical. Já em 1970 ele começava a ser o segmento mais sindicalizado. Em 2008, a taxa de sindicalização no setor privado estava perto dos 8%. No setor público era de uns 35%.
A classe trabalhadora também mudava de cara. As mulheres eram 34% da força de trabalho em 1950 e chegaram a 60% já no começo do novo milênio. Também as etnias mudavam – a classe trabalhadora, em números oficiais e formais, tem 13% de negros, outro tanto de latinos, uns 5% de asiáticos.
Outra alteração era a redistribuição geográfica, dentro do próprio país. As fábricas migram para o sul, mais conservador, mais religioso, com leis e normas fortemente pró-capital.
Se mudava de cara da classe trabalhadora, mudavam também os alinhamentos políticos, ainda que mais lentamente. Entre 1980 (Reagan) e 2000 (Bush), pelo menos 40% dos filiados a sindicatos votaram no candidato republicano, mesmo contrariando a indicação dos dirigentes das entidades, que faziam campanha e doavam recursos para o Partido Democrata. Trump não inova na captura de trabalhadores descontentes ou reacionários. Eles já existiam com Reagan, em 1980, ou mesmo com Nixon, no final dos rebeldes anos 60. E talvez mais relevante seja o “partido dos não votantes”, um contingente que cresce, como indica a pesquisa do Pew Research Center. Talvez a descrença na política seja a mais importante conquista dos conservadores.
Os sindicatos deixavam de ser ouvidos – e eram ouvidas outras vozes, cada vez mais marcantes e influentes. A nova mídia da nova direita – os programas de entrevistas e animação de radialistas reacionários, a CNN, a Fox. Uma outra voz, que vinha se organizando desde os anos 1930, crescia a olhos vistos – a direita religiosa, que martelava uma visão de “valores familiares”, prosperidade e consumo, individualismo acendrado.
As “escolas cívicas” dos sindicatos – mesmo os sindicatos burocratizados e conservadores dos americanos – eram substituídas por outra escola, midiático-religiosa.
Em um instigante livro, Daniel Schlozman mostra como determinados movimentos sociais “ancoram” partidos políticos, isto é, operam como referências para suas operações, seus fracassos e seus sucessos. A sua tese – arrojada ainda que discutível – é que os sindicatos tinham funcionado (e ainda funcionam em parte) como âncora e referência para o Partido Democrata, desde a era Roosevelt. Fornecem quadros, sustentam campanhas com gente e dinheiro. De outro lado, a direita religiosa (casada com a mídia ultraconservadora) constituiria a nova âncora do Partido Republicano, radicalizado e sectarizado. [When Movements Anchor Parties: Electoral Alignments in American History, Princeton University Press, 2015].
Se tudo isso tem algum sentido, talvez o desastrado ministro brasileiro tenha razão – quem sabe Donald Trump seja, mesmo, o Partido Republicano de porre. O problema é que não sabemos como será a ressaca…
Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.