Reginaldo Corrêa de Moraes
Fonte: Jornal da Unicamp
Data original da publicação: 26/07/2018
Nos artigos iniciais desta série (I e II), mostramos alguns flagrantes da chamada desindustrialização da América. O doloroso processo começa com a migração das plantas fabris e dos empregos localizados em antigas cidades industriais do Nordeste e Meio-Oeste. Eles vão para os Estados do Sul, primeiramente, depois para o México e para a Ásia. Essa migração dependeu de vários fatores. Um deles, incentivos federais que visavam descentralizar a produção de artefatos de interesse militar. O Gunbelt vai se deslocando para o Sunbelt – como mostra o instigante estudo organizado por Ann Markusen, The Rise of the Gunbelt – the Military Remapping of industrial América (Oxford University Press, 1991). Em parte por alguma coincidência, essa área também é o Bible-Belt, a concentração da direita religiosa. O governo federal oferece incentivos para reconfiguração do complexo industrial-militar. Os governos estaduais ampliam a guerra fiscal e atraem indústrias – com redução de tributos e taxas, crédito, terrenos. E com leis especiais – aquelas que dificultam ou mesmo impedem a instalação de sindicatos. E qual o papel do Bible-Belt? Entre outros aspectos, o domínio do protestantismo mais conservador era fundamental para apoiar a resistência aos sindicatos e, também, as políticas públicas mais progressistas. E os evangélicos batistas do Sul, a maior Denominação religiosa do país, tinha sido conquistada por uma visão extremadamente pró-business.
A desindustrialização era também ajudada por outros fatores. Não apenas empregos eram deslocados para o Sul e, depois, para fora do país. O regime geral de outsourcing fragmentava as corporações (e as categorias profissionais), terceirizava diversas ocupações. E a automação reduzia o pessoal exigido pela produção, além de tornar mais viável esse deslocamento em cadeias fragmentadas.
Sherry L. Linkton vê esse fenômeno sob um ângulo menos usual, a da literatura produzida pela e sobre a classe trabalhadora. Linkton utiliza a expressão “meia-vida da desindustrialização “ [The Half-Life of Deindustrialization: Working-Class Writing about Economic Restructuring, University of Michigan Press, 2018].
Meia-vida é uma fórmula verbal utilizada para descrever o período em que o medicamento fica no corpo, produzindo efeitos, diretos ou colaterais, desejados ou indesejados. A desindustrialização também tem sua meia-vida. Sua influência pode se desmanchar lentamente, mas permanece poderosa e não pode ser simplesmente esquecida ou ignorada, diz Linkton:
“Juntamente com a perda e mutação dos empregos, a deterioração dos ambientes é uma característica definidora da Meia-Vida da desindustrialização. Em cidades e vilas em todo o cinturão da ferrugem e em outros lugares, as pessoas vivem em meio a lojas fechadas, fábricas abandonadas, casas em ruínas e espaços vazios que ainda trazem à mente o amigo de infância que viveu em uma casa agora demolida ou a grande fábrica que costumava ocupar o que agora é um campo vazio.”
Os custos sociais da industrialização são muitos e variados, incluindo o
“declínio populacional, a degradação dos edifícios e da infraestrutura, o lixo tóxico, o desemprego de longa duração, problemas de saúde física e mental, altas taxas de dependência de drogas assim como de suicídios, descrença nas instituições e ressentimento político.”
E a política do ressentimento é algo que certamente nos vêm à memória quando olhamos os mapas eleitorais da vitória de Trump – sua votação em pequenas cidades e localidades rurais. Afinal, nos Estados Unidos, há cerca de 18 mil pequenas localidades, 14 mil na zona rural. E uma outra coleção de cidades um pouco maiores, que vivem em torno de uma ou de meia dúzia de fábricas.
Robert Wuthnow [The Left Behind – Decline and Range in Rural America, Princeton University Press, 2018] registra o drama:
“A indignação moral da América rural é uma mistura de medo e raiva. O medo é que aqueles modos de vida das pequenas cidades estão a desaparecer. A raiva é que eles estão sob cerco. (…) Escolas estão fechando, empresas estão partindo e empregos estão desaparecendo.”
É o que acontece quando a única planta industrial da cidade desaparece, uma vez que a empresa foi deslocada para o México.
À degradação das cidades médias se soma, então, a degradação do mundo rural. E neste último, ainda um fenômeno cresce como erva daninha: uma espécie de brain drain , descrito por Patrick J. Carr e Maria Kefalas em Hollowing out the middle: the rural brain drain and what it means for America [Beacon Press, Boston, 2009]. Dizem eles:
“O que está acontecendo em muitas pequenas cidades – a perda devastadora de jovens educados e talentos, o envelhecimento da população e a erosão da economia local – tem repercussões muito além do seu limite.”
Assim, o interior do país vê a cidade grande sugar seus médicos e engenheiros, empresários e professores. O êxodo dos jovens, sobretudo. A desindustrialização não esvazia apenas a cidade média construída em torno das manufaturas, com a geração de hiper-guetos. Ela origina uma crise rural também. Seus sintomas são quase uma síndrome. Ao lado da óbvia desagregação das famílias, a escalada do crime e da dependência de drogas. Nesses quesitos, no início do novo milênio, Estados como Kansas e Nebraska alcançavam índices 50% mais altos do que o Estado de Nova Iorque. Em 2004, a divisão de Narcóticos desbaratou nada menos do que 1500 laboratórios de metanfetamina em Iowa, o segundo mais alto número de qualquer Estado do país, atrás apenas do Missouri.
A marcha da desgraça tinha história. Mostrara seus dentes já no final dos anos 1970. Na década de Reagan, foi acelerada por uma nova onda de automação, pelas reformas macroeconômicas (privatização e desregulamentação) e pela reengenharia das empresas. Seguia o rastro de uma escalada de fusões e aquisições, as tais compras alavancadas por débito e fundos podres. Conglomerados eram adquiridos e esquartejados. Empregos evaporavam ou eram transplantados para áreas do chamado trabalho livre (sem sindicatos) – nos Estados do Sul, no México, na Ásia. No final dos anos 80, Bush (pai) iniciava a contratação do Nafta, o acordo de livre comércio entre Canadá, Estados Unidos e México. O acordo foi, afinal, consolidado por Clinton, contra a resistência dos sindicatos, um confronto duro.
O olhar disparatado dos especialistas
Pois no meio desse processo desencadeou-se com alarde um estranho debate, criativo e estrábico ao mesmo tempo. Uma porção de analistas, de mais diferentes filiações e vínculos, diagnosticava o mal estar das atividades produtivas: a falta de educação adequada nos trabalhadores. Skills shortage e skills mismatch eram os termos da moda – empregos existiam, mas os norte-americanos estavam mal treinados para ele, era o que se costumava dizer, com prodigiosa menção de números e estudos de caso convenientemente selecionados. O engraçado é que os empregos (majoritariamente blue-collar, manuais) estavam sendo deslocados para áreas que dificilmente poderíamos chamar de bem dotadas de treinamento e educação.
O debate era ambíguo, como dissemos, criativo e vesgo. Gerou estudos sofisticados sobre problemas reais e candentes – a falta de foco da escola média, a inexistência de programas de treinamento profissional (como a apprenticeship alemã), a ineficiência dos métodos tradicionais de ensino. Ao mesmo tempo, distorcia significativamente o problema de fundo das transformações da base produtiva. Essa operação acabava por gerar um famoso efeito: culpabilizava a vítima. Empregos existem, os trabalhadores é que estão mal preparados – reza a cartilha apreciada por líderes empresariais e políticos “globalistas”. Bem verdade que os estudos culpavam também as instituições, mas a mensagem de massa era clara: cabe a você, desempregado, investir em sua formação.
Toda essa discussão parecia depender de uma avaliação bastante enviesada da “mudança radical”, da mãe de todas as mudanças. A rigor, a grande migração e os efeitos polarizadores da automação eram amplamente superados, nas análises, pela avaliação das escolas e métodos. Essa nova versão do evangelho pedagógico transformou-se quase em um discurso automático – atravessava dezenas de relatórios, comissões de especialistas, governamentais, para-governamentais ou puramente privados.
Em 1989, por exemplo, surgia um desses memoráveis estudos, produzido pela Commission on Industrial Productivity do MIT. Apontava para os “novos padrões de organização do local de trabalho”, padrões anunciados pelas pioneiras corporações japonesas. Eles “distanciam-se em quase todos os aspectos do sistema de produção em massa de Detroit”. Alegava o relatório que esses novos modelos exigiam “a criação de uma força de trabalho altamente qualificada”. Logo em seguida, comissões e mais comissões iam nesse rumo, alertando, ainda mais, que o novo desenho produtivo daria mais responsabilidade aos trabalhadores do “chão de fábrica”. Eles teriam que receber treinamento avançado para tomar decisões igualmente avançadas, complexas. Os novos trabalhadores precisam ser flexíveis, criativos, educados – eles seriam “empoderados” e chamados a “colaborar” nos novos empregos “enriquecidos”. Essa era a tônica dos gurus da moda, inclusive das consultorias “especializadas” que não conseguiam sequer treinar seus especialistas para escaparem da derrocada.
A canalização dos desesperos
A cacofonia do debate mostra os limites da análise e dos analistas, suas viseiras ideológicas. Parece indicar que são bem distribuídos os efeitos deletérios da desindustrialização, manifestações de sua meia-vida. Não atingem apenas os que trabalham com as mãos. Aprisionam aqueles que dizem operar com o cérebro. Isso certamente não se deve à fragilidade dos neurônios – estamos falando de gente altamente qualificada, estudiosos de alto coturno. Mas há uma força da gravidade – um conjunto de determinantes sociais – que limita a sua visão.
Parece que mais uma vez sobra razão para a frase do assessor de Clinton: “é a economia, estúpido”. Economia, em sentido amplo, é aquele espaço em que os interesses se revelam, se reconhecem e conflitam. E a política é aquele terreno em que tais conflitos são levados às últimas consequências. Os intelectuais mergulham nesse mar de aporias e problemas sem solução – o debate patina, mas é relativamente inofensivo. Mais abaixo, as “soluções” são ainda mais confusas e perigosas. E quais são?
O já referido livro de Wuthnow pode nos ajudar a perceber tais efeitos sombrios, quando aponta que o vazio das fábricas cria o clima fértil para a política do ressentimento:
“Quando a poeira assentou, após a amargamente disputada campanha presidencial de 2016, analistas se esforçavam para achar sentido nos resultados. Uma das conclusões mais claras era que as comunidades rurais votaram esmagadoramente no candidato republicano. Era difícil alguém afirmar que o voto rural havia decidido a eleição. Mas as diferenças entre os resultados rurais, urbanos ou suburbanos foram marcantes. As pesquisas mostraram que 62% dos votos rurais foram para Donald Trump, comparado com o índice de 50% dos votos suburbanos e apenas 35% do voto urbano. Outra evidência demonstrava que os eleitores rurais cada vez mais se tornaram republicanos, em cada uma das duas eleições anteriores”
Considerando o quadro que buscamos desenhar, isso não é tão surpreendente, pois não? E os eleitores mais diretamente identificados com a “base industrial-urbana”, que rumo tomaram? Bem, essa é uma outra estória, que fica para uma outra vez.
Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.