Reginaldo Corrêa de Moraes
Fonte: Jornal da Unicamp
Data original da publicação: 19/07/2018
O que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos. A frase é conhecida e controversa. Teria sido pronunciada por um grande executivo da GM, quando guindado a posições de Estado. Alguns dizem que não foi dita – pelo menos não desse modo. O certo, porém, é que a sentença seguiu o que Fernando Pessoa atribuía aos mitos: escorreu para a realidade e a fecundou. Durante décadas, aquilo que ocorria com a GM marcava o país e sinalizava seus passos. Esse movimento “para cima” tem seu equivalente na baixa. É o que ocorre com as polêmicas sobre declínio da manufatura e seus efeitos deletérios.
O tema da desindustrialização dos Estados Unidos gerou enorme literatura – dos mais variados campos, explorando também variados aspectos, dos mais profundos (e polêmicos) fatores causais até os mais dramáticos efeitos. Em junho de 1980, a Business Week já publicava número especial chamado Reindustrialização da América. Um estudo de fôlego, pioneiro e talvez o mais citado, foi escrito por Bennett Harrison e Barry Bluestone em 1982 – The Deindustrialization of America: Plant Closings, Community Abandonment, and the Dismantling of Basic Industry. O subtítulo resume o encadeamento dos fatos. Ainda restaria por perceber e por analisar o enorme conjunto de efeitos paralelos no terreno psicossocial e ideológico, bem como nos comportamentos e alinhamentos políticos. Algo que, como dissemos, ecoaria na enorme literatura sobre os desmanches do american dream.
Alguns nomes e siglas simbolizam tal mudança. Imagens também. Na lendária cidade do aço, Pittsburgh, as torres da antiga siderúrgica sobreviveram ao desmanche das forjas – hoje fazem a decoração do pátio de estacionamento de um grande centro comercial. À noite, são iluminadas como árvores de natal.
As transformações no mundo corporativo trocam os nomes dos personagens relevantes. No imediato pós-guerra, a GM era o maior empregador nos Estados Unidos. Hoje é o Wal-Mart. A General Electric, de gigante manufatura, transformou-se em mesa de operações financeiras. Uma empresa símbolo da inovação americana – Apple – pode ser muita coisa, menos “americana”, uma vez que abriu mão da cidadania original. Hoje é uma empresa com passaporte das Bahamas.
E isso diz muito em muitos sentidos. Mas em um deles dói mais. A mudança brutal em inteiras comunidades. As máquinas desativadas resultam em almas vencidas.
A transformação tem impactos também muito visíveis no desmonte do peculiar welfare state norte-americano, peculiar porque esse welfare é bem pouco state, é basicamente privado. Graças à propagação do famoso Acordo de Detroit, do começo dos anos 1950, as empresas norte-americanas se transformaram no canal de realização do chamado sonho americano: um emprego relativamente estável, com salário periodicamente reajustado, promoções na carreira, plano de saúde, previdência complementar. Já houve tempo em que o velho operário da linha da GM, aposentado e acomodado, via seu filho, com a mesma perspectiva, o mesmo futuro. Só que não, mais uma vez – tudo é incerto nesse quadro outrora estável.
Escolhemos alguns retratos desse drama, numa literatura tão fértil. Dois livros que giram, precisamente, em torno da lendária e emblemática General Motors.
O primeiro deles é de Jeffrey S. Rothstein – When Good Jobs Go Bad: Globalization, De-unionization, and Declining Job Quality in the North American Auto Industry (Rutgers University Press, 2016).
Lembra ele que, ainda no começo dos anos 2000, os utilitários da GM (os SUV) eram montados em três plantas. Duas delas no território americano – Janesville (Wisconsin) e Arlington (Texas). A terceira ficava no norte do México (Silao). Outras plantas da GM se dedicavam a outros modelos.
A fábrica de Silao foi aberta em 1994, em um “campo verde”. Uma fábrica criada a partir do zero e com desenho alegadamente mais moderno, numa área antes sem indústria. Silao era uma cidade de 60 mil habitantes, transformada pelo governo provincial em um centro de exportação. Cerca de 90% dos carros eram postos em trens e mandados para os Estados Unidos.
A fábrica de Janesville era de 1919. Inicialmente montava os tratores Samson, também da GM. A planta foi várias vezes reformada – e fechada em 2008, quando caiu o mercado para os utilitários SUV. Tinha uns 3.500 horistas. Janesville era uma cidade do mesmo tamanho de Silao e grande parte de seu oxigênio vinha da GM.
A migração para o México marcou toda a indústria automotiva. Na primeira metade dos anos 1980, as três maiores montadoras americanas (GM, Ford, Chrysler) abriram fábricas no Norte daquele país, que quase se transformou em uma 51ª estrela na bandeira ianque, mesmo antes do famoso acordo de integração (NAFTA, 1992).
Do final da Guerra até o fim dos 1960, a venda de automóveis cresceu rapidamente nos Estados Unidos – de dois milhões para nove milhões de carros por ano. Em parte, por conta da abertura das estradas federais – uma rede impressionante, como indiquei em outro artigo.
Outro fator relevante foi a suburbanização acelerada do país, graças à facilidade de crédito imobiliário (as famosas hipotecas…).
No final dos anos 1960, apenas uns 15% dos autos eram importados (Volkswagens, sobretudo). O resto: GM (45%), Ford (25%), Chrysler (15%). Entre 1972 e 1980, a importação de carros cresceu desses 15% para 27%. E os japoneses já respondiam por 20% do total de vendas de autos no país. Invasão amarela, não vermelha.
As montadoras estrangeiras expandiram suas plantas principalmente nos Estados do Sul, aqueles que tinham baixa sindicalização e muitos benefícios atraentes – Toyota, Honda, Nissam, BMW, Mercedes, Volkswagen, Hyundai, Kia. Em 2008, já eram treze marcas.
O deslocamento geográfico (do Meio-Oeste para o Sul) e o crescimento das estrangeiras (também no Sul) resultaram em um novo mapa e em uma tragédia associada.
A indústria automotiva empregava quase 670 mil horistas em Detroit, ainda em 1978. Em 2003, esse número caiu para 275 mil. E cairia outros cem mil nos cinco anos seguintes. Muitos viam com olhos cândidos a mudança – uma nova forma de produção, mais moderna flexível, inteligente e ‘humana”. Bom, e por que então ela buscava e cultivava as áreas “livres de sindicatos”?
As três fábricas da GM, diz Rothstein, eram “organizadas a partir de rotinas e coreografias cuidadosamente padronizadas”. A badalada “produção enxuta” não era bem o que se cantava. Rigorosamente, a comparação mostrava que, de fato, o taylorismo apenas se fantasiava e migrava para outras regiões, para plantas e máquinas mais modernas. Relações de trabalho, nem tanto.
Os “ciganos da GM” vagavam pelas cidades. Em todas elas, uma regra seguia constante, independente do discurso da “reestruturação flexível”: o trabalhador deve estar “em movimento” 55 segundos em cada minuto. Sim, isso mesmo. É como nadar durante oito horas – com descansos de respiro de cinco minutos a cada hora.
O segundo ato do drama é escrito por Amy Goldstein – Janesville: An American Story (Simon & Schuster, 2017). O livro também descreve a migração das plantas da GM, mas acentua seus efeitos sociais, que talvez possam ser sugeridos por este parágrafo:
“Para compreender a tristeza, raiva e desconfiança que está modelando a política dos Estados Unidos, olhemos para Janesville, Wisconsin. Quando foi fechada a mais antiga linha de montagem da GM do país, as velhas certezas morreram com ela”.
Essa é a abertura de um artigo de Goldstein para um jornal inglês.
No livro, ela conta como isso ocorreu. Soa quase como uma fábula. Pelo fato de parecer irreal e pelo fato de ser “instrutiva”.
Janesville pode ser lembrada, talvez, como a cidade onde nasceu uma famosa caneta-tinteiro – outra lembrança do passado. A Parker Pen Company botou Janesville no mapa do mundo. A GM instalou-se ali e inaugurou uma viagem por esse mapa, criando aquilo que já foi chamado de “GM gipsies” – os ciganos da GM, os trabalhadores que viviam “acampando” onde a empresa montava suas plantas.
Em 1986, por exemplo, uma das linhas de montagem foi transferida para Fort Wayne, Indiana. Os trabalhadores deviam escolher: migrar ou dançar. Uns 1.500 migraram. Hoje existe um grupo no Facebook – o Janesville Wisconsin GM Transfers. Uma postagem de março 2017 mostra o surreal da cena:
“Hoje em Fort Wayne, falei com alguém de Arlington que ouviu de alguém de Lordstown que ouviu de alguém de Wentzville que está ligado com alguém de Lansgind que ouviu a respeito de um vidente de Detroit que contatou Elvis. E Elvis disse que ouviu de uma fonte confiável lá de cima que no dia em que o inferno congelar, a GM vai reabrir a fábrica de Janesville. Provavelmente apenas um boato”.
Sim, boato, pois em 2015 a fábrica de Janesville fechara completamente. Em 2016, de certo modo, a região virava uma espécie de vitrine do que ocorria em muitos outros centros industriais (ou ex-industriais) do país. Por isso a “tristeza, raiva e desconfiança que estão modelando a política norte-americana”
Goldstein reitera que Janesville tem, nas eleições de 2016, aspectos da polarização que marcou essa disputa. Inesperadamente, o Estado de Wisconsin pendeu para o Partido Republicado pela primeira vez em 32 anos.
De fato, em várias regiões do Estado, o que ocorreu foi uma vertiginosa queda da participação eleitoral – e do lado dos democratas. Hillary teve dez pontos percentuais a menos do que Obama, quatro anos antes. E Obama já havia caído, comparado com a primeira eleição. Muitos “vira-casacas” e, sobretudo, muita abstenção de antigos eleitores democratas. Contribuiu para esse movimento aquilo que aconteceu com a GM e o modo como os políticos do partido democrata responderam à coisa.
A GM que mudou para Arlington e, depois, para o norte do México, não mudou tanto suas linhas e seus métodos de trabalho. Mas mudou o quanto paga de impostos e taxas. E se livrou dos sindicatos. Ora, como prêmio de bom comportamento, Obama lhe deu milhões e milhões. O plano de “resgate”? Importar mais, ao invés de produzir nos Estados Unidos, com trabalhadores americanos. Como é que o Partido Democrata espera que isso seja entendido pelos seus eleitores de base sindical? Ou pelo comércio que sobrevive em torno das fábricas? Razão para que muita gente deixe simplesmente de votar. E para que, de repente, mas nem tanto, a mensagem demagógica de um republicano esquisito soe como algo esperançoso para alguns desses órfãos.
Repetindo: as casas e galpões industriais podem ficar vazios, as almas, não.
Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.
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