A despeito da gravidade e da abrangência, a relação entre saúde e trabalho é um assunto normalmente pouco destacado na cena política.
Vitor Filgueiras
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 21/03/2018
No Brasil, todos os anos, milhares de pessoas morrem no trabalho ou por conta de doenças decorrentes de suas atividades laborais. Segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), divulgado no final de 2015, o Brasil é o 3º país do mundo com mais registros de mortes por acidentes de trabalho no mundo, com aproximadamente 3 mil óbitos anuais oficialmente identificados. Esse indicador, todavia, representa apenas uma pequena amostra das mortes relacionadas ao trabalho no país. Já aqueles que se lesionam, mas sobrevivem, são centenas de milhares, ou alguns milhões, a depender da fonte de dados. Várias pesquisas têm perseguido estimativas da real dimensão dos acidentes de trabalho no país, e formam um amplo consenso de que os dados oficiais são extremamente diminutos (sejam sobre acidentes fatais ou não), podendo abarcar apenas 10% das ocorrências.
A despeito da gravidade e da abrangência, a relação entre saúde e trabalho é um assunto normalmente pouco destacado na cena política. Mesmo entre aqueles que militam no campo, o debate muitas vezes se baseia numa apologia genérica a uma “cultura da segurança”, cujo déficit impediria a redução da acidentalidade no país. Abstrai-se que, numa sociedade em que o trabalho assalariado hegemoniza a produção da riqueza social, os empregadores são necessariamente os protagonistas da gestão da saúde e segurança do trabalho, já que impõem, de fato, as condições em que opera o processo de trabalho, portanto, de adoecimento ou preservação da saúde daqueles que trabalham. Os demais agentes envolvidos na regulação, particularmente sindicatos e instituições do Estado, podem, caso fortalecidos, impor condições para limitar a atuação patronal na busca do lucro, atenuando seu arbítrio. Portanto, subsumida aos ditames da acumulação, uma gestão das atividades menos gravosa depende de um processo de disputa, e não de “esclarecimento” ou “convencimento” de trabalhadores e patrões, como normalmente está explícito ou subjacente à retórica da “cultura da segurança”.
A grande quantidade de adoecimentos e mortes no mercado de trabalho brasileiro está diretamente associada a um padrão de gestão predominantemente predatório. Esse padrão significa um comportamento empresarial que tende a buscar extrair o máximo de excedente sem respeitar qualquer limite que considere entrave ao processo de acumulação, engendrando consequências deletérias para a saúde e a segurança de quem trabalha, comumente caminhando no sentido da dilapidação, inutilização ou mesmo eliminação física dos trabalhadores. Diversos indicadores sustentam esse argumento, como a maior incidência de acidentes e mortes no Brasil em comparação à maioria dos países, mesmo entre aqueles muito mais pobres do que o nosso. As evidências são encontradas em todos os aspectos da gestão do trabalho e nos seus vínculos com a integridade física dos trabalhadores: das formas de contratação e dispensa, passando pelo gerenciamento das jornadas, da intensidade das atividades, da organização do trabalho, das técnicas, métodos, materiais utilizados etc. Esse padrão não discrimina porte de empresas, nem perfil tecnológico, abrangendo tanto setores considerados modernos , quanto atrasados. Mesmo no processo de modernização, como no caso da transição do corte manual da cana-de-açúcar para a colheita mecanizada, a acidentalidade simplesmente migra em suas formas, mantendo ou mesmo acentuando seus índices. Não por acaso, o caráter pró-cíclico dos acidentes no Brasil, ou seja, seu crescimento concomitante à expansão da economia, é mais acentuado do que em outros países.
O padrão de gestão do trabalho predominantemente predatório possui três características essenciais que viabilizam sua reprodução, quais sejam: a ocultação, a individualização e a confrontação direta, que assim definimos:
1 – Ocultação é a prática patronal de não reconhecer os riscos ocupacionais e o adoecimento relacionado ao trabalho. Ao ocultar riscos e acidentes, tende-se a eliminar questionamentos sobre as condições de trabalho, já que estas aparecem como pretensamente hígidas, facilitando a perpetuação do modo como a força de trabalho é gerida.
2 – Individualização é a forma de abordar a saúde e segurança do trabalho que foca o indivíduo, em detrimento do ambiente de trabalho. Os debates e as ações priorizam ou são exclusivamente direcionados à figura do trabalhador, especialmente ao seu comportamento e aos equipamentos de proteção individual. Desse modo, os empregadores buscam transferir responsabilidades pelos agravos e manter intacta a forma de gestão do trabalho que engendra os acidentes. A “cultura da segurança”, muitas vezes, é uma manifestação desse aspecto do padrão de gestão.
3 – Confrontação direta são as posturas de enfrentamento e resistência aos parâmetros de proteção da integridade física dos trabalhadores, especialmente a legislação trabalhista e as instituições de regulação do direito laboral. A confrontação direta abarca desde a formulação e prescrição de regras, até a observância às determinações legais, consistindo na defesa explícita da manutenção ou aprofundamento do padrão de gestão predatório.
A chamada “reforma trabalhista”, recentemente aprovada, é um exemplo radical da confrontação direta, constituindo um arsenal de ataques aos limites existentes à depredação do trabalho, sejam nas formas de contratação, no tempo de jornada e descanso, nos poderes das instituições de regulação do direito do trabalho, dentre tantos outros pontos.
Nesse difícil cenário, um grupo de pesquisadores se reuniu para a realização de duas publicações que buscam qualificar o debate sobre saúde e segurança do trabalho no Brasil, e apoiar todos aqueles que atuam no campo, das instituições públicas às entidades de classe. Saúde e segurança do trabalho no Brasil e Saúde e segurança do trabalho: curso prático são obras para distribuição gratuita, apoiadas pelo Ministério Público do Trabalho.
As evidências indicam que patrões e suas entidades normalmente tratam a integridade física dos seus empregados simplesmente como um limite à acumulação, e a atenuação da sua dilapidação não parece despertar preocupação, mesmo como parâmetro de concorrência. Longe de qualquer espécie de maniqueísmo, esse padrão de gestão predatório deve ser entendido como produto histórico, mas não inexorável, de um domínio patronal sobre aqueles que trabalham parcamente limitado, cujo recrudescimento aprofunda seus traços mais marcantes (como as mudanças normativas evidenciam), a despeito da retórica comumente vazia sobre promoção da saúde e segurança do trabalho. Esta, infelizmente, muitas vezes não se restringe ao campo empresarial, espraiando-se pelas instituições públicas.
Evidentemente, a tendência é que o cenário piore nos próximos anos. Contudo, essa dinâmica nada tem de inevitável. Instituições, sindicatos e outros agentes podem resistir, e há instrumentos para isso. É urgente se informar e mobilizar.
Vitor Filgueiras é professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estágio de pós-doutorado (Soas, Universidade de Londres), doutorado em Ciências Sociais pela UFBA, mestrado em Ciência Política pela Unicamp, graduação em Economia pela UFBA e secretário da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet). Foi auditor fiscal do Ministério do Trabalho entre 2007 e 2017 e pesquisador colaborador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp.