A corrupção privada dos oligarcas brasileiros: escândalo da Americanas

Ilustração: Freepik

Se não forem tomadas providências pelo Estado, em breve teremos o cenário de desfalque, roubo e escândalo da Americanas se repetindo na Eletrobras.

Arthur Harder Reis e João Carlos Loebens

O caso em questão é o triste resumo de um país. Os três homens mais ricos do Brasil [Lemann, Sicupira e Telles] (patrimônio de R$ 180 bilhões), ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial “do bem”, são pegos com a mão no caixa daquela que é uma das principais companhias do trio.

Caso fosse    uma empresa pública,  o rombo das Americanas suscitaria pedidos de CPI e prisões.

Trecho da petição realizada pelo Banco BTG Pactual (p. 5) contra decisão judicial favorável à Americanas S. A. A petição pode ser lida integralmente aqui.

Ao escutarmos ou lermos a palavra “corrupção”, quase que automaticamente associamos aos governos e ao Estado. Essa associação mental não tem nada de natural, pois trata-se de uma escolha e definição da mídia predominante que forma o senso comum, alimentados por determinadas leituras históricas e do pensamento social brasileiro, construído a todo tempo, ontem e hoje[1]. Afinal, corrupção é sempre aquela praticada pelos políticos, cristalizada em imagens, que todos conhecemos ou até reproduzimos em algum momento da vida: de que todo político e a política em si mesma é corrupta. O objetivo não declarado é o de criminalizar a política.

Todas as sociedades ou países possuem bens públicos e bens privados. Por exemplo, o prédio de uma escola pode ser um bem público ou um bem privado. A escolha ou decisão sobre a quantidade de escolas que são bens públicos ou bem privados é feita por cada sociedade através de decisões políticas, normalmente pelos deputados eleitos pelo povo. Nesse contexto, por exemplo, um empresário (privado) da educação, visando expandir sua empresa que vende serviços de educação, poderá ter interesse na criminalização da política, para assim “fechar” as escolas públicas e essas serem repassadas para o empresário (privatização).

 Dessa    forma,    a    seletividade    no    emprego    da    palavra   corrupção    (somente pública/criminalização da política) nos ajuda a entender a relação entre três importantes atores: as grandes corporações (seus acionistas/mercado financeiro), os bancos (vultosas operações financeiras/comerciais) e a grande mídia. Os grandes meios de comunicação são financiados por essas corporações, pelo chamado “mercado”, que por meio de seus canais sejam digitais, televisivos, impresso, conseguem atingir milhões de pessoas todos os dias e definir o significado da palavra corrupção no mapa mental das pessoas.

Falando em “mercado”: numa concepção ampla, mercado seria toda e qualquer comercialização de mercadoria. No entanto, quando a imprensa predominante fala no “mercado” com expressões do tipo “hoje o mercado está nervoso”, este se refere aos possuidores de elevadíssimo patrimônio, os super-ricos, que acabam transformando-se numa oligarquia (oligarquia: poder exercido por um pequeno grupo de pessoas que age em seu próprio benefício).

Com o conceito de oligarquia, fica mais fácil de construir o mapa mental relacionado à palavra oligarca, usada no título deste artigo. Oligarcas brasileiros seriam as pessoas que fazem parte desse pequeno grupo de brasileiros super-ricos, que possuem muito poder em função do elevado patrimônio privado (concentração da riqueza), e usam esse poder em benefício próprio. Na imprensa predominante, a palavra oligarcas quase sempre se limita a referências aos super-ricos da Rússia, os oligarcas russos, mas também existem os oligarcas brasileiros.

“Corrupção de manchete” e “corrupção de rodapé”

Nesse momento, vamos focar nossa atenção no recente escândalo do rombo ou possível quebra da varejista Americanas. Vamos incorporar no mapa mental uma concepção mais alargada de corrupção, incluindo corrupção privada e oligarcas brasileiros. Não é nosso foco aqui analisar intrinsecamente a derrocada da empresa Americanas, pois essa tarefa já está bem exposta por Luís Nassif e Eduardo Moreira[2].

O que se pretende é, a partir do escândalo da Americanas, jogar um pouco de luz sobre o conceito e uso do termo corrupção privada, termo tão estranho aos meios midiáticos e políticos predominantes no país.[3] Bom lembrar da ênfase e das grandes coberturas, nada inocentes, dos denominados Mensalão, Petrolão e especialmente da Lava Jato[4], sempre procurando criminalizar a administração pública e a política, evitando sempre, e no máximo possível, mencionar a corrupção privada existente nas mesmas situações (corruptores privados). Já no atual escândalo da Americanas, a cobertura midiática não chegou nem perto do estardalhaço visto noutras situações semelhantes.

Tal silêncio, na verdade, diz muito. Afinal, talvez junto com o futebol e o samba, a corrupção seja uma das marcas da (auto?) representação do ser brasileiro, aqui também entendida a partir do estereótipo (preconceituoso) do “jeitinho brasileiro”. Curiosamente, situações como o escândalo das Americanas, bem como a escandalosa sonegação anual no Brasil (aproximadamente 30% do total da arrecadação)[5] e outras tantas, conduzidas por agentes privados, cujos danos vão além da esfera estritamente profissional e pessoal dos envolvidos, não são tidos como “casos de corrupção”, sendo omitidos ou escondidos de manchetes de jornais e de longos minutos nos noticiários de horário nobre nas coberturas dos veículos de comunicação de massa.

Em matéria recente no InfoMoney, conceituado portal de notícias do mercado financeiro, Alfredo Neto, presidente da Associação Comercial de São Paulo, afirmava que o problema da Americanas se resolverá “com o tempo” [6]. Na mesma linha, Luís Nassif, em tom sarcástico, disse que o desvio de aproximadamente R$900.000 de uma festa de formatura da Faculdade de Medicina da USP tem rendido mais tempo e espaço na mídia do que o rombo de R$40.000.000.000 da Americanas. É um exemplo ilustrativo de como a grande mídia escolhe os casos menos importantes quando o tema é corrupção privada. Parece irônico, mas quanto maior o escândalo privado, menor a cobertura e maior a ocultação. Escolha tão estranha e diametralmente oposta aos habituais sensacionalismos nos casos de corrupção em que agentes públicos estejam envolvidos.

Nesse sentido, daria para deduzir que há uma diferença de tratamento: quando é um caso de corrupção pública, o tratamento dado é o de estardalhaço, e quando o caso é de corrupção privada, o tratamento dado é a discrição. Dessa forma, evidencia-se que a corrupção pública é a “de manchete”, enquanto a outra, a corrupção privada, no máximo, é a “de rodapé”.

Corrupção privada e a Americanas

O conceito de “corrupção privada” até pode ser encontrado na literatura acadêmica, mas em grau muito menor do que a “pública”. Segundo Emanuel Barreto, há um aspecto no Código Penal que favorece justamente a associação entre público e corrupção. Os crimes de corrupção passiva, corrupção ativa e corrupção ativa internacional punem agentes públicos que recebem vantagem, bem como particulares com vantagens indevidas. Essa tipificação desses três crimes acaba levando muitos a entender que a corrupção é um vício intrinsecamente entrelaçado à atividade pública, na medida em que pressupõe a existência de uma relação entre um particular e um agente público.

No entanto, se analisarmos a sonegação, que é o desvio privado de recursos públicos/impostos (desvio efetuado somente com a intervenção de agente privado/empresário, que se apropria do imposto pago pelo consumidor), podemos ver que, para o exercício dessa corrupção/desvio, não há a necessidade de uma relação com um agente público, caracterizando-se num típico caso de corrupção privada.

A   cobertura   midiática   do    escândalo   das   Americanas   foi   modesta,   além   da praticamente ausência do termo corrupção (privada). Dentro do contexto analisado até agora, essa ausência ou ocultação pode ser compreendida, pois trata-se de um desfalque bilionário referente a uma empresa comandada pelo grupo 3G, que tem como atores principais os super-ricos oligarcas brasileiros Lemann, Sicupira e Telles, pegos com a “mão na botija”.

Tudo isso, ao que as evidências indicam, de modo pensado. Os maiores acionistas e administradores, com acesso a informações privilegiadas, efetuaram a venda de R$241 milhões em ações entre julho e outubro de 2022, prejudicando os acionistas minoritários, sem informações privilegiadas, que arcam com os custos da quebra. As fraudes contábeis de longa data, manipulação de auditorias das contas internas, vantagens tributárias e milhões na distribuição de dividendos, troca de diretores e de posições de chefia indicam consciência há tempos do rombo e da preparação do desfalque.

Ademais, rombo (ou roubo) das Americanas não é um caso isolado. Especialmente em relação ao oligarca Jorge Paulo Lemann, há histórico de práticas semelhantes[7] às verificadas nas lojas Americanas, cujos desdobramentos podem resultar na demissão de mais de 40 mil trabalhadores, além dos milhares de empresários fornecedores, que viram seu patrimônio virar pó – a Americanas pretende pagar somente 10% das dívidas (abatimento de 90%). Essa tragédia e desfalque (seria roubo, correto?) monumental decorrente da administração (privada) da 3G e seus principais representantes, oligarcas Lemann, Sicupira e Telles, já não seria o bastante para horas no Jornal Nacional ou capas no Estadão e na Folha de São Paulo?

Fica evidente, portanto, que o uso da pesada palavra “corrupção” não se aplica a todos e todas justamente porque sua função nem sempre é denunciar práticas e desvios nocivos ao bem-estar público, enquadráveis como atos corruptos. Antes e pelo contrário, a escolha do uso ou não uso da palavra corrupção é instrumento de luta política, muito bem utilizado pela classe dominante (“os ricos oligarcas são probos, não praticam corrupção”, dizem).

Se não há dúvidas que desvios de agentes públicos devam ser investigados e combatidos, também não há de se ter dúvidas que práticas nocivas à sociedade e desvios de agentes privados também devem ser investigados e punidos, para receberem a mesma atenção e punição, tanto exemplares quanto severas. Infelizmente, as práticas nocivas e corruptas vistas na Americanas têm sido transformadas em um modus operandi dos grandes capitalistas brasileiros (oligarcas – em si, nocivos). Ainda que pareça algo distante face ao momento e ao desenrolar da luta de classes hoje, faz-se necessário refletir sobre as condutas das grandes corporações que, tal como o Estado, têm a capacidade de influenciar a vida de milhares e até milhões de pessoas.

Para encerrar, cabe uma rápida menção à empresa internacional que auditou a contabilidade da Americanas e não detectou irregularidade – a PricewaterhouseCoopers. A PwC é a mesma empresa que avaliou e recomendou a recente (também escandalosa) privatização da Eletrobrás, que acabou na mão do grupo 3G Capital, que deu o golpe/desfalque na Americanas, que teve seus balanços aprovados pela PwC. Ou seja, está tudo em casa.

Conforme a lei de probabilidades, se não forem tomadas providências pelo Estado, em breve teremos o cenário de desfalque, roubo e escândalo da Americanas se repetindo na Eletrobras. E quem pagará a conta serão os mesmos (trabalhadores e povo brasileiro), e quem embolsará a grana também serão os mesmos, os super-ricos oligarcas brasileiros.

[1] REIS, Arthur H. A perspectiva orwelliana do duplipensamento e as corrupções no Brasil. Primeiros Escritos (USP), São Paulo, v. 11, n. 1, p. 138-160, 2021.

[2] Ver: NASSIF, Luís. Xadrez das evidências do golpe das Americanas. GGN, 16 de jan. 2023 e Tv GGN 16/01/2023, Youtube, disponível aqui. Revelam, ademais, outros tantos esquemas e práticas corruptas realizadas pelo trio 3G, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira.

[3] Cf. Reis, 2021, op.cit., e mais recentemente: BARRETO, Emanuel. A necessária criminalização da corrupção privada. O Estado de São Paulo, São Paulo, 23 jul. 2021.

[4] CF. JÚNIOR, J; SASSARA, L. Corrupção, escândalos e a cobertura midiática da política. Novos estudos -CEBRAP, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 205-225, jul. 2016.

[5] Cf. LOEBENS, João. “Corrupção pública” versus “corrupção privada”. Instituto Justiça Fiscal, Porto Alegre, 04 jun. 2018. Para outras ações duvidosas desse mesmo grupo, consultar: Dutra, 2023, op. cit.

[6] Cf. LIRA, Roberto. Impacto da crise da Americanas para o varejo deve se resolver com o tempo, diz presidente da ACSP. InfoMoney, 19 jan. 2023. Para a colocação de Nassif, ver o vídeo supracitado.

[7] Ponto particularmente interessante quanto as representações públicas de super ricos como Jorge Paulo Lemann: “essa não é uma acusação isolada. Há décadas, analistas, economistas e mesmo políticos acusam Lemann, em particular, de práticas como fraudes, corrupção, concorrência desleal, e superexploração de trabalhadores. O verniz de filantropo ajudou que a pecha não aderisse publicamente ao magnata. Em seu meio, porém, suas práticas nocivas eram bem conhecidas”. Dutra, op. cit., 2023.

Arthur Harder Reis é graduando em História pela UFRGS e membro do Instituto Justiça Fiscal.

João Carlos Loebens é Auditor-fiscal da SEFAZ-RS e membro do Instituto Justiça Fiscal

One Response

  • Erro grave, Oligarquia sempre tem uma promiscuidade entre empresa privada e o estado! SEMPRE!!

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