A Constituição sob (constante) ataque: a resposta pela luta por mais direitos

Impõe-se abandonar a posição defensiva e voltar à luta no sentido da expansão e aquisição de novos direitos. Luta que se dá no campo político e social, mas também pelas potencialidades no campo jurisdicional da Constituição de 1988.

André Augusto S. Bezerra e Alberto Alonso Muñoz

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 01/03/2016

A promulgação da Constituição em 1988 representou uma promessa de superação definitiva do passado autoritário brasileiro. Tal compromisso encontrava-se fundado, sobretudo, na ampla mobilização social que antecedeu a aprovação do respectivo texto final, opondo-se aos documentos constitucionais anteriores, desprovidos de participação popular.

Daí a denominação “Constituição cidadã”. A vigência, a partir de 1988, dos mais variados direitos de índole coletiva (direitos dos trabalhadores, tutela ao meio ambiente, sistema público de saúde universal, proteção aos consumidores, respeito à identidade cultural dos indígenas, entre outros), somados a uma série de limites impostos à atividade punitiva do Estado (tais como presunção de inocência, acesso incondicionado à justiça, devido processo legal, maioridade penal aos 18 anos etc.), revelava possibilidades emancipatórias oriundas do ativismo social.

Acordos entre as elites

O problema é que as condições políticas que antecederam e sobrevieram aos trabalhos da Constituinte (1987-1988) não foram e ainda não são favoráveis à efetivação desses valores coletivos. Pelo contrário, permitem a persistência de um amplo processo de supressão de direitos, ainda que muitos deles tenham recebido o status de cláusula pétrea (imodificáveis, portanto, até mesmo por emendas constitucionais).

É necessário lembrar, nesse aspecto, que toda a mobilização social durante a elaboração da Constituição contrastou com o processo de circulação das elites políticas a portas fechadas do regime ditatorial pós-1964 para a chamada Nova República. Os acordos, desprovidos de participação popular, entre setores políticos possibilitaram, paradoxalmente sob o manto da democracia, a chegada à chefia do Executivo de um líder do regime anterior.

A Nova República não levou o país ao que Mészáros chama de mudança de época. O tempo histórico da expansão do capital a todo custo, promotor do golpe de 1964, manteve-se quando militares deram lugar a civis na Presidência.

Decorre desse quadro o ataque aos direitos já durante os trabalhos da Constituinte. Tal ataque ocorreu tanto pelo grupo parlamentar mais conservador (conhecido como Centrão) como por interferências políticas diretas vindas do Executivo.

A despeito de não terem logrado impedir a previsão constitucional de direitos de índole coletiva nem limites à atuação punitiva estatal, o fato é que os conservadores conseguiram impedir a previsão de uma série de outros direitos dotados de potencial aprofundador do projeto de construção de sociedade livre justa e solidária, estampado no artigo 3º, I, da Constituição: o estabelecimento de uma reforma agrária tímida, a não consecução, entre inúmeros direitos sociais e trabalhistas, da jornada de trabalho de 40 horas semanais e o não reconhecimento expresso do caráter plurinacional do Estado brasileiro (como demandavam os povos originários) são apenas alguns exemplos de derrotas da mobilização popular.

Além do mais, vários direitos, apesar de consagrados, foram neutralizados já no momento de sua elaboração, como o que estabelecia a função social da propriedade (após muito confronto, ela foi introduzida com atraso de setenta anos, mas a redação final reduziu drasticamente sua envergadura). Vários outros foram postergados, deixando para que o legislador ordinário, futuramente, regulamentasse o que a Constituição não conseguiu disciplinar (muitos deles não regulamentados até hoje); ou ainda não ganharam efetividade, pois exigem políticas públicas do Estado e, naturalmente, previsão orçamentária satisfatória. Por fim, a abrangência esperada de determinadas normas constitucionais terminou restrita ou fulminada pela interpretação que os tribunais acabaram por lhes atribuir.

O ataque neoliberal

Para agravar, adveio o fenômeno do neoliberalismo. É certo que a onda neoliberal já inundara a Europa desde a década de 1970, impondo a “relativização dos direitos”, a “desregulamentação econômica” e a financeirização como processo fundamental de controle da economia.

Em tal período, contudo, o Brasil ainda se encontrava em processo de mobilização contra a ditadura civil-militar e pela redação de uma nova ordem constitucional. Por conta disso, o desmonte das conquistas sociais atingiu o país com atraso de cerca de uma década. Foi na segunda metade da década de 1990 que o assalto aos direitos alcançados se tornou realmente feroz.

Refletindo a ideologia neoliberal, o discurso predominante apontava no sentido de que os direitos que assistiriam ao Estado assegurar não cabiam no orçamento, que a eficiência econômica exigia a relativização ou supressão dos “pródigos” direitos sociais, que a justiça social passava pela transferência de responsabilidades aos indivíduos ou que a diminuição da violência exigia o encarceramento como principal medida de controle.

O apogeu da intensidade do ataque ideológico e jurídico ocorreu durante o período Collor-FHC. Emendas constitucionais da época trouxeram drásticas modificações na proteção previdenciária e trabalhista aos trabalhadores privados e públicos, como a alteração reiterada na idade da aposentadoria e no cálculo do valor dos benefícios (com a limitação generalizada a um teto) ou a redução para exíguos dois anos da prescrição dos direitos trabalhistas.

Demandas que levaram décadas para serem reconhecidas se viram pouco a pouco corroídas. A maré da conquista de novos direitos virou e, em um processo que perdura até hoje, deu lugar ao esforço de defesa dos poucos que, com muita luta, foram conquistados.

É o caso do ataque à garantia à maioridade penal aos 18 anos, que contrasta com a ausência de efetividade das políticas públicas de proteção à infância e adolescência (previstas na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente). É também o caso da relativização, via jurisprudência, da interpretação do princípio da presunção da inocência no momento em que o cumprimento da pena passa a ser autorizado mesmo que não haja decisão judicial definitiva condenando o acusado.

A necessária mobilização

O discurso neoliberal faz crer que a Constituição de 1988 trouxe direitos excessivos e é, assim, uma utopia inviável e ineficaz. Essa mesma ideologia contamina os setores populares, que se veem acuados numa posição de defesa dos “muitos” direitos que a Constituição teria legado.

É preciso desmontar essa armadilha ideológica. A Constituição contém conquistas sociais, inegavelmente, se comparada com a ordem jurídica herdada do período ditatorial. Se comparada, porém, às muitas demandas frustradas ou neutralizadas durante e após sua redação, verifica-se que ela foi parcimoniosa, e não pródiga, na consagração de direitos.

Impõe-se abandonar a posição defensiva e voltar à luta no sentido da expansão e aquisição de novos direitos. Luta que se dá no campo político e social, mas também pelas potencialidades no campo jurisdicional da Constituição de 1988.

André Augusto Salvador Bezerra é juiz de direito em São Paulo, presidente do conselho executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e mestre e doutorando pelo Diversitas-USP.

Alberto Alonso Muñoz é juiz de direito em São Paulo, membro do conselho da AJD e doutor em Filosofia e em Direito pela USP.

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