Giovani Clark, Leonardo Correa e Samuel Nascimento
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 13/09/2018
No último dia 30 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324 e o Recurso Extraordinário (RE) 958252, com repercussão geral reconhecida, decidiu pela constitucionalidade da terceirização ampla e irrestrita em todas as fases das atividades econômicas. O objetivo deste breve ensaio é analisar a decisão do STF à luz dos preceitos da Constituição Econômica.
A Constituição Econômica é identificada como a presença do fenômeno econômico (produção, circulação, repartição e consumo) no texto constitucional. A interpretação e aplicação das políticas econômicas estão condicionadas aos fundamentos da ideologia constitucionalmente adotada[1], como ensina o saudoso Mestre Prof. Washington Peluso Albino de Souza, professor emérito da UFMG e o introdutor do Direito Econômico no Brasil.
A Constituição Econômica não adota uma ideologia pura. Ao contrário, a ambiguidade representa um elemento constitutivo da ordem econômica constitucional. Em outras palavras, a ordem constitucional é formada pela composição de um conjunto plural de ideologias (trabalhismo, nacionalismo, liberalismo, ambientalismo, desenvolvimentismo, sociais,entre outras) formando, assim, a denominada ideologia constitucionalmente adotada. A grande contribuição do conceito de ideologia constitucionalmente adotada é se apresentar como um filtro argumentativo e, consequentemente, um elemento de correção racional contra interpretações capazes de desfigurar os preceitos da ordem econômica vigente
No julgamento em questão, as fundamentações jurídicas justificadoras da constitucionalidade da terceirização da atividade-fim possuem como ponto comum o reconhecimento da livre iniciativa como argumento jurídico central. De fato, em nossa Constituição Econômica a empresa goza de liberdade na estruturação de suas atividades econômicas, mas conforme os ditames da lei (art. 170, parágrafo único da CR) Ademais, a autonomia organizacional da empresa não é absoluta, pois condiciona-se ao fundamento constitucional da valoração do trabalho e pelos princípios da função sociais das propriedades, busca do pleno emprego, etc. Nessa perspectiva, uma estruturação empresarial que, apesar de eficiente em termos financeiro, fere os postulados da dignidade e valoração do trabalho não possui legitimidade constitucional.
A tradição de uma leitura privatista do texto constitucional não é novidade, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Trata-se de uma concepção que entende a livre iniciativa como um direito fundamental, isto é, o desdobramento, em termos econômicos, do postulado da liberdade individual. Como bem observa Gilberto Bercovici, “a livre iniciativa não é garantida em termos absolutos, mas como atividade que contribui para o progresso social”.[2]
É verdade que a Constituição – e, em especial, a Constituição Econômica – é o produto de uma intensa disputa interpretativa sobre os sentidos do texto constitucional, conforme afirma Marcelo Cattoni de Oliveira[3]. Em uma democracia, porém, a legitimidade da pluralidade de vozes – e, logo, de interesses – não pode resultar na negação do próprio projeto constitucional.
Para além do grave erro do argumento privatista da Constituição Econômica centralizado em um suposto meta-princípio da livre iniciativa, a maioria dos votos vencedores afirmam que a terceirização ampla e irrestrita se justifica em razão das consequências positivas na geração dos postos de trabalho, bem como em uma hipotética adequação aos novos arranjos de competitividade na economia internacional. Porém, as experiências internacionais e nacional recente mostram ao contrario, ou seja, que as terceirizações pelo mundo reduzem os empregos formais, resultando em consequenciais perversas ao mercado interno, na arrecadação de tributos, na saúde dos trabalhadores e em sua previdência social.
Ao adotar esse tipo de argumento, o STF admite uma radical mudança de orientação: a categoria “trabalho” se transforma de valor social para custo operacional da produção. Ora, a redução do trabalho ao mero custo da mão-de-obra representa uma interpretação desprovida de qualquer legitimidade constitucional.
Em um contexto de radicalização da financeirização da economia brasileira[4] e do aprofundamento do neoliberalismo de austeridade[5], torna-se fundamental ao jurista resgatar a importância da Constituição Econômica como espaço de luta pela afirmação de direitos, da democracia econômica e da promoção de um projeto nacional de desenvolvimento voltado a distribuição de renda e na sustentabilidade do mercado nacional.
Notas:
[1] Souza, Washington Peluso Albino. Primeiras Linhas de Direito Econômico. São Paulo: LTR. 2005. p. 28 [2]Bercovici, Gilberto. Direito Econômico do Petróleo e dos Recursos Minerais. São Paulo:QuartierLatin. 2011. p.263 [3] Oliveira, Marcelo Andrade Cattoni de. Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição. Belo Horizonte: Arraes Editores. 2017. p. 111 [4]Paulani, Leda Maria. Não há saída sem a reversão da financeirização. ESTUDOS AVANÇADOS 31 (89), 2017. pag. 30. [5] Clark, Giovani. Corrêa, Leonardo. Nascimento, Samuel. A Constituição Econômica entre a efetividade e os bloqueios institucionais in Constituição Econômica, Direito Econômico e Direito comparado: estudos em homenagem de Washington Peluso Albino de Souza pelo centenário de seu nascimento. (Orgs. Carmargo, Ricardo. Clark, Giovani).Giovani Clark é doutor em Direito Econômico pela UFMG, professor da Faculdade de Direito da UFMG e docente da graduação e pós-graduação estrito senso da PUC Minas.
Leonardo Correa é doutor em Direito Público pela PUC-MG e professor da graduação e pós-graduação estrito senso da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Samuel Nascimento é doutor em Direito Público pela PUC-MG e professor de Direito Econômico e Economia Política da Universidade Federal do Piauí.
Há indicação de notas de rodapé, mas elas não comparecem no texto. Gostaria, em especial, de saber sobre a nota 2.
Olá, Bruno. Notas inseridas, agradecemos o alerta.