Há 30 anos, esquerda e direita tentam enfrentar desigualdades brasileiras. Desindustrialização e dependência externa ficaram fora do debate
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 18/07/2022
A declaração do presidente Fernando Henrique Cardoso na época do seu governo de que “o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, mas sim injusto” assumiu, desde então, centralidade à direita e à esquerda no espectro político neoliberal. Na sequência, a problemática do subdesenvolvimento e dependência externa que era primordial na agenda de grande parte dos governos desde a Revolução de 1930 foi substituída pela temática da desigualdade.
Assim, os obstáculos ao desenvolvimento impostos pela condição periférica do Brasil no mundo passaram a aparecer como superados. Restariam, fundamentalmente, as crises de natureza cíclica do capitalismo, passíveis de serem administradas pelos governos através das políticas macroeconômicas vulgares (fiscal, monetária e cambial).
Estaria aberto, finalmente, o caminho da modernidade para “um novo Brasil”, tendo o ataque à desigualdade assumido centralidade governamental. Uma ilusão que coube somente ao passar do tempo desfazer.
Na teoria do subdesenvolvimento de Celso Furtado, por exemplo, o registro do desemprego, pobreza e concentração de renda, riqueza e poder resulta de consequência da própria incompletude do desenvolvimento (Criatividade e dependência na civilização industrial, 1978). A dependência externa, especialmente tecnológica e financeira, que acompanha o subdesenvolvimento, define a posição nacional no interior da Divisão Internacional do Trabalho.
Quanto mais essencial para o país a produção e exportação de commodities, caracterizada pelo menor valor agregado em comparação aos bens manufaturados, mais contida a capacidade de gerar postos de trabalho de maior qualificação e remuneração. Nessa situação, o ganho das exportações assentadas no latifúndio converge com a afluência dos ricos sobre as decisões do aparelho do Estado, cuja consequência seria a prevalência do abismo social, econômico e político.
Por refletir o grau de atraso nacional, o subdesenvolvimento e a dependência externa produzem, em consequência, a desigualdade em difusão por múltiplas dimensões. Além disso, as armadilhas da dependência externa impostas pela condição periférica no interior do sistema capitalista mundial terminam por reproduzir o subdesenvolvimento, distante de ser apenas uma etapa antecipatória da passagem natural ao desenvolvimento.
No projeto nacional desenvolvimentista, que edificou a sociedade urbana e industrial entre as décadas de 1930 e 1980, o mercado interno e o emprego assalariado, sendo protegidos, se fortaleceram com a internalização do sistema avançado de produção manufatureira. Pela assimilação do progresso tecnológico, intrínseco ao dinamismo do capitalismo avançado, a presença de grupos integrados às economias dominantes contribuiu para que o crescimento econômico potencializasse a modernização brasileira, sem romper, contudo, com a dependência externa.
A partir dos anos 1990, o Brasil abandonou a trajetória da industrialização, o que significou a estagnação da renda per capita acompanhada por inédito processo de desmodernização nacional. Diante do modo como se inseriu na globalização, o aprofundamento da dependência externa refletiu a especialização produtiva, responsável pelo reposicionamento brasileiro na Divisão Internacional do Trabalho enquanto economia exportadora de bens primários e importadora de mercadorias elaboradas com maior valor agregado e conteúdo tecnológico.
Em pleno avanço da Era Digital, o Brasil retroagiu à situação de grande importador de bens e serviços digitais, submetida à dinâmica da renda gerada pelas exportações de commodities. Neste primeiro quarto do século, a dependência externa tornou o subdesenvolvimento nacional ainda mais complexo, expresso pelo desemprego, pobreza e concentração da renda, riqueza e poder.
Por ser consequência do subdesenvolvimento e da dependência externa, a desigualdade seguidamente tratada com exclusividade pelos governos, secundarizou o real enfrentamento de suas causas. Uma ilusão desfeita pelo tempo a registrar a prevalência da desigualdade em suas múltiplas dimensões.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004..