A catástrofe do trabalho no Brasil

Um país de pobres e miseráveis como o Brasil deve sofrer muito os impactos das “contradições metabólicas” do capital (como tenho discutido alhures), tanto quanto o movimento das “contradições fundamentais” do capitalismo brasileiro.

Giovanni Alves

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 30/04/2021

Tenho salientado que o termo “catástrofe” tem um significado preciso, expressando a radicalidade do nosso tempo histórico (a palavra catástrofe significa em grego, katastrophe, “fim súbito, virada de expectativas”, de kata-, “para baixo”, mais strophein, “virar”. Essa palavra teve a sua origem no teatro, no antigo drama grego. Katastrophe era o momento em que os acontecimentos se voltavam contra o personagem principal, num movimento feito pelo coro inteiro no teatro). A década de 2010 foi uma década catastrófica para o Brasil: literalmente ocorreu uma “virada para baixo”. Nada nos permite dizer que a década de 2020 possa ser diferente, tendo em vista a permanência do bloco no poder que sustenta o Estado neoliberal no Brasil (o mesmo que operou o golpe de 2016 e apoiou a eleição de Jair Bolsonaro em 2018). Irremediavelmente, o Brasil foi projetado para uma nova temporalidade histórica do capitalismo permeado de agudas contradições sociais que vai exigir de nós, discernimento e capacidade crítico-analítica para decifrar as novas dimensões da precarização do trabalho no Brasil. Recorrendo novamente aos antigos gregos, diremos: “decifra-me ou devoro-te”.

Como determinação agravante das tendências catastróficas de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, tivemos em 2020 a pandemia do novo coronavírus que expôs de forma fulminante as fragilidades (e a incapacidade) do Estado brasileiro (sociedade política e sociedade civil neoliberal) em lidar com situações disruptivas, como por exemplo uma pandemia. Não se trata apenas de um problema de governo, mas de um Estado político do capital. Não foi apenas a estupidez política de Bolsonaro que o novo coronavírus expôs. Também ficou explicita a hábil competência do Estado brasileiro em matar “pobres”. Mas a mídia e a centro-esquerda (e até certo ponto própria esquerda) insistem em “demonizar” Bolsonaro como se o que devesse realmente preocupar não fosse o que está por trás dele e deve continuar mandando no Brasil. Bolsonaro é apenas o fiel encarregado da necropolítica constitutiva do Estado capitalista brasileiro e sua “elites” (o Leviathan invisível que opera a “miséria brasileira” com muita competência).

A partir do golpe de 2016 e, mais precisamente, a partir de 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro fomos projetados para a temporalidade histórica do que podemos denominar “capitalismo catastrófico” com impactos diversos nas esferas da vida social e destaco aqui, o mundo do trabalho. A pandemia foi apenas um operador heurístico que expôs com clareza tenebrosa, a miséria do trabalho no Brasil de Temer e Bolsonaro. As mudanças ocorridas no mundo do trabalho nos últimos cinco anos – pelo menos – não são mudanças contingentes que possam ser alteradas por uma mudança de governo, por exemplo. Elas vieram para ficar com o capitalismo brasileiro. Aboli-las representaria abolir o Estado neoliberal e destituir o bloco no poder oligárquico-burguês, o que é quase impossível de ocorrer pois falta o sujeito histórico coletivo organizado para isso.

Não existem retornos quando se trata de mudanças catastróficas. O que existe é uma nova linha de eventos que irão condicionar as ações dos sujeitos sociais daqui para frente. A pergunta a ser feita é o que pode fazer um governo de centro-esquerda com aquilo que a direita neoliberal fez com o Brasil a partir de Temer e Bolsonaro. Em 1852, em O 18 de brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx tornou mais precisa essa ideia numa formulação famosa: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (Boitempo, p.25).

No decorrer dos 5 anos do “Estado de exceção” (2016-2021) por conta da ilegitimidade do impeachment de Dilma e ilegitimidade da eleição de Jair Bolsonaro tendo em vista, naquela época, o impedimento injusto de Lula pela Operação Lava-Jato, hoje reconhecida pelo próprio STF como ilegal e injusta, ocorreram numa velocidade insana, mudanças disruptivas no mundo do trabalho no Brasil. Nunca antes no Brasil, em tão pouco tempo, foram tomadas medidas de alteração constitucional que reestruturaram irremediavelmente o mundo social do trabalho. Talvez só após o golpe militar de 1964 contra Goulart; e em 1988 com a constituição da Nova República, ocorreu uma reestruturação do capitalismo brasileiro desta envergadura com efeitos funestos no mundo do trabalho. Impotente, perplexa e sem direção política e social, a débil (e manipulada) sociedade civil, arrasada pela profunda recessão de 2015 e 2016, assistiu a tudo, bestificada. Entretanto, foi com a pandemia do novo coronavírus a partir de 2020 que se tornou explicita a pornografia do trabalho capitalista no Brasil neoliberal.

A nova configuração do trabalho no Brasil, a partir da ruptura catastrófica em 2016, deve ser entendida em um primeiro momento como resultado da nova ofensiva neoliberal que representou efetivamente o governo de Michel Temer (2016-2018). Por um lado, Michel Temer afirmou a política econômica neoliberal que depois da longa recessão de 2015-2016, manteve a economia brasileira estagnada, situação utilizada como ardil pelo governo para justificar imoralmente, a lei de teto do gasto público, a lei da terceirização e a reforma trabalhista (as reformas fariam o Brasil crescer e gerar empregos). Pura mentira. O índice de desemprego em 2018, último ano do governo Temer, continuava em níveis altíssimos (13,1%) atingindo mais de 12 milhões no fim de 2018 (quase o triplo do desemprego em 2014 que registrou a menor taxa de desemprego já registrada: 4,8%, de acordo com o IBGE). Apesar de ter saído da recessão, a economia brasileira cresceu em 2018, 1,1%. O alto desemprego permanente contribuiu para a “economia de bicos” (gig economy) e a uberização do trabalho no Brasil. As medidas da Reforma Trabalhista – o aprofundamento da flexibilização do trabalho, as novas modalidades de contratação precária (trabalho intermitente), a regulamentação do teletrabalho, o desmonte do sindicalismo e o bloqueio de acesso à Justiça do Trabalho – sacramentaram o precário mundo do trabalho no Brasil.

É claro que, pelo menos desde a década de 1990, temos uma ofensiva do capital que criou de modo lento e progressivo o novo precário mundo do trabalho no Brasil. O que o governo Michel Temer fez foi apenas dar prosseguimento (e aprofundar) a dita “flexibilização do trabalho” e o desmonte da CLT, iniciada com os governos neoliberais da década de 1990. A profunda crise do capitalismo brasileiro em meados da década de 2010, inserida no quadro da longa depressão capitalista a partir do crash financeiro em 2008 nos EUA, obrigou as várias frações da burguesia brasileira, operadora do Estado neoliberal, a “cuspir” o governo neodesenvolvimentista e aprovar as reformas estruturais adequadas para blindar o fundo público de acordo com seus interesses do capital financeiro; aumentar a exploração da força de trabalho visando retomar a taxa de lucro (a Reforma Trabalhista); e espoliar as riquezas da Nação de acordo com o cânone neoliberal.

Michel Temer iniciou a operação “desmonta Brasil” e Jair Bolsonaro deu prosseguimento a ela com a Reforma da Previdência e a alienação dos direitos previdenciários do mundo do trabalho: a degradação do mundo do trabalho, com o desemprego em massa e o aumento da desigualdade (e miséria) social, correu paralela às iniciativas parlamentares para “renovar” o capitalismo brasileiro diante de sua crise estrutural. Além de estar condenada aos “empregos de merda” como dizia David Graeber, ao trabalho precário (“bicos”) sob a alcunha de autoempreendedorismo, a multidão da força de trabalho – inclusive os mais escolarizados – ficou condenada a trabalhar por toda a vida (“vida reduzida” a trabalho estranhado), aposentando-se apenas com a morte física. A lógica do sobrevivencialismo domina hoje o mundo do trabalho no Brasil. A pandemia do novo coronavírus e a necropolítica do governo Bolsonaro apenas explicitaram, intensa e extensamente, a miséria do trabalho no Brasil neoliberal. Mas tudo estava contido no movimento da reestruturação neoliberal do capitalismo brasileiro – inclusive sua performance necrófila. Como observou o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, a sociedade neoliberal não é apenas a sociedade do cansaço e da autoexploração (como vemos nas práticas do teletrabalho, o dito home office) que reduzem a vida à trabalho estranhado), mas ela é também – e cada vez mais – a sociedade da luta pela sobrevivência. Talvez ele não conheça o Brasil, mas aqui há tempos, a oligarquia liberal-financeira escravista que domina o Estado brasileiro transformou o Brasil no país do sobrevivencialismo. O filosofo sul-coreano apenas constatou o óbvio: esta é a forma de ser do capital (o mundo da concorrência não apenas entre os múltiplos capitais, mas entre a multidão da força de trabalho) e a forma de ser do trabalho estranhado no capitalismo histórico na era de sua crise estrutural. A questão da autoexploração é elemento compositivo do capitalismo manipulatório e do espírito do toyotismo discutido por nós no livro Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011).

Mas a problemática do sobrevivencialismo não diz respeito apenas ao mundo de miseráveis que habitam há tempos o Brasil e que hoje, em sua maioria se preocupam cotidianamente em não morrer de fome. Com a catástrofe do trabalho, mesmo nas camadas médias assalariadas, o “sobrevivencialismo” é um elemento de preocupação. A pandemia expôs (e aprofundou) a trágica realidade do sobrevivencialismo do trabalho capitalista catastrófico no Brasil. Mas, o sobrevivencialismo das camadas médias é de outra natureza: elas se preocupam em não se “miserabilizar”, isto é, lutam para que o padrão de vida delas não caia ao nível dos “pobres”.

Diante da pandemia e com o “capitalismo virótico” (como diria Ricardo Antunes), a dura luta pela sobrevivência sofre “radicalização viral” (como diria Byung-Chul Han). A guerra contra o vírus intensifica a luta pela sobrevivência. O vírus transforma o mundo em uma quarentena em que a vida fica completamente estagnada, transformada em pura sobrevivência (o que Karl Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, denunciava: “O que é animal se torna humano, e o que é humano se torna animal”). Assim, o capitalismo em sua fase de crise estrutural, explicita a sua natureza de modo catastrófico: o que mais nos preocupa hoje é sobreviver, como se estivéssemos em um estado de guerra permanente. Na luta pela sobrevivência, a questão da qualidade de vida não se coloca. Todas as forças vitais são aplicadas para prolongar a vida a qualquer custo. É a lógica voraz do mercado que adquire dimensões colossais no Brasil neoliberal, incitando o individualismo e o afeto narcísico dos sujeitos acuados pelo vazio da concorrência. Eis aí o elemento da barbárie social: o rebaixamento civilizatório que, em nome da “sobrevivência”, nos obriga a renunciar aos direitos à uma vida plena de sentido – inclusive o direito à vida saudável e com tempo livre para preservar a dignidade física e espiritual. A ordem “desumana” do capital do século XXI é: sobreviva, se for capaz.

Identificamos na primeira década do século XXI, a década de 2000, o desenvolvimento daquilo que denominamos “nova precariedade salarial”, caracterizada pelas (1) novas modalidades de contratos de trabalho precário; (2) a adoção da gestão toyotista nas organizações privadas e públicas; (3) e a nova base tecnológico informacional. As mudanças da década de 2010, identificadas como “uberização” do trabalho, estavam contidas na formulação original da nova precariedade salarial. O que ocorreu foi que, após a grande crise capitalista de 2008, a nova precariedade salarial adquiriu impulso histórico com o surgimento do “capitalismo de plataforma”. Assim, a nova precariedade salarial fez manifestar de modo contundente, a dita “uberização” do trabalho. No Brasil, a Reforma Trabalhista do governo de Michel Temer (2017) deu o acabamento jurídico-institucional à degradação do trabalho no Brasil, formatando o novo modo de consumo da força de trabalho no Brasil (a superexploração do trabalho na sua forma extensa). Ao mesmo tempo, a grande recessão de 2015-2016 e a estagnação da economia brasileira nos governos Temer e Bolsonaro, contribuíram para a explosão do desemprego em massa e a informalização do trabalho no Brasil, abrindo um imenso mercado de trabalho vivo para a “economia de bicos” no País com o dito “trabalho por aplicativo”. Com a pandemia em 2020, o teletrabalho tornou-se a “nova normalidade” do trabalho nas organizações públicas e privadas.

Com o aprofundamento da nova precariedade salarial, a classe trabalhadora brasileira foi implodida nos seus referentes objetivos e subjetivos (contrato de trabalho, remuneração salarial e local de trabalho). Com a nova informalização do trabalho, desapareceu aquilo que demarcava a possibilidade efetiva da constituição do “em-si” da classe. Restou apenas a condição de proletariedade exacerbada pela miserabilização de operários, empregados do setor privado e setor público. A consciência de classe foi abatida de modo fulminante, mesmo na incipiência do “em-si” da classe (a destruição do sindicalismo brasileiro e o travamento do acesso à Justiça do Trabalho pela Reforma Trabalhista de 2017 foram elementos flagrantes). A incipiente (e eleitoralmente insignificante) esquerda brasileira perdeu de vez sua base social, resistindo em trincheiras esparsas do sindicalismo de classe resistente no seu formato corporativo.

A plataformização do trabalho cresceu de modo exuberante de 2014 à 2021 por conta do colapso do emprego e pela performática ideológica do autoempreendedorismo como mera estratégia de sobrevivência diante do mercado de trabalho colapsado. O Brasil sofreu um terremoto social que foi agravado com a chegada da pandemia do novo coronavírus em 2020. Como diz o ditado popular, “desgraça pouca é bobagem”: logo após o nefasto governo de Michel Temer (2016-2018), tivemos a eleição do bizarro capitão Jair Bolsonaro e a seguir, em 2020, a disrupção da pandemia do novo coronavírus. Assim, como se não bastasse o terremoto neoliberal com a lei do teto do gasto público, reforma trabalhista/lei da terceirização e a reforma da previdência, ocorreu o tsunami da pandemia do novo coronavírus que prossegue devastando a superpopulação relativa produzida pelo capital (a devastação pandêmica a serviço do capital deve continuar exterminando trabalho vivo no decorrer da década de 2020). Eis a competência necrófila de Jair Bolsonaro, fiel escudeiro do Estado neoliberal apodrecido: o capital agradece a morte de quase meio milhão de brasileiros “inúteis” e “improdutivos”. Para o capital, eles são apenas CPFs cancelados. Portanto, ironicamente, Bolsonaro faz a “prova dos nove” de 30 anos de neoliberalismo no Brasil (1990-2020), exacerbando a precariedade salarial – nova e a velha.

A “miséria brasileira”, um conceito que temos desenvolvido alhures, tal como um fóssil vivo, foi exposta pela conjuntura catastrófica. Não se trata mais de eufemismo: o Estado brasileiro apodreceu irremediavelmente. A República não cabe mais no seu farsesco receptáculo político. O politicismo pariu a politicagem – inclusive nas hostes da esquerda social-liberal (o que Carlos Nelson Coutinho, a partir de Gramsci, denominou de “pequena política”): a representação política degradou-se irremediavelmente de modo historicamente inédito (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, como diria Cazuza, “estão cheios de ratos”), aprofundando a crise de representação anunciada desde o começo da década de 2000 pelo saudoso Francisco de Oliveira (vide os livros publicados por ele na Boitempo). Resultado da imbecilização e ignorância popular como projeto de dominação de classe, a monstruosa representação política adquiriu vida própria e se volta para matar de vez aqueles que a legitimam (“Eles não sabem o que fazem”?). Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal (STF), elemento do golpe de 2016, expôs a crise de justiça no país. Ao invés de guardiães da Constituição-Cidadã, tornaram-se operadores sutis dos interesses dos grupos de poder de classe – nunca o STF legislou tanto sobre matérias trabalhistas a serviço do grande empresário e nunca o ativismo judicial foi tão vociferante a serviço do bloco no poder (o exemplo maior foi a Operação Lava Jato conduzida a contento pelo “juiz” Sérgio Moro). Depois de feita a derrubada de Dilma e o aprisionamento de Lula (a nobre tarefa política do bloco neoliberal no poder) e sendo eleito Jair Bolsonaro, quase como síntese concreta ou resultado bizarro do golpe de 2016, caiu em 2021 a máscara da face da Operação Lava Jato. O STF, em um surto de suspeita lucidez jurídica, desconstruiu os julgamentos de Sérgio Moro…E depois? Quem viver, verá.

Mas após a breve contextualização política do Brasil de Temer a Bolsonaro, resta-nos no calor do massacre da pandemia do novo coronavírus e da desfaçatez da política necrófila do Estado brasileiro – Estado menos suicidário, como diria Vladimir Safatle, e mais necrófilo e genocida (e diríamos mais, há tempos o Estado oligárquico-burguês é genocida) – olharmos os números do mercado de trabalho em fins de 2020 (a partir de artigo, não publicado, do economista do Dieese Clemente Ganz Lucio):    

“Em fins de 2020, apenas 47,1% das pessoas com idade para trabalhar possuem uma ocupação no Brasil. Salientemos que isso corresponde à menor taxa da série histórica. Cerca de 14,6% da população está buscando emprego (desempregados). Mais uma vez, está é a menor taxa da série histórica. Outros 5,9 milhões de brasileiros desistiram de buscar empregos (estão ‘desalentados’, como dizem os economistas do trabalho). E mais uma vez: é a maior taxa da série histórica. Apenas 29,4 milhões de brasileiros possuem carteira assinada. Só no trimestre julho-agosto-setembro de 2020, o país perdeu 788 mil postos de trabalho formal. Entre outubro de 2019 e setembro de 2020 o Brasil fechou 11,6 milhões de vagas de trabalho. Enquanto isso, os alugueis subiram 25% em um ano (2020). E o índice Bovespa (apesar da fuga massiva do capital estrangeiro) vive dias de glória, a maior expressão da insanidade capitalista festejada por aqueles que representam a nata da classe dominante no Brasil (investidores rentistas-parasitários, banqueiros e empresários da devastação ambiental e da exploração das commodities)”.

Como observou de modo veraz, o economista do Dieese, “é evidente que a uma mudança estrutural no perfil da economia brasileira”. Entretanto, não se trata apenas disso. É preciso observar de maneira ampla o processo histórico de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Como dissemos acima, trata-se de uma catástrofe, quase uma crônica de morte anunciada (desde os governos neodesenvolvimentistas), que nos projeta historicamente para uma nova forma de ser do capitalismo brasileiro, o que temos caracterizado como sendo o “capitalismo catastrófico” no sentido do rebaixamento irremediável do patamar civilizatório, não mais possível nos países capitalistas dependentes e subalternos do arco hegemônico neoliberal dos Estados Unidos e da União Europeia. Nada será como antes. Com a crise do capitalismo global, o golpe de 2016 fez o “ajuste do poder” travando qualquer veleidade de países como o nosso, de posicionar-se de modo soberano e independente diante da grande conflagração do século XXI: a disputa pela hegemonia do capital global entre EUA-União Europeia e China (e Rússia). Alea jacta est.

O novo cenário da economia brasileira, quase o avesso histórico daquilo que caracterizou a economia capitalista no Brasil após o golpe de 1964 (outra grande fratura histórica operada pelas classes dominantes e sua pulsão golpista), é o seguinte:

  1. Desindustrialização galopante. A indústria brasileira hoje responde pelo mesmo percentual do PIB que possuía em 1947.
  2. Incapacidade de desenvolver o setor de serviços ligados à indústria.
  3. Queda constante de empregos formais.
  4. Aumento do desemprego e do número de pessoas desalentadas (que deixaram de procurar empregos). E queda constante no percentual da população que ainda possui alguma ocupação.
  5. Aumento expressivo do ganho do rentismo.

Clemente Ganz Lúcio acerta quando diz: “os efeitos dessa mudança serão sentidos por décadas”. Mas diremos mais: o capitalismo catastrófico no Brasil, o país da Casa Grande e Senzala, o país do fim do mundo outrora “país do futuro” (como disse Stephen Zweig, que exilou-se da Alemanha em 1940 para cometer suicídio no Brasil em 1942, deprimido com a expansão da barbárie nazista pela Europa durante a Segunda Guerra Mundial), tal capitalismo catastrófico representa de modo explícito – quase pornográfico – as mutações estruturais que ocorrerem no cenário da longa depressão do capitalismo global. Dessa nova dinâmica da economia capitalista no Brasil deverá sair – e está saindo e saiu – um outro precário mundo do trabalho. Estamos nós preparados para ele? Ou trocamos a análise crítica radical pelo lamento saudosista do passado glorioso do mundo do trabalho organizado no Brasil?

Temos desenvolvido a ideia de que desde 2008, com a grande recessão, o capitalismo global – com exceção da China e mesmo assim, com a redução do seu crescimento em PIB a partir de 2014 – não conseguiu se recuperar a contento. As taxas de crescimento da economia ficaram abaixo daquelas de antes de 2008. Como toda depressão da economia capitalista, desde 2008 tem ocorrido crescimento do PIB, entretanto, ele tem se demonstrado não-sustentável, não conseguindo operar, de modo virtuoso, o ciclo industrial clássico. Na verdade, com o novo patamar da crise estrutural do capital, conceito candente do filósofo marxista István Mészáros, alterou-se a qualidade do ciclo capitalista, embora keynesianos e marxistas ainda avaliem o futuro com os óculos do passado – como se o capitalismo pudesse operar ad aeternum seus ciclos de crise e recuperação. Mas não é bem assim. O movimento do capital opera por cumulatividades que provocam saltos qualitativos, que alteram a margem de possibilidades do sistema do capital operar movimentos contratendenciais à irremediável queda da taxa de lucro e deslocamentos de suas contradições metabólicas e fundamentais. O sistema do capital, incapaz de operar a “destruição criativa”, como diria Schumpeter, obriga-se no século XXI a operar a “produção destrutiva” – e nesse caso, destruição de trabalho vivo e da natureza como ecossistema – isso pelo menos desde a década de 1970.

A longa depressão do capitalismo global, desde 2008, operou mudanças radicais na dinâmica do desenvolvimento das economias centrais e periféricas. O afundamento do Brasil ocorreu pela sua peculiaridade de ser ele, o elo mais forte do imperialismo na América do Sul, representando uma peça importante do xadrez geopolítico global para o Departamento de Estado norte-americano. Ocorrem deslocamentos importantes nas placas tectônicas da geopolítica e economia global do século XXI. A maioria dos cientistas sociais ainda quer apreender o futuro com os óculos do passado. Como diz o poeta, “o passado não nos serve mais”. A globalização pariu…o monstro.

A lumpenização da burguesia brasileira é resultado do processo histórico de crise estrutural do desenvolvimentismo que ocorre há décadas no Brasil – pelo menos desde a crise da dívida externa, em 1980. O país da grande burguesia senhorial, medíocre e canalha, subalterna aos interesses do imperialismo desde sempre – nunca tivemos uma classe de burguesia nacional – diante da mundialização do capital, renunciou qualquer projeto protagônico de economia em desenvolvimento, operando na terra brasilis a integração subalterna à mundialização financeira. Esse foi o projeto agônico do “príncipe dos sociólogos” (Fernando Henrique Cardoso), que teve o nobre papel de operador do Brazil S.A nos idos da década de 1990, “superando” a dependência pela integração do Brasil à ordem global, renunciando a qualquer projeto civilizatório do velho MDB de Ulisses Guimarães e Severo Gomes e o PSDB raiz de Franco Montoro e Mario Covas. A burguesia paulista, exemplo-mor da longa degradação burguesa no Brasil, lumpenizou-se, tendo hoje nos seus próceres políticos, a expressão singela da farsa pseudo-desenvolvimentista (quem diria, Franco Montoro “acabou no Irajá”… com João Dória). A integração subalterna à mundialização neoliberal caracterizou os governos neoliberais desde Collor, FHC, Temer e Bolsonaro (o fim da picada, como diríamos).

Enfim, a lumpenização da burguesia no Brasil tem como contraface, a lumpenização do seu proletariado imerso na condição de proletariedade. Capital e Trabalho, pólos antípodas e reflexivos se bastam. Presenciamos hoje, a realização daquilo que o saudoso Francisco de Oliveira caracterizou como o desmonte do trabalho na mesma medida do desmonte do projeto de desenvolvimento capitalista (Maria da Conceição Tavares que o diga). Enfim, em 30 anos de capitalismo  neoliberal no Brasil, alteraram-se os fundamentos de possibilidade efetiva da civilização brasileira. Não se trata apenas de mercado de trabalho propriamente dito ou da economia brasileira como exposto acima. Há décadas o Brasil tem se tornado outro Brazil (o que uma certa esquerda marxista saudosa do século XX insiste em não querer refletir – o que não é nenhuma novidade). Como tratamos acima, a nova precariedade salarial se disseminou e deu saltos qualitativamente novos, adquirindo formas exuberantes com outro nome: “uberização do trabalho”, um termo que não diz absolutamente nada, a não ser que o mundo do trabalho não é mais o mesmo. A velha precariedade salarial foi substituída pela nova precariedade informacionalizada informalizada, como diria Ricardo Antunes. A “nova informalização” do trabalho vivo sob o capital, oculta cada vez mais o caráter de subalternidade estrutural à lógica do valor. Entretanto, a morfologia do trabalho vivo alterou o movimento da “classe” do proletariado na raiz, isto é, nas condições de produção e reprodução da vida social. Tem ocorrido densas (e profundas) mudanças sociometabólicas na forma do trabalho vivo. É isso que precisamos investigar para ir além da mesmice empirista da sociologia (e economia) do trabalho. Do precariado aos proletaróides (o proletariado com cabeça burguesa), afirma-se uma nova objetividade e subjetividade do novo e precário mundo do trabalho para além de sua forma tecnológica (informacional, dita “uberizada”), que tem várias faces vivas que precisam ser decifradas a partir da estrutura da sua cotidianidade sobrevivencialista. É preciso uma visão de conjunto que a sociologia do trabalho convencional é incapaz de fazer devido ao seu DNA positivista. Ao invés de descrever a totalidade concreta, o empiriscista goza com o fragmento que capta no pobre (e deslumbrante) dado empírico. A ausência da lógica dialética expõe o nanismo critico-analítico do positivismo crassante na sociologia (e economia) do trabalho (a psicologia do trabalho é uma caso a parte: incapaz de articular estrutura e ação social, objetividade e subjetividade, suas percepções empíricas do psíquico laboral se esfumam no ar). As novas mutações do capital “afetado de negação” devido ao “salto mortal”  da produtividade do trabalho, exige no plano  do conhecimento crítico, o desvendamento da totalidade social da “classe” a partir de seus fundamentos da economia política. O movimento da “classe” deve ser apreendido nos nexos efusivos das suas contradições fundamentais (e não-fundamentais) operantes no plano mediativo da estrutura da vida cotidiana dos sujeitos. Além disso, o movimento da “classe” deve ser apreendido não apenas a partir de si, mas a partir de seu antípoda (a burguesia e suas frações e seu Estado político), com suas mutações sendo operadas pela lei da concorrência entre os múltiplos capitais (a exposição do Livro 1, 2 e 3 de O Capital, de Karl Marx, nos ensina a perfilar onto-metodologicamente o movimento da crítica da positividade do capital.

A figura bizarra do “proletaroide de classe média” merece um artigo único capaz de decifrá-lo. Ele é o microempreendedor individual ou apenas empresário de si que não é nada mais do que um proletário de si mesmo. Incapaz de consciência de classe, torna-se delirante e adoece diante da contradição “nua e crua” do capital.  O capitalismo farsesco no Brasil, de tão exuberante, tornou-se nauseabundo. A consciência de classe foi afetada na sua base matricial, embora se manifeste de forma fantasiosa ou farsesca nos rótulos identitários (o que não tem nada a ver – de imediato – com a classe social). Na verdade, o identitarismo e seus recortes ideológicos são um sintoma do apodrecimento e lumpenização do proletariado brasileiro – na mesma medida do seu antípoda, a classe dos capitalistas brasileiros que se encontra hoje representado na figura hoje grotesca de Paulo Guedes.

A crítica ao identitarismo e à política das diferenças é necessária mais do que nunca, e não deve confundir-se com o não-reconhecimento das diferenças de gênero, cor/raça, etnia, etc – que constituem a classe social. A categoria que opera a emancipação social é – sem mais, nem menos – a categoria de classe social. É a partir dela que se deve organizar a luta de classes capaz de enfrentar o capital. Trata-se de verdade histórica indiscutível. É claro que se pode e deve-se fazer a luta de classes articulando a luta das mulheres e negros que trabalham, mas reforçando no plano da consciência contingente, a necessária consciência de classe. A disseminação da ideologia identitarista, tal como observamos hoje no seio do movimento social do Brasil, é também resultado da fraqueza estrutural da esquerda socialista brasileira. Nesse ponto, perdemos feio a luta ideológica para a burguesia lumpenizada que possui e muito, uma poderosa máquina de formar (e deformar) a consciência contingente da “classe”. Tal ideologia liberal permeia inclusive, partidos de esquerda (PT e PSOL). Enfim, a fragilidade objetiva e subjetiva do proletariado brasileiro torna-o refém de fantasias ideológicas – e algumas delas, delirantes – tal como o empreendendorismo e o identitarismo de cunho liberal (quase sintomático da crise do sentido e ensimesmamento que corrói a subjetividade do proletariado popular e de classe média no Brasil).

Finalmente, podemos concluir que as mudanças estruturais da reprodução social não tem sido tratadas de modo candente pelos analistas sociais na perspectiva de mudanças sociometabólicas do trabalho vivo (a sociologia do trabalho tem privilegiado a descrição da morfologia do trabalho ao invés da apreensão do metabolismo social do capital – a articulação dialética entre objetividade e subjetividade do trabalho vivo). Vejamos algumas linhas de problematização do trabalho hoje: é importante dar atenção às mudanças demográficas no Brasil dos últimos trinta anos, que envelheceu demograficamente e desperdiçou na virada da década de 2010 para 2020, o “bônus demográfico” que, segundo alguns autores, poderia colocá-lo numa posição mais confortável no suposto desenvolvimento social imaginado pelos demógrafos e reformistas de plantão. Expressam-se no Brasil, tendências de desenvolvimento globais. Envelhecemos de modo acelerado por conta da queda da taxa de fertilidade, que teve uma queda abrupta nas últimas décadas (o mesmo está ocorrendo desde a década de 1970, pelo menos, com todos os países do capitalismo global, talvez com exceção ainda da Índia e da África subsaariana). Portanto, não é apenas o Brasil que envelhece, mas o mundo global por conta da dita Segunda Transição Demográfica. A partir daí, deve crescer no século XXI aquilo que denominamos “gerontariado“. Portanto, tem-se alterado, a médio e longo prazo, o metabolismo social do trabalho vivo no Brasil. A força de trabalho mais envelhecida vai ser diferente no plano sociometabólico daquela mais jovem que caracterizou o Brasil do desenvolvimentismo.

Outro elemento de mudança estrutural da sociabilidade do trabalho no Brasil são as novas formas de organização da família nas camadas populares e “classes médias” proletarizadas. É preciso incorporar à percepção das mudanças estruturais nesse grupo fundamental da sociedade brasileira, o entendimento das novas dimensões da precarização do trabalho que é também precarização da vida com rebatimentos na vida familiar. Às mutações da organização familiar e da precarização do trabalho e da vida, confluem-se (e retroalimentam) a emergência disruptiva, no plano sociocultural, de novas subjetividades (identidades) sexuais que objetivamente entram em contradição com a estrutura tradicionalista da vida brasileira.

O desmoronamento da Tradição, Família e Propriedade no Brasil, por conta da decomposição do projeto civilizatório desenvolvimentista e das forças centrífugas do capitalismo global a partir da década de 1990, instaurou no campo simbólico-subjetivo uma profunda crise de sentido ou crise espiritual. Imerso nas aflições do capitalismo catastrófico, as individualidades pessoais “pobres de espírito” nas sociedades pós-tradicionalistas foram conduzidas como rebanho às hostes da Teologia da Prosperidade, a face cripto-religiosa do capitalismo manipulatório nas suas versões populares e de classe média ressentida. O vazio espiritual deflagrado pela burocratização da esquerda social e política que se afastou da organização de base (sindical e associativa) e da formação da classe dando-lhes um sentido à grande política; a omissão reacionária do catolicismo neodireitista e carismático, impulsionado pela gestão de João Paulo II no Vaticano, o Papa neoliberal que desmontou os focos da Teologia de Libertação na América Latina e afastou a Igreja da aflição dos pobres; e a proliferação da “vida reduzida” impulsionada pelo capitalismo neoliberal indiferente às misérias do cotidiano do proletariado na sua singularidade pessoal, contribuíram para a irrupção das seitas evangélicas, “correias de transmissão” do jogo da politicagem metropolitana de direita e instrumento de lavagem de dinheiro (o que explica a intercessão do crime organizado pelo narcotráfico, mundo financeiro e político e Igrejas neopentecostais no Brasil). Isto tudo é também uma problemática do trabalho nas condições históricas do capitalismo catastrófico.

Portanto, ocorrem significativos deslocamentos das placas tectônicas na produção e reprodução social do trabalho vivo nas condições históricas de crise do capitalismo global. É mediocridade critico-analítica de cariz positivista fragmentar o real histórico e reduzir a problemática do trabalho à dimensão salarial. A “classe” se faz classe como sujeito histórico no plano sociometabólico – que inclui o politico-ideológico. Diante das mutações sociológicas e antropológicas da sociedade brasileira nos trinta anos de neoliberalismo, o capital recompõe suas formas de dominação adequadas à era da barbárie social. Por isso se explica a crise terminal da esquerda social e política, inclusive a de cariz social-liberal como o PT e PSOL, que sob pressão das mudanças geológicas do social, reativo às emergências indicadas acima, é obrigado a adaptar-se à contingencia alienada da “classe”, tendo em vista que renunciou em formá-la como sujeito histórico.

No plano epistêmico salientado acima, a perspectiva pós-modernista é incapaz de fazer a apreensão totalizante, crítica e dialética, histórica e materialista do mundo do trabalho. O pós-modernismo corrói efusivamente o pensamento critico, sendo um contributo inestimável à miséria ideológica brasileira. É ele que rebaixa o nível cognitivo dos intelectuais acadêmicos imersos nos seus particularismos de carreira e impressionismos festivos pseudo-críticos. Ao invés de resgatar a visão da totalidade social, única capaz de fazer a crítica do capital, cai na visão particularista e fragmentária do real.

Enfim, como não nos preparamos para o futuro – o futuro já chegou; e como temos uma lumpen-burguesia rentista-parasitária obcecada exclusivamente apenas em espoliar (e obter renda) da Natureza (trabalho vivo e ecossistema natural), tal como tem sido há séculos (diria Caio Prado Jr., eis o sentido da colonização), tais problemas emergentes do século XXI devem tornar-se uma tragédia catastrófica para o Brasil: mudanças socioculturais de cariz pós-tradicionalista (a implosão da organização familiar, irrupção das novas identidades sexuais, o disrupção do protagonismo da mulher numa sociedade patriarcal-machista, a ascensão do neopentecostalismo, etc); mudanças ecológicas (o colapso ambiental decorrente da crônica devastação promovida por uma burguesia de espírito predador: poluição do ecossistema, devastação de florestas e extinção de espécies, etc.); e mudanças demográficas (o envelhecimento populacional e alterações na estrutura etária do mundo do trabalho). Em linhas gerais, esses são os desafios e o fardo do tempo histórico da sociedade brasileira no século XXI, isto é, a catástrofe do trabalho no Brasil.

Na medida em que sistemas públicos de saúde e educação estão sucateados (que o diga a pandemia!) e,  ao mesmo tempo, os sistemas de informação e comunicação de massa ou ainda, os fornecedores do “ópio do povo” estão – como não poderiam deixar de ser num Estado capitalista – a serviço da lumpen-burguesia, o capitalismo catastrófico brasileiro expõe de forma fulgurante a incapacidade da sua classe dominante de enfrentar os desafios do futuro que nos batem à porta. Essa é uma das lições da pandemia que deve ser dita e amplificada.

Concluiremos o longo artigo com a esperança de que, diante da pandemia, a questão da saúde pública possa ser politizada no sentido da formação da consciência de classe. Vacina é importante, mas recursos orçamentários para ampliar e fortalecer o SUS são mais importantes ainda, pois se morre no Brasil de muitas doenças infecciosas, além da pandemia de transtornos mentais – e isso deve aumentar nas próximas décadas devido às mutações ecológicas globais. Entretanto, para que isso ocorra, é preciso mudar o Estado brasileiro e não apenas o governo: derrubar a lei do teto do gasto público e a obsessão com a responsabilidade fiscal em detrimento do bem-estar social, é condição sine qua non para fortalecer os serviços públicos de saúde e educação. Essa é a maior questão do mundo do trabalho no Brasil nas próximas décadas. Apesar da esperança, não vejo sujeito político, nem classe social efetiva capaz de operar a construção do novo Estado brasileiro. Essa é a nossa tragédia.

Um país de pobres e miseráveis como o Brasil deve sofrer muito os impactos das “contradições metabólicas” do capital (como tenho discutido alhures), tanto quanto o movimento das “contradições fundamentais” do capitalismo brasileiro. No capitalismo da Quarta Revolução Industrial ou Indústria 4.0, o trabalho vivo (e a força de trabalho) tornou-se demasiadamente redundante. A superpopulação relativa  do capital cresceu de forma exacerbada, alterando-se qualitativamente, tornando-se assim, um fardo pesado para o capital global. Existe hoje uma multidão imensa de pessoas sem valor. Na medida em que ocorre a dessubstancialização do capital, impõe-se a lógica automática do capital como valor “afetado de negação”. Tendo em vista a sua recomposição catastrófica, o desenvolvimento do valor impõe um movimento contundente de desvalorização, não apenas do capital constante (Quarta Revolução Industrial), mas do capital variável (a força de trabalho). Portanto, a lógica das coisas é a lógica da morte, isto é, necropolítica – consciente ou não. Fiquemos atentos: o Brasil tem uma larga tradição histórica nisso. Por isso, estamos na linha de frente do rebaixamento civilizatório global e a nossa condição colonial-escravista nos qualifica para isso. A pandemia foi uma graça divina do Deus Capital. No caso do Brasil, a barbárie social faz parte da ordem das coisas há décadas e deve agravar-se mais. Como diria o velho Karl Marx, hic Rhodus, hic salta!.

Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org

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