A banalização da morte de trabalhadores

Funcionário de um supermercado em Recife morre e seu corpo é coberto por guarda-sóis e isolado por caixas e tapumes improvisados. Fotografia: Renato Barbosa/WhatsApp

A banalização da morte de trabalhadores não é novidade, mas a crueza de histórias como a de Manoel escancara fatos que preferimos não ver.

Ananda Tostes Isoni

Fonte: Jota
Data original da publicação: 26/08/2020

“Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego.”
Chico Buarque, Construção

A cena é aterradora: guarda-sóis, engradados de cerveja e caixas de leite em pó escondem do público o corpo de um trabalhador morto. Manoel Moisés Cavalcante atuava como promotor de vendas em um supermercado, quando sofreu um infarto
que o levou a óbito. A loja não interrompeu as atividades. Consumidores continuaram a comprar, trabalhadores continuaram a cumprir ordens. Pouco depois, aqueles produtos que esconderam o corpo de Manoel estariam nas estantes.

A banalização da morte de trabalhadores não é novidade, mas a crueza de histórias como a de Manoel escancara fatos que preferimos não ver. Tornou-se lugar-comum dizer que algum grau de miopia social é necessário para seguirmos vivendo. A
realidade, afinal, pode ser insuportável.

Pouco a pouco nos dessensibilizamos ao sofrimento do outro e, de súbito, acordamos desse estado letárgico com um retrato que diz: o respeito pelo
falecimento de um trabalhador vale menos do que o lucro com as vendas do dia.
Desse duro despertar advêm indignação e notas de retratação, seguidas de esquecimento.

Foi a reação apática à morte de Manoel que fez lembrar o falecimento do modelo Tales Cotta Soares, horas depois de haver desmaiado na passarela da São Paulo Fashion Week, em 2019. Nenhum desfile foi cancelado. Em ato de protesto, o rapper
Rico Dalasam subiu então ao palco para criticar a indiferença à morte de Tales “como se a vida não valesse nada”. Os espectadores reagiram com aplausos, mas permaneceram no evento.

A incoerência da reação da plateia na ocasião reflete uma sociedade que se inflama diante do desprezo à vida, mas não promove mudança. Ovacionado, Dalasam protestava: enquanto os ricos não lamentarem a morte das pessoas “a agonia vai
estar no travesseiro de todo mundo”.

O desrespeito à vida da pessoa que trabalha, empregado ou não, assume contornos ainda mais graves quando a ação ou omissão do tomador de serviços concorre para seu adoecimento. Também nesse caso o valor da vida do trabalhador é relativizado em prol do “bom” funcionamento de empresas que o substituem tal qual uma peça
de engrenagem. Não há tempo para o cuidado – não há tempo sequer para o luto – quando o mercado dita as regras.

Embora o direito a um ambiente de trabalho seguro tenha amparo na Convenção no 155 da Organização Internacional do Trabalho, aprovada por meio do Decreto Legislativo no 2/92, e nos artigos 7o, XXII, 200, VIII, e 225 da Constituição, não é incomum a inversão da lógica de que a prevenção de riscos deva se sobrepor à reparação de danos. Em uma economia orientada à maximização do lucro, as
balizas são traçadas de forma a priorizar a redução de custos: vale o que pesar menos no bolso do patrão.

Se em circunstâncias ordinárias essa distorção preocupa, em um cenário de crise sanitária ela assume proporções alarmantes. Não se trata apenas de questionar a flexibilização prematura das medidas de isolamento social. É necessário também assegurar que a retomada oportuna das atividades presenciais ocorra de forma gradual, planejada e monitorada, em condições de trabalho seguras.

Nesse contexto, há que se preservar o direito de recusa ao trabalho presencial a pessoas pertencentes a grupos de risco, extensível a todos trabalhadores e trabalhadoras a quem se imponha o retorno a um ambiente de trabalho desprotegido. No ponto, preocupa o argumento de que, em tais situações, ao empregado caberia apenas requerer a rescisão do contrato de trabalho, por “correr
perigo manifesto de mal considerável” (art. 483, “c”, da CLT). Resumir a complexidade da questão nesses termos significaria impor à pessoa trabalhadora a escolha atroz entre trabalho inseguro e desemprego. Iniciativas pautadas na monetização do risco devem ser olhadas com cautela.

Normas que obrigam o pagamento de adicional de insalubridade durante a pandemia, como a Lei Distrital no 6.589/2020, não resolvem quando se trata de preservar o direito à vida. Ao revés. Em muitos casos, desestimulam o investimento em medidas protetivas, como o fornecimento e a reposição de equipamentos de proteção, cujo uso adequado demanda treinamento e fiscalização. É preciso ir além e priorizar uma política preventiva, que coíba a exposição de trabalhadoras e trabalhadores a riscos que possam ser evitados ou reduzidos.

Na defesa do direito à vida de quem trabalha, a tutela jurisdicional específica de que trata o artigo 497 do CPC assume papel central. Para não se reduzir a relevância da prestação jurisdicional à da tutela ressarcitória, em que o prejuízo à saúde já se
concretizou, há que se ter clareza quanto à autonomia dos conceitos de ato ilícito e dano. Embora existam danos que resultem de atos ilícitos, pode haver ato ilícito sem dano e dano sem ato ilícito. A ilicitude do ato advém de sua desconformidade com o direito. Se causar prejuízo, esse ato, além de ilícito, pode gerar o dever de reparação. Por outro lado, ainda quando não exista dano ou culpa, subsiste o direito de se inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito. Essa compreensão é fundamental a uma atuação orientada à prevenção, que privilegie a incolumidade física e mental de trabalhadores e trabalhadoras, e não a reparação de danos.

Não basta, contudo, o engajamento da comunidade jurídica. O comportamento do consumidor é decisivo quando se trata de comunicar ao mercado os valores sociais que devem norteá-lo. Negar-se a consumir produtos e serviços de empresas que negligenciem a saúde de quem trabalha é contribuir para a construção de um mundo em que nenhuma vida vale menos.

Enquanto especialistas ainda discutem se chegamos ao platô nas curvas que retratam a evolução da pandemia, torna-se evidente que o ponto de inflexão só virá quando medidas preventivas forem adotadas com seriedade. Sem o compromisso de cumprir e fazer cumprir medidas de saúde e segurança do trabalho, qualquer tentativa de retorno às atividades presenciais sempre será marcada por adoecimento e mortes. E não haverá guarda-sóis capazes de esconder essa dura realidade.

Ananda Tostes Isoni é Juíza do Trabalho no TRT da 15a Região desde 2016 e atuou no Tribunal
Superior do Trabalho de 2012 até o ingresso na magistratura.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *