A ação sindical e política contra a hidra neoliberal

Fotografia: Luís Garcia/Flickr

Semelhante a Hércules, a classe trabalhadora tem como missão enfrentar o monstro neoliberal com duas ferramentas: a ação sindical e política.

Álvaro Ruiz

Fonte: El Destape
Tradução: DMT em Debate
Data original da publicação: 23/01/2022

A Hidra de Lerna na mitologia grega era uma besta com hálito venenoso, portadora de uma característica única, tendo múltiplas cabeças e conseguindo regenerar duas cabeças para cada uma que era cortada. Conta-se que foi a Hércules a quem foi confiada a missão para acabar com aquele monstro. Tarso Genro, figura de destaque do PT, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul, que ocupou diferentes Ministérios (Justiça, Educação e Relações Institucionais) nos dois primeiros governos Lula, analisa em artigo o que vem acontecendo no Brasil e utiliza a figura da Hidra como alegoria do Neoliberalismo.

Encruzilhada

Costumamos receber informações pré-catalogadas sobre um determinado tema que resultam do conteúdo central que lhe é atribuído no seu título ou da natureza dos assuntos que aborda.

Este dado por si só não lhe diminui o valor, mais ainda pode ser certamente justificado, embora por vezes limite a nossa compreensão de fenômenos que ultrapassam essa centralidade e que requerem contextualização para apreciar o seu real significado.

Com o emprego, o referido é claramente visto, pois é atravessado por diferentes disciplinas com as mais diversas opiniões.

Ao se falar em emprego, é preciso considerar que não se trata de qualquer trabalho ou execução de tarefas em qualquer condição, mas sim de trabalho prestado em relação de dependência e dotado de direitos trabalhistas, sindicais e previdenciários. A partir dessa conceituação, então, é necessário determinar o nível de qualidade que possui e se está de acordo com os parâmetros sociais, culturais e históricos que decorrem da evolução progressiva que lhe é inerente.

Uma primeira distorção, muito difundida, é integrá-la ao “mercado” e, juntamente com outras manifestações dentro ou fora da formalidade laboral, falar em “mercado de trabalho”. O trabalho humano não é uma mercadoria, formulação de antiga data e indicada como princípio incontestável em instrumentos jurídicos de mais alto escalão, tanto nacional quanto internacionalmente.

No Ocidente e nos sistemas capitalistas isso não é uma exceção, pelo contrário, constitui uma máxima considerada básica para priorizar a condição humana acima de qualquer outra questão ou fator envolvido na produção de bens ou serviços.

A alusão ao trabalho como um “organizador social”, como peça chave de uma “cultura” comunitária, como um “valor” que exalta individual e coletivamente, como “formativo” para a juventude e tantas outras funções que lhe são atribuídas no desenvolvimento de uma sociedade, é frequente no discurso coloquial e político originado em diferentes fábricas ideológicas.

Ainda que nem todo trabalho seja emprego, também não basta que seja “decente” (termo cunhado na OIT) para que seja “digno”, que dignifique quem o executa e lhe permita alcançar a cidadania laboral que lhe confere a possibilidade de se realizar como pessoa.

Qualquer estratégia de sobrevivência “não criminosa” está longe de satisfazer esses parâmetros, nem a aceitação de um empobrecimento inexorável do trabalho – ainda menos do emprego – e de uma pobreza estrutural necessitada de algum tipo de assistência pode ser concebida como algo próximo a uma Justiça Social elementar no século XXI, que alicerce o trabalho do futuro.

Assim, o nível de proteção que se propõe para as pessoas que trabalham e, em particular, para os que exercem atividade laboral (registrados ou não) é uma questão central cuja definição não resulta da Natureza ou da Economia, mas sim da Política.

Semelhanças que não são coincidência

No imaginário laboral, importa a existência de meios suficientes para ganhar a vida. O emprego está no centro, embora muitas vezes se fale de “trabalho” de forma simples e com isso se orbite em torno dele modalidades variadas que, a rigor, não são, ou sendo, tentam simular uma categoria diferente com eufemismos (colaboradores, associados, empreendedores, autônomos, cooperados fictícios).

A preocupação de que “as pessoas tenham emprego” está na boca de todos os referentes políticos, econômicos ou midiáticos, sem acompanhar com precisão a que trabalho se refere ou, o que é pior, aceitando – explícita ou implicitamente – que, seja do tipo que seja, é preferível do que o desemprego.

Tal raciocínio é justificável – também legítimo – para aqueles que não têm ocupação, ainda mais quando há muito tempo não têm possibilidade de acesso a um emprego estável, assim como seria razoável considerar comer sobras tomadas do lixo por quem passa fome.

No entanto, propostas desse tipo são inconcebíveis fora de extremos semelhantes, menos ainda se forem propostas como horizonte de “saída” de uma crise de emprego ou como estratégia de superação do chamado “mercado de trabalho” para além de uma conjuntura crítica.

Chile, Peru ou Colômbia são elogiados há décadas por seus sistemas desregulamentados, pela “liberdade de Mercado” que se apresenta como o motor da Economia e pela relevância incomparável que se atribui à “empresa privada”, que não deve ser submetida neste campo de forma alguma ao risco de esterilizar o seu potencial, o que, posteriormente, terá como efeito o bem-estar geral em resultado do “transbordamento” do copo que recolhe a rentabilidade natural e proporciona um destino de prosperidade para todos.

É claro que esses exemplos implicam: graus muito baixos de proteção trabalhista; inexistência ou inoperância sindical (nesses três países); escassez, senão ausência, de cobertura previdenciária (o Chile é emblemático no primeiro caso, a Colômbia e o Peru no segundo); enorme crescimento da informalidade (o Peru registra 70% da força de trabalho, os outros dois países mais de 50%).

O Brasil resistiu nessa área até que um “golpe branco” (afastamento de Dilma) e operações judiciais (encarceramento de Lula) quebraram o sistema sindical e trabalhista nas mãos de Temer e Bolsonaro, retrocedendo mais de 70 anos em conquistas sociais e trabalho.

A Argentina teve a sua com a ditadura de 1976, com a traição menemista dos anos 1990 e com a chegada “institucional” em 2015 dessa mesma tendência de desconstrução encabeçada por Macri, cujos efeitos não foram tão devastadores devido a um modelo de organização sindical que – apesar da deserção de parte de sua liderança – mostrou como tal uma força difícil de quebrar, embora não impossível, e isso deve nos alertar.

É que na raiz de todos esses processos se detecta uma semente venenosa, o neoliberalismo, cujo roteiro é marcado pela acumulação desenfreada e pelo descuido com suas consequências sociais – gerando tremendas desigualdades – assim como pela decomposição deliberada de todas as instituições republicanas.

As grandes corporações que criam, recriam e operam a partir dessa matriz ultrapassam as fronteiras dos países, assim como se impõem e corroem os Estados nacionais – em processo de decomposição – seja qual for seu tamanho, mesmo aqueles que se exibem como protagonistas das disputas pela hegemonia mundial e sem que isso pretenda minimizar a relevância de suas ações predatórias contra as Democracias, particularmente aquelas que se postulam sociais, nacionais e populares.

Essa ideologia que contribui para a desproteção do trabalho é a que está por trás de episódios dramáticos como o que vive o Peru, a revolta civil e protomilitar que ameaçou o Brasil há algumas semanas, a secessão forçada que a Bolívia enfrenta, as manobras desestabilizadoras no Chile, as tentativas de assassinato dos vice-presidentes da Argentina e da Colômbia.

Não é que “tudo tem a ver com tudo”, mas que estamos presenciando uma nova experiência em seu formato – se não em sua essência- a respeito de projetos de dominação e confrontos globais nos quais somos vítimas do primeiro e simples peças sacrificáveis no segundo.

Qualquer processo soberano em que prevaleçam a autodeterminação e a essencial solidariedade entre pares para formar Blocos que se fortalecem, que se baseiem num pensamento nacional e popular que recorra a processos pacíficos respeitando as regras democráticas, supõe uma ameaça aos poderes transnacionais e às elites nativas.

A partir dessa concepção constroem o “inimigo”, a quem combatem a partir: da Economia (endividamento, escassez, monopolização de bens essenciais); da Diplomacia (bloqueios, manipulação de interferências e intervenções territoriais, denúncias de violações de direitos humanos por violadores impiedosos e em série); da Justiça (com a cooptação do Judiciário utilizado como instrumento de perseguição e eliminação – simbólica ou física – dos opositores); dos Meios de Comunicação hegemônicos (com a divulgação de notícias falsas e ocultação de informações relevantes, com a estigmatização, com a distorção na construção de significados); das Instituições (seja distorcendo suas funções, desacreditando-as na opinião pública, paralisando-as ou esvaziando-as).

Estão querendo nos atordoar?

É curioso, à primeira vista, que se insistam em formulações para o mundo do trabalho que repetidamente falharam no nosso país e em muitos outros (centrais e periféricos), tanto como surpreendente que haja quem – autores ou cúmplices desses programas fracassados – continue a enunciá-los, com toda a imprudência e com promessas de resultados que não resistem a qualquer análise retrospectiva ou atual.

O que é paradoxal ou o que causa maior perplexidade é que há quem se deixe convencer por essas histórias fantásticas, ainda mais quando são chamados a serem bodes expiatórios dos desígnios inconfessáveis que alimentam esse tipo de discurso.

As nefastas consequências são principalmente, mas não exclusivamente, para quem trabalha por conta de outrem, mas atinge também quem se entusiasma com uma atuação “autônoma” que se apresenta a eles como um promissor empreendimento individual ou que lhes proporcionará ampla margem de “liberdade” pessoal. O mesmo acontece, embora seja mais difícil de perceber, para um amplo setor do pequeno empresariado ligado ao consumo interno, já que o empobrecimento dos trabalhadores afetará inevitavelmente seus negócios e possibilidades de lucro.

A oposição de cunho neoliberal já avançou com inúmeras iniciativas legislativas cujas propostas “modernas” são tão antigas quanto a injustiça, destinadas a: subjugar ou desmantelar os sindicatos; restringir ao máximo a negociação coletiva e penalizar greves (e grevistas); reduzir direitos trabalhistas; precarizar as condições de trabalho; eliminar ou moderar as consequências (responsabilidades indenizatórias ou sanções pecuniárias) por infrações patronais; restringir severamente as prestações da seguridade social.

Os mesmos que no governo e/ou como funcionários das ditaduras fizeram crescer o desemprego, não criaram postos de trabalho e contribuíram para piorar a qualidade dos existentes, deterioraram gravemente a segurança e higiene no trabalho, garantiram uma transferência regressiva de rendimentos em favor de minorias cada vez mais concentradas. Agora são eles que, mais uma vez, querem iludir com as supostas bondades que o Deus do Mercado proverá em troca do sacrifício expiatório do pecado de promover o trabalho decente e a distribuição justa da riqueza criada pelo trabalho.

É ridículo culpar as leis trabalhistas pela falta de emprego ou culpá-las por serem um obstáculo para expandi-lo, como pode ser visto pelo aumento do emprego registrado com uma legislação protetora – as quais afirmam ser crivada de rigidez – e pela consagração de melhorias nos direitos trabalhistas justamente nesses mesmos ciclos de bonança.

Além disso, é diante das crises econômicas que se torna necessário aumentar a proteção das pessoas que trabalham, tanto para contribuir para a recuperação produtiva quanto para assegurar a paz social e efetivar as garantias dos direitos humanos básicos.

Desenvolvimento com mais direitos

No cenário atual, é preciso fazer uma leitura completa e atenta de certos dados que a realidade oferece, pois o movimento neoliberal circunstante fiscaliza as instituições e busca sua degradação por meio de ações paralisantes das diferentes instâncias republicanas.

É Política, não mero economicismo, como também o é o discurso sobre o emprego com a sua infalível incidência na força das representações sindicais que querem neutralizar, senão quebrar, para abrir caminho à plutocracia colonial que querem consolidar.

A promoção do extremismo reacionário, a criminalização da ação sindical e a obstrução dos mecanismos de controle social contra abusos recorrentes (por parte de formadores de preços, especuladores financeiros ou funcionários judiciais), estrategicamente protegidos por uma Justiça colonizada, exigem estar cientes do perigo que isso representa para a convivência democrática e os riscos de que a violência seja vista, em última instância, como forma de solução de conflitos.

Em recente Declaração de forças políticas, centrais sindicais, organizações e movimentos sociais, no âmbito da VII Cúpula de Chefes de Estado da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), afirma-se:

“- Que o mundo se encontra hoje em uma situação de crise estrutural, disputa hegemônica e crise ambiental que apresentam novos desafios para o sistema internacional em geral e para a América Latina e o Caribe em particular. (…)

– Que a América Latina e o Caribe são a região mais endividada do mundo em desenvolvimento, condicionando severamente seu desenvolvimento e autonomia política. Este problema transcende a não menos importante questão do peso da dívida (pagamento de juros, por exemplo), mas afeta também dimensões econômicas e sociais fundamentais, com consequências distributivas, de emprego, de precariedade laboral, de gênero e de segurança social. Nesse sentido, é inegável a responsabilidade de organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) como instrumentos de uma estratégia de subjugação dos países periféricos ao capital transnacional, com o destacado apoio dos Estados Unidos, em aliança com grupos locais. (….)

– Que a democracia na América Latina e no Caribe está ameaçada por novas formas de desestabilização e rupturas institucionais, baseadas na vontade de atores nacionais e estrangeiros de instalar democracias tuteladas funcionais a interesses antipopulares. (…)”

Nessa ordem de ideias, deve-se considerar a alegoria da Hidra proposta por Tarso Genro no artigo referido no início desta nota, quando afirma: “A Hidra não foi anulada e vai preparar um novo surto de violência: em nome de Deus, da Pátria e da Família, que para eles é apenas um slogan desprovido de realidade e humanidade”.

A reivindicação do pleno emprego, do desenvolvimento com equidade e com mais direitos, de uma distribuição mais justa da riqueza com base na participação nos lucros garantida pela Constituição Nacional, mas ainda adiada, continuam sendo premissas inabaláveis para a conquista de uma Pátria Livre, Justa e Soberana.

A classe trabalhadora, como categoria que identifica centralmente as pessoas que trabalham em relação de dependência e as organizações sindicais que as agrupam, é aquela que tem como missão – semelhante a Hércules – enfrentar o monstro neoliberal com duas ferramentas fundamentais: a ação sindical e a ação política.

Álvaro Ruiz é advogado trabalhista com experiência na assessoria de sindicatos.

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