Que vivências, que memórias de lutas coletivas conduziram a este momento – 8 de Março de 1857, Nova Iorque, operárias têxteis nas ruas?
Helena Neves
Fonte: Esquerda.net, com ajustes para o português do Brasil
Data original da publicação: 08/03/2021
Em pleno século XIX, o pensamento progressista americano reflete um conjunto de influências, desde o racionalismo aos ideais da Revolução Francesa de 1789 (recordemos que muitos revolucionários, banidos pelo domínio napoleônico, emigram para a América) e ao socialismo utópico, nomeadamente de Calvet e de Owen. Este chega mesmo a fundar, em maio de 1825, uma comuna em território americano – “A Nova Alemanha” – e influenciará a parte mais silenciada do feminismo americano através da comunalista Fanny Wright. Entretanto, em meados do século, surgem timidamente alguns centros de pensamento marxista ligados ao núcleo revolucionário de Marx e Engels em Bruxelas, que constitui o embrião da Associação Internacional de Trabalhadores. O próprio Marx publicará, em 1853 e 1854, diversos artigos ao New York Dally Tribune. Paralelamente, o movimento operário americano apresenta já um forte carácter reivindicativo, patente nas enormes manifestações de massas, em fevereiro, contra o desemprego e a inflação, quando do pânico da crise de 1837.
É babilônico, na sua composição, este jovem proletariado americano. Entre 1815 e 1860, aportavam à América do Norte 5 milhões e meio de estrangeiros, que em 1850 constituem já 43% da população urbana. Provavelmente mais desprotegido do que qualquer outro, porque a abundância de mão-de-obra, por um lado, e a concentração industrial favorecida pelo desenvolvimento da rede ferroviária, proporcionam níveis de exploração intensíssimos, a par do desemprego, da insegurança, das tensões no movimento operário. O escritor inglês conta que os mecânicos desempregados de Nova Iorque têm “ar de lobos esfomeados”.
Charles Dickens fala da “pobreza, desgraça e vício da cidade”, em 1842. Lydia Maria Child, autora de “uma invocação a favor da classe dos negros americanos”, desabafa “It is sad to walking in the city” (“é triste andar na cidade”). Mais triste ainda, a sorte da mulher trabalhadora. A ela os salários mais miseráveis; as piores condições de trabalho, a opressão mais profunda.
Neste contexto de fermentação ideológica e social sucederá o 8 de Março. Mas as mulheres que ganham as ruas de Nova Iorque, na primeira grande manifestação de mulheres, não sabem ler, não conhecem Owen, estão longe de saber o que significa a Igualdade, Liberdade e Fraternidade apregoados pela Revolução Francesa e assimilados pelo pensamento progressista americano. Não são iguais a não ser entre si, irmanadas na mesma sorte pois até em relação aos operários elas são discriminadas.
Não conhecem a fraternidade a não ser a da nascente solidariedade feminina pois que os trabalhadores, particularmente os desempregados lhes são, amiúde hostis. Muito menos são livres…
Quais então as “causas” do 8 de Março nos EUA, Nova Iorque em 1857? Elas não são imediatas e muito menos, simples. Necessariamente terão de ser buscadas na própria vivência feminina no território americano, desde a participação das mulheres na colonização ao movimento feminista, passando pela intervenção feminina na guerra da independência, nas associações filantrópicas e pacifistas e no movimento abolicionista.
Em 1857, no dia 8 de março, pela primeira vez nas ruas de Nova Iorque, uma manifestação de mulheres, mulheres em luta. No mesmo ano, a 5 de junho, em Widerau, uma vila agrícola e industrial de Saxe, nasce Clara Eissner, mais tarde Clara Zetkin.
Duzentos e sessenta e quatro anos são passados sob o primeiro 8 de março. Mais de duzentos anos decorridos, recordamos o primeiro 8 de março. Não em termos de memória passada, mas como impulso de um combate hoje mais extenso e exigente. Pela igualdade, a democracia, a paz. A igualdade na diferença.
Retomada a memória. Reinventada a origem.
No dia 8 de março de 1875, centenas de mulheres operárias do vestuário e do calçado manifestaram-se nas ruas de Nova Iorque. É a época das jornadas de trabalho de dezasseis horas e dos salários miseráveis. Elas avançam pelas ruas exigindo “o dia das 10 horas, oficinas claras e sãs para trabalhar, salários iguais aos dos alfaiates.”.
São carregadas violentamente pela polícia e presas.
Na mesma época, na Inglaterra, a luta das mulheres expande-se assumindo mesmo forma violenta com uma exigência dominante: direito de voto, que apenas será concedido parcialmente em 1918 e totalmente em 1938.
Na Alemanha, Clara Zetkin escreve sobre a condição da mulher em 1887; ergue a voz pela total igualdade de direitos no Congresso Constitutivo da II Internacional Socialista; luta na frente de mulheres socialistas; e, finalmente no Congresso Internacional Socialista, no qual participa Lenine, propõe que o 8 de Março seja comemorado como Dia Internacional da Mulher. O apelo de Clara Zetkin, que o imperador da Alemanha considerava “a mais perigosa bruxa do império alemão” é escutado por todo o mundo. Mais e mais mulheres vão correspondendo às suas palavras: fazer do 8 de Março “um dia em que seria afirmada a necessidade de uma luta comum de trabalhadoras e de trabalhadores, manuais e intelectuais, e no qual as reivindicações particulares das mulheres no domínio político, social e económico seriam particularmente defendidas”. Particularmente mas não exclusivamente. Porque a luta das mulheres tem de ser de todas as idades, estações e tempos. Assim foi a de Clara Zetkin até à sua morte em 1933. Dela Aragon, o mesmo poeta que cantou a mulher como o futuro do homem, traça-nos o retrato na obra “Os Sinos da Basileia”:
“O contorno do rosto é marcado, forte. Numa multidão, não podemos deixar de a notar. Ela veste sempre negligentemente mas não são os fatos largos ou o casaco mal assente sobre os ombros que chamam a atenção, que atraem o olhar sobre ela. O que nela há de insólito são os olhos… Os olhos de toda a Alemanha operária, azuis e móveis, como águas profundas atravessadas por correntes… Ela é a mulher de amanhã, ou melhor, ousemos dizê-lo: ela é a mulher de hoje. A igual”
Caminhos que vão dar a Abril – uma cronologia
8 de Março de 1857
Em Nova Iorque, operárias têxteis fazem greve pela primeira vez e descem à rua para exigirem a redução do tempo de trabalho de 16 para 10 horas por dia e salários iguais ao dos homens.
8 de Março de 1909
Manifestação que reúne milhares de mulheres em Nova Iorque. Reivindicam outras condições de vida e exigem direito de voto.
1910
Quando do Congresso Internacional das Mulheres Socialistas em Copenhaga, Clara Zetkin propõe que o 8 de Março se torne Dia Internacional da Mulher. “Em nome das nossas irmãs americanas, para exigir nossos direitos, e exprimir a solidariedade e o amor pela paz que nos unem.”
1911
O Congresso da II Internacional Socialista aprova a proposta de Clara Zetkin.
8 de Março de 1911
Mais de um milhão de mulheres celebram este dia: na Alemanha (só em Berlim fizeram-se 42 «meetings», que reuniram 40 a 50.000 mulheres), na Áustria, na Dinamarca.
Em Paris, Alexandra Kolontai organiza uma manifestação de mulheres.
8 de Março de 1914
Em França e na Alemanha fazem-se manifestações contra a guerra e pela libertação de Rosa Luxemburgo.
8 de Março de 1915
Alexandra Kolontai organiza em uma manifestação de mulheres contra a guerra, em Berna e Clara Zetkin realiza uma conferência de mulheres socialistas. Paralelamente, mulheres russas, italianas, francesas, polacas, alemãs, holandesas e inglesas, apelam contra a guerra, em plena Guerra Mundial.
8 de Março de 1917
A 23 de fevereiro de 1917, mulheres de Petrogrado descem em massa à rua para reclamar pão e fim da guerra. Convidam o povo a unir-se a elas e a cidade subleva-se. Segundo Trostki, esta luta é o preâmbulo da Revolução de Outubro.
A 8 de Março, sucedem reuniões clandestinas de mulheres francesas em pleno período de guerra.
8 de Março de 1925
Em Paris, 5.000 mulheres reunidas na «Grange aux Belles» protestam contra a guerra colonial em Marrocos.
8 de Março de 1937
Mulheres manifestam-se em Espanha contra o franquismo.
8 de Março de 1943
Mulheres manifestam-se em Itália contra o fascismo mussoliniano.
8 de Março de 1945
A União das Mulheres Francesas, criada pelas mulheres comunistas da resistência, organiza pela primeira vez uma manifestação de mulheres.
8 de Março de 1970
13 mulheres guerrilheiras Tupamaras escolheram o 8 de Março para se evadirem da prisão de Montevideo (Uruguai).
8 de Março de 1971
Em Portugal, mulheres do Movimento Democrático de Mulheres comemoram este dia fazendo um piquenique, onde foram atacadas pela G.N.R.
8 de Março de 1974
Mulheres manifestam-se em Saigão contra a ocupação americana.
8 de Março de 1975
Pela primeira vez em Portugal as mulheres puderam livremente comemorar o Dia Internacional da Mulher.
8 de Março de 1977
Em Espanha, as mulheres comemoraram em liberdade o seu dia. Desde 1937 que o franquismo não o deixava fazer.
8 de Março de 1980
Em Itália, as mulheres organizaram inúmeras festas, manifestações; projectam filmes, organizam teatro de rua. A revista “Noi Donni” faz um número duplo quase só dedicado ao tema: “Os anos 70 e a luta das mulheres”.
8 de Março de 1982
As mulheres francesas lutam para que o 8 de Março se torne em França feriado nacional.
E deste modo o 8 de Março tem sido um dia de união, de mãos dadas, juntas, mãos de mulheres em volta do mundo, num longo cordão umbilical de vida…
Helena Neves é professora universitária e pesquisadora.