O filme 7 Prisioneiros é um dos mais ferozes retratos do cotidiano da persistente escravidão brasileira.
Rodrigo Trindade
Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 13/11/2021
Na série de livros Escravidão, de Laurentino Gomes, grande parte dos relatos do cotidiano de quase 400 anos da escravidão brasileira foram buscados em viajantes estrangeiros. Com a compulsão lusitana pelo sigilo de terras e tecnologias, a função da crônica da brutalidade coube a britânicos, franceses e alemães. Agora, a contemporânea escravidão em mesmas terras começa a ser contada por nacionais. O filme 7 Prisioneiros é, hoje, um dos mais ferozes retratos do cotidiano da persistente escravidão brasileira.
O enredo segue Mateus (Christian Malheiros) e seus amigos, desde a arregimentação em um dos tantos nacos do primitivo Brasil agrário e sedução por melhoria de vida em São Paulo. Desconhecendo sua condição de mercadoria, são vendidos para Lucca (Rodrigo Santoro), no submundo do trabalho ultra precário e, seguem o script da vida real: têm documentos apreendidos, são mal alimentados, submetidos a acomodações degradantes, jornadas excessivas e trabalhos inseguros.
O diretor Alexandre Moratto optou por filmar rostos muito próximos – e isso parece propositado a um objetivo. No século XX, a historiografia nacional da escravidão foi construída a partir de uma espécie de estranhamento higiênico. Autores consagrados como Freyre e Buarque de Holanda postaram-se quase como os viajantes europeus das décadas anteriores, apresentando a escravidão como produto “deles”, os portugueses. E, mesmo assim, é um escravismo quase piedoso, viabilizador de virtudes, como a miscigenação, a igualdade racial e a construção da própria identidade nacional.
7 Prisioneiros não é nada disso e se aproxima muito mais de sociólogos e historiadores contemporâneos, como Leila Algranti e Jessé Souza, que percebem as raízes profundas da cultura escravocrata, contaminando toda a vida brasileira, mesmo após três séculos de dominação. Propositadamente, a história evita focar em estrangeiros como os escravizados – apesar deles também aparecerem. A lente é colocada em brasileiros típicos, justamente para indicar o seguimento da escravidão nas normalizadas ossaturas institucionais. E não há nada de virtuoso nisso.
Enquanto vão perdendo sucessivas camadas de dignidade, o grupo de escravizados também se dá conta do tamanho da máquina e das dificuldades de escape. Muito mais que uma grotesca situação pontual, os jovens percebem a dimensão das engrenagens econômicas, a extensão da rede de suporte à escravidão e as propositais deficiências da fiscalização estatal.
Bons enredos costumam ter seu turn over. Enquanto o expectador – sempre chocado – aguarda o resgate heroico ou a fuga gloriosa, o enredo surpreende, e faz inserir e modernizar outro conhecidíssimo personagem da escravidão brasileira. A construção do capitão do mato moderno é a reviravolta que ninguém quer ver, mas está lá.
É duro, mas você precisa assistir.
Rodrigo Trindade é professor universitário, ex-Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região – AMATRA IV, juiz do Trabalho na 4ª Região.