7 prisioneiros

Fotografia: Netflix

Para construirmos possibilidades de verdadeiras escolhas, nossos corações e mentes precisam desmantelar as desigualdades e minar as bases do castelo neoliberal.

Gerson Almeida

Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 14/01/2022

O filme 7 prisioneiros, dirigido por Alexandre Moratto, com atuações impecáveis de Rodrigo Santoro e Christian Malheiros, me surpreendeu. A trama se desenrola num ferro-velho, um lugar tradicional de reciclagem de parte da imensa quantidade de resíduos gerados nas cidades e muitas vezes utilizado para a recepção de materiais sem origem comprovada. No filme, a partir dele é apresentada uma imensa rede de recrutamento e tráfico de mão-de-obra para trabalhar em condições análogas à escravidão, em diferentes ramos de produção. É o tipo do trabalho que “mantém a cidade em pé”, segundo palavras de Lucas, o personagem vivido por Rodrigo Santoro.

O filme começa com todo o jeitão de filme da ação e personagens bem definidos, onde alguns são do bem e, outros, do mal. Mas o roteiro, gradativamente, nos conduz para os complexos mecanismos de produção e reprodução da exploração do trabalho e das esperanças dos setores mais vulneráveis da população.

Para funcionar, esta rede de exploração faz uso da força bruta, do revolver na cara, do soco no estômago, dos muros altos, do arame farpado, do terror com a família, da proteção de policiais corruptos e da cobertura de bacanas da elite endinheirada. Tudo isto compõem um cenário suficientemente poderoso para intimidar suas vítimas e construir a ideia de que não há saída possível fora daquela gaiola de ferro da exploração. Mas não é apenas o uso da força que sustenta esta engrenagem.

Ao ser internalizada a ideia de falta de alternativas, entra em cena o jogo de sedução e tentativa de cooptação de Mateus, personagem vivido por Alexandre Moratto, até então legitimado como porta-voz das reivindicações do grupo.

Neste momento o que parecia caminhar para um filme de ação, dá lugar a um denso dilema moral e ético. O moral é sobre aceitar a responsabilidade de reprodução da violência contra a qual vinha se insurgindo e tornar-se capataz da rede de trabalho análogo à escravidão que lhe capturou e subjugou; o ético, de aderir à vantajosa saída individual e abandonar a lealdade para com os companheiros de infortúnio.

O dilema sobre a quem devemos lealdade é uma questão fundamental da construção dos campos na sociedade e, como mostra a história, a sua resolução nunca foi simples. A hegemonia neoliberal, cuja racionalidade é combater tudo aquilo que possa se aproximar de políticas de bem-estar e/ou proteção social, tornou a resolução deste dilema ainda mais difícil.

Os seus ideólogos e as suas canetas de aluguel não cansam de martelar, dia após dia, que a lógica da concorrência e do mercado deve perpassar todas as instâncias da vida e as pessoas precisam estar em permanente concorrência entre si. Como se a sociedade fosse um imenso octógono e todos nós fossemos lutadores isolados, contra todos os demais.

Em A nova razão do mundo, Pierre Dardot e Christian Laval, chamam a atenção de que o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica, “mas um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”, operando na própria subjetividade dos indivíduos no sentido do “egoísmo social, da negação da solidariedade e da redistribuição, o que pode desembocar em movimentos reacionários ou até mesmo neofascistas”. Não nos faltam exemplos de como isso é verdadeiro.

Mateus vive um dilema ético e moral muito distante do mito neoliberal das escolhas individuais feitas num ambiente livre e múltiplas possibilidades. Sem políticas de proteção social e sem regras efetivas de proteção do trabalho, ele é mais um na legião de abandonados social, cultural e politicamente, que a desigualdade não para de produzir e a ideologia neoliberal faz de tudo para legitimar. Foi a própria Margareth Thatcher, em discurso que ficou célebre, que definiu o objetivo do neoliberalismo: “mudar a alma e o coração” das pessoas.

Pois bem. Ao longo do filme percebi que recém havia iniciado um Ano Novo e a promessa mágica de que “tudo será diferente” já estava sendo definitivamente erodida, enquanto a realidade permanecia impávida à mudança do calendário.

O que pode efetivamente mudar a sorte dos milhões de Mateus abandonados à própria sorte, que todos os dias são levados a fazer escolhas sem ter alternativas – o que é o mesmo de não ter escolha –, é desmantelar a dinâmica da sociedade brasileira, toda estruturada pela imensa desigualdade social, como tem demonstrado Jessé Souza, que acaba por legitimar os privilégios como se fossem resultado de mérito.

Assim, a lógica neoliberal e a das milícias possuem muitos pontos em comum. Ambas são nutridas pela exploração da imensa desigualdade, que longe de ser um evento da natureza, é um intenso trabalho de produção e reprodução que não dorme nunca e faz de tudo para ocupar todos os espaços de decisão, seja pela violência, pela cooptação ou elegendo um dos seus.

Para construirmos possibilidades de verdadeiras escolhas, nossos corações e mentes precisam desmantelar as desigualdades e, assim, minar as bases do castelo neoliberal. Tijolo por tijolo.

Gerson Almeida é mestre em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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