Há 16 anos, trabalhadores da indústria de tecidos promoviam greve em Bangladesh, mobilizando 1,8 milhão de pessoas
Igor Natusch
Longe de terem sido superadas por uma suposta especialização do capitalismo em escala global, as disputas entre a classe trabalhadora e o patronato seguem constantes em diferentes partes do mundo. Em Bangladesh, no sul da Ásia, ocorreu um dos mais significativos movimentos grevistas das últimas décadas, quando cerca de 1,8 milhão de trabalhadoras e trabalhadores decidiram paralisar suas atividades em 2006, em um movimento espontâneo e quase sem coordenação de entidades sindicais. A greve, iniciada no dia 20 de maio daquele ano, praticamente paralisou a capital Dhaka, e só perdeu fôlego após violenta repressão das forças governamentais.
Nascida no coração da ampla indústria de tecidos do país, a decisão de cruzar os braços marcou a ebulição de um denso caldo de precariedades, inquietações e falta de diálogo. Um dos pilares econômicos do país, o setor é quase exclusivamente voltado à exportação e constitui quase 70% do comércio exterior do país. Esses bons números, porém, não chegavam ao chão das fábricas: com um salário mínimo de fome (segundo sindicalistas, um dos mais baixos do mundo), a massa trabalhadora do setor (em sua ampla maioria mulheres) enfrenta constantes atrasos salariais, além de condições muitas vezes insalubres e jornadas de trabalho que, com frequência, excedem as 12 horas diárias, com folgas apenas esporádicas. Agitações vinham ocorrendo pelo menos desde janeiro daquele ano, antecipando a explosão inevitável que estava por vir.
O estopim da revolta ocorreu em Gazipour, um distrito da capital Dhaka. Em 20 de maio, cerca de mil trabalhadores se reuniram na fábrica da FS Sweater Factory, recusando-se a iniciar o trabalho antes que três colegas, envolvidos fossem libertados pela polícia. Em resposta, os patrões mandaram trancar as portas, cortando os suprimentos de água e eletricidade. Para fugir, os trabalhadores forçaram a saída, e acabaram bloqueando uma estrada próxima durante várias horas, sendo reprimidos com munição letal pelas forças policiais. Uma pessoa morreu e 70 outras (incluindo policiais e jornalistas) foram feridas.
Ao invés de deter os protestos, a violência estatal acabou dando combustível a mais gestos de revolta. Dois dias depois, mais de 20 mil pessoas participaram de uma passeata, com trabalhadores e trabalhadoras literalmente abandonando as fábricas em pleno serviço para se juntarem à multidão. Em especial nos dias seguintes, galpões foram incendiados, veículos das companhias destruídos e estabelecimentos comerciais saqueados. Repórteres fotográficos tentando registrar os violentos protestos foram agredidos.
Depois de alguns dias, a presença ostensiva de forças policiais e militares nas proximidades das fábricas (bem como as mais de 3.000 prisões oficialmente reportadas) começou a ter efeito, diminuindo a intensidade das manifestações. Ainda assim, as paralisações espontâneas seguiram acontecendo pelo menos até fins de junho, e movimentos grevistas continuam sendo verificados esporadicamente até os dias atuais.
Mesmo sem medidas governamentais significativas, várias fábricas fizeram algumas concessões a seus funcionários (embora, é claro, longe de acarretar uma melhora significativa em suas condições miseráveis de trabalho e de vida), e as greves de maio de 2006 tiveram ao menos um efeito importante no aspecto coletivo: forçaram patrões a negociar com os sindicatos locais, rompendo uma tendência histórica de desvalorização das entidades e de repressão a todos que se filiassem a elas. De fato, o sindicalismo passou a ser uma força política significativa em Bangladesh desde então, atuando junto a partidos de oposição em frequentes manifestações contra o governo central.