Samba (que não é do crioulo doido) e ainda o tema das migrações

Lorena Holzmann

O samba do crioulo doido é uma paródia das letras dos sambas-enredo das escolas carnavalescas do Rio de Janeiro, escrita por Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, escritor carioca. Ele fazia a crítica da pouca precisão, naquelas letras, de eventos e personalidades de nossa História, temas obrigatórios para a apresentação das escolas, imposição do governo da Guanabara, na época. O resultado era, por vezes, uma coleção de absurdos, nos quais apenas as rimas tinham alguma “coerência”.

Não é disso que trata este Samba. Ele não é uma paródia, é um drama. É um retorno ao tema das migrações no mundo contemporâneo, já tratado anteriormente nesta coluna.

Recentemente, a imprensa tem dado ampla cobertura aos frequentes episódios de naufrágio, no mar Mediterrâneo, de embarcações que transportam imigrantes africanos e asiáticos para a Europa. Por vezes, viagens que começam e não terminam, não chegando ao destino pretendido.

Essas viagens são agenciadas por grupos criminosos, que as promovem em embarcações precárias, superlotadas, sem nenhuma segurança ou condições razoáveis de sobrevivência durante a travessia. Daí os frequentes acidentes, fatais para centenas de pessoas.

Há algumas semanas, outras estratégias têm sido veiculadas na imprensa. Trata-se de migrantes que, a partir da França, tentam, desesperadamente, chegar à Inglaterra, cruzando o Canal da Mancha. Como? Escondendo-se em caminhões de carga que fazem a travessia pelo Eurotúnel ou via ferryboats. Vê-se imagens de grupos de pessoas correndo para dentro de caminhões cujas portas conseguiram arrombar. Por que a Inglaterra como meta de chegada? No conturbado panorama social e econômico da Europa hoje, a Inglaterra é um quase oásis de estabilidade e crescimento, promessa de melhores condições de vida para quem vem de regiões muito pobres ou em estado de guerra. Daí a tentativa desesperada de chegar lá.

A trajetória dramática desde o local de origem até o destino pretendido é uma etapa dos que se aventuram nessa migração moderna. Ali chegando, um novo capítulo se inicia, uma verdadeira saga a fim de conseguir permanecer no país e nele sobreviver. As tão sonhadas ascensão social e estabilidade econômica tornam-se uma batalha cotidiana de superação de dificuldades.

Pôster brasileiro do filme "Samba". Divulgação
Pôster brasileiro do filme “Samba”, que entrou em cartaz no País no início de julho de 2015 e ainda pode ser assistido em alguns cinemas. Divulgação

É disso que trata Samba, título do filme francês de 2014, escrito e dirigido por Eric Toledano e Olivier Nakache. Samba Cissé é o protagonista. Imigrante vindo do Senegal, vive irregularmente na França há 10 anos. Em estudos recentes sobre migrações internacionais, essa condição não é tratada como ilegal, nem como não portador de documentos (indocumentado), mas como de migrante não autorizado. Ou seja, o imigrante não tem o aval das autoridades para permanecer no país “hospedeiro”.

Através do dia a dia desse protagonista, os autores do filme expõem o drama que é comum a milhares de pessoas que deixaram seus lugares de origem em busca de sobrevivência e de melhores perspectivas de vida em outros países, nos quais não têm permanência autorizada. Abordam o trabalho de redes de solidariedade para apoio a esses imigrantes a quem dão orientações de como obter a autorização de permanência no país, mas tratam também da ação de organizações criminosas que lucram com os movimentos migratórios não autorizados.

Samba transita entre diversos trabalhos, sempre caracterizados pela precariedade, sem acesso aos direitos laborais conquistados pelos trabalhadores nativos e pelos estrangeiros autorizados. Há um controle das autoridades públicas sobre a presença dos não autorizados, mas ela nem sempre é muito rigorosa. Trabalhadores com este estatuto são fundamentais no funcionamento da economia, pois passam a exercer funções na produção de bens e, sobretudo, de serviços, rejeitados pelos trabalhadores nativos. É nesse nicho do mercado de trabalho que Samba encontra oportunidades de emprego: como auxiliar de cozinha, lavador de vidraças, segurança na construção civil. Samba está em permanente alerta, temendo ser descoberto, com risco de ser repatriado. Sua vulnerabilidade é maior e mais “evidente” devido à cor de sua pele. Samba é negro, e por isso, mais facilmente abordável pelas autoridades. Samba muda frequentemente de documentos, quase esquecendo seu nome verdadeiro e sua própria identidade. Os documentos são fornecidos por redes de falsificadores.

A história pessoal de Samba tem como pano de fundo essa realidade perversa de quem cruzou fronteiras em busca de melhores condições de vida. Essa realidade é habitada por redes criminosas que lucram com o desespero de pobres e fugitivos de áreas de conflito, desconsiderando completamente o respeito aos direitos humanos (quantos migrantes já morreram sufocados dentro de caminhões e jamantas, tendo pago caro pela viagem sem garantias?), transportando-os ou cobrando para “garantir” sua permanência no país-hóspede, quando lá conseguem chegar. Quem os emprega, nesses países, sabem que estão cometendo uma ilegalidade, mas a relevam, lucrando com isto, pois pagam salários aviltados e sonegam os benefícios laborais devidos. As autoridades, ainda que se oponham à permanência dos não autorizados, inclusive propondo e aprovando leis de repressão à imigração (prisão a quem apoiar e dar abrigo a esses “ilegais” e, no caso da Inglaterra, recentemente, proibição de alugar moradia para essas pessoas, com punições pesadas para quem burlar essa lei), não podem adotar medidas radicais de se desfazer dessa massa de população em seu território, sob pena de provocar um grave desequilíbrio em seu mercado de trabalho e na estabilidade de suas respectivas economias, cujo peso do segmento “não registrado” é muito significativo.

A tragédia das migrações no mundo contemporâneo é uma das faces mais perversas do capitalismo globalizado, no qual os interesses do capital (legal ou de redes criminosas) se sobrepõem a qualquer outro valor, de humanidade e de solidariedade.

Por um acaso, Samba consegue reverter sua repatriação ao Senegal, mas até quando?

Lorena Holzmann é Socióloga, Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFRGS.

Informações

Título: Samba
Ano: 2014
Duração: 118 min.
País: França
Diretores: Olivier Nakache e Eric Toledano
Elenco: Omar Sy, Charlotte Gainsbourg, Tahar Rahim, Izia Higelin

Mais informações: IMDb, Wikipédia (português). O filme entrou em cartaz no Brasil no início de julho de 2015 e ainda pode ser encontrado em alguns cinemas.

Trailer (legendado em português):

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