“Ressocializar pelo trabalho”? Riscos e avanços no novo e polêmico decreto

Felipe Athayde Lins de Melo

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 30/07/2018

“Falta um relógio nessa parede!”, disse-nos o agente técnico do Senai um dia antes da inauguração da oficina de cursos profissionalizantes em mecânica diesel, numa pequena cidade do oeste paulista. O ano era 2005 e o projeto surgira de modo um tanto inusitado: preso por assalto a mão armada, Chico[1], ex-mecânico do Exército Brasileiro, apresentara a proposta de criação de uma oficina para manutenção da frota do estabelecimento prisional onde cumpria pena, proposta esta que foi aperfeiçoada e, por meio de uma rede de parceiros locais, transformada numa estratégia de aproximação entre o cárcere e a municipalidade.

O contexto era de uma cidade de trinta mil habitantes, onde mais de quatro mil homens cumpriam pena em duas unidades prisionais. Destes, uma parcela significativa estava em regime semiaberto e alguns poucos realizavam serviços para a prefeitura, trabalhando na manutenção de praças e vias públicas. Os “amarelinhos”, como eram chamados pela população local, eram recorrentemente acusados dos furtos e roubos que ocasionalmente aconteciam na cidade e, conquanto realizassem importante trabalho para a limpeza urbana e conservação do espaço público, carregavam no corpo e em suas vestes o estigma do homem criminoso. Evidenciava-se ali que o trabalho realizado estava longe de ser visto como algo “ressocializador”.

A oficina de mecânica diesel foi instalada em parceria com a prefeitura municipal – que adquiriu ferramentas e insumos; o Lions Clube local, que cedeu espaço para seu funcionamento; uma empresa fabricante de motores de grande porte, que doou três motores diesel e um eixo de caminhão para a sala de aula e o Senai, que além de fornecer a certificação para os alunos, permitiu a Chico realizar alguns cursos de atualização profissional e o formou como instrutor de ensino profissionalizante, tornando-o um profissional habilitado para formar novos profissionais da área.

Mais importante que isso tudo, porém, foi a formação das turmas de alunos: naquela oficina, presos de regime semiaberto, egressos prisionais, familiares de pessoas privadas de liberdade e jovens de baixa renda da comunidade local compartilhavam o mesmo espaço e aprendiam com aquele mesmo instrutor, Chico, que já não era visto como um ex-assaltante. A aproximação prisão-comunidade mostrava-se uma oportunidade efetiva de superação dos estigmas.

Lembrei-me dessa experiência ao ler o Decreto 9.450, assinado pela Presidenta em exercício, Ministra Carmen Lúcia, e publicado no Diário Oficial da União no último dia 25 de julho. Instituindo a Política Nacional de Trabalho no âmbito do sistema prisional – Pnat, o Decreto propugna a crença do trabalho como componente central da “ressocialização” dos condenados, desconsiderando, como já havia demonstrado Erwin Goffman, que nas rotinas da gestão prisional a oferta de trabalho para as pessoas presas tem pouca serventia enquanto processo de formação para a vida em liberdade, destinando-se sobretudo para organizar o cotidiano de funcionamento da prisão, bem como as sanções e privilégios que permitem certos mecanismos de gestão do comportamento daqueles indivíduos.

Por sua vez, o Decreto traz alguns avanços e inúmeros riscos para a institucionalização de uma Política Nacional e desde sua recente publicação tem despertado reações apaixonadas e disputas entre organizações de defesa e apoio às pessoas privadas de liberdade e egressas das prisões, por um lado, e entidades corporativas, por outro. Para as primeiras, trata-se de um instrumento fundamental para que finalmente o Brasil avance no reconhecimento, no fomento e na ampliação das vagas de trabalho no sistema prisional, cujo alcance, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2016, gira na casa dos 15% do total de pessoas presas.

Já as associações empresariais alegam que o cumprimento do Decreto é inviável, seja porque as cotas estabelecidas gerariam maior desemprego de outros trabalhadores, seja porque não haveria, dentre as pessoas presas e egressas das prisões, a qualificação necessária para a ocupação de vagas mesmo em setores tradicionalmente mais propensos à contratação destes profissionais, como a construção civil. Confrontado com esta alegação, o dirigente de uma fundação que promove a empregabilidade de pessoas privadas de liberdade rebateu dizendo que qualquer qualificação profissional necessária para atender eventuais demandas seriam oferecidas por meio de parcerias com entidades que realizam cursos profissionalizantes, desconsiderando que o alcance destas iniciativas também não ultrapassa a casa dos 10% (segundo o Infopen 2016, 8% das pessoas presas estavam envolvidas em cursos de formação inicial e continuada).

Nesse sentido, dois riscos principais podem ser apontados em decorrência do Decreto: primeiramente, a ênfase na perspectiva “ressocializadora” do trabalho reproduz a antiga fragmentação na oferta das políticas públicas nas prisões, cuja superação poderia promover um reordenamento da gestão prisional, substituindo a prioridade da contenção, da vigilância e da punição em favor da garantia dos direitos e assistências fundamentais. Esta ênfase no trabalho, instrumentalizado, como dito anteriormente, para a regulação de sanções e privilégios, gera diversos entraves para a organização de outras políticas públicas, o que é representado na fala de um diretor de penitenciária que, referindo-se às dinâmicas de horários e permissões para funcionamento de outras atividades, disse-me que era “preciso soltar [das celas] antes o trabalhador e só depois os vagabundos”, sendo estes os presos que participavam das atividades de educação, cultura ou qualificação profissional.

Esta fragmentação se reforça quando observamos que o Decreto surge como instrumento isolado de outros arranjos institucionais e organizacionais voltados ao fomento e gestão das atividades laborais e de qualificação profissional no sistema prisional. O próprio Departamento Penitenciário Nacional, órgão que deveria ocupar centralidade no debate da Pnat, parece não ter sido ouvido com a devida atenção, haja vista que este órgão, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, já elaborara um documento muito mais abrangente para a formulação desta Política, prevendo um conjunto de eixos e ações de intervenção que vão dos seus princípios e diretrizes, passando pelos arranjos políticos e normativos existentes e propondo estratégias mais qualificadas para sua execução, o que não se verifica no Decreto.

O segundo grande risco, também decorrente desta visão fragmentada, está na imprevisibilidade dos mecanismos de gestão da própria Política, não havendo definição dos órgãos e instrumentos de regulação das vagas, de seleção e acompanhamento dos trabalhadores, de mediação entre o sistema prisional e empresas contratantes. O Decreto tampouco se atenta ao fato de que inexiste no Brasil uma Política de atenção às pessoas egressas, sendo escassos os estados onde há iniciativas ou equipamentos públicos destinados a atender estas pessoas e mediar os acessos às políticas públicas que respondam suas demandas.

Assim, é possível prever novas ocorrências de uma situação vivenciada num estado da região sudeste, na qual as empresas, obrigadas pela exigência de Decreto Estadual que estabelece cota de contratação de presos e egressos, ofereciam vagas de engenheiro civil, arquitetos, secretárias bilíngues, dentre outras profissões que não correspondem ao perfil de nossa população prisional pobre e de baixa escolarização, conseguindo, com isso, burlar o cumprimento da cláusula prevista em editais.

Outras deficiências podem ser apontadas no Decreto, como uma visão reducionista do que é ser “egresso prisional”, o enfoque no empreendedorismo, em detrimento de outras estratégias de geração de trabalho e renda e, uma vez mais, a brecha subjetivista do atestado de “disciplina” como critério de seleção dos beneficiários com as vagas ofertadas.

E para não dizer que não falei das flores, dois aparentes avanços: a uniformização de “modelo de edital de chamamento visando a formação de parcerias para construção de espaços de trabalho em unidades prisionais por entes privados e públicos” (Art. 3º, Inciso VI), o que pode ampliar a quantidade destes espaços e criar algum mecanismo de transparência e publicização na cessão de áreas públicas; e a exigência de apresentação de Planos Estaduais de fomento ao trabalho, o que pode permitir maior articulação intersetorial e novos diálogos entre o cárcere e a sociedade mais ampla.

A instituição da Pnat é, em princípio, um horizonte de avanços. Sua formulação, no entanto, reproduz a lógica que tem marcado este governo ilegítimo e apressado: criam-se as leis, anulam-se os debates.

Na inauguração desta Política, falta muito mais do que um relógio de parede.

Felipe Athayde Lins de Melo é doutorando em Sociologia, membro do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da UFSCar e do Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UNB.

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