Renda mínima é uma ideia de esquerda ou de direita?

Claudio Ferraz

Fonte: Nexo
Data original da publicação: 22/08/2018

Muita gente se surpreendeu com a inclusão do conceito de renda mínima no programa do candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL), inclusive ele mesmo. Numa resposta a uma reportagem no jornal O Globo que dizia que Bolsonaro era a favor de dar um Bolsa Família para todos os brasileiros, o candidato postou no Twitter gargalhadas de ironia. O curioso é que tal proposta aparece tanto no programa de governo de Jair Bolsonaro, onde o candidato promete a “introdução de mecanismos capazes de criar um sistema de imposto de renda negativo na direção de uma renda mínima universal” como no programa de governo de Marina Silva onde podemos ler o seguinte: “Programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, são fundamentais para atender a situação emergencial das pessoas que se veem impossibilitadas de prover suas necessidades básicas. Estes programas devem ser preservados e reconhecidos como direitos assegurados por lei… Estudaremos, ainda, as possibilidades da implantação de programa de renda mínima universal”

Mas o que é afinal um programa de renda mínima e como ele pode estar num programa de candidatos de esquerda e direita ao mesmo tempo? A ideia tem sua origem no livro “Capitalismo e Liberdade”, publicado em 1962 por Milton Friedman, professor da Universidade de Chicago e prêmio Nobel de economia. Friedman, considerado um dos maiores expoentes da economia liberal, propôs a ideia de um imposto de renda negativo onde as pessoas com renda inferior a um valor pré-determinado recebem uma transferência do governo no lugar de pagar impostos. Ele argumentava que uma transferência não condicional diminuiria custos burocráticos de administrar programas sociais já que não seria necessário coletar informações e monitorar os recipientes, além de minimizar distorções na decisão de procurar por um emprego. Friedman também argumentava que, ao dar dinheiro e não transferências como comida ou vales para uso específico, o recipiente poderia usar os recursos no mercado para comprar o que é melhor para ele.

Desse modo a ideia agrada aos liberais que veem a transferência de uma renda mínima como uma política social pouco distorciva e com participação do governo limitada, o que reduz a corrupção e o crescimento da burocracia. Mas a ideia também agrada à esquerda que vê a renda mínima como um direito, principalmente em países onde a incidência de pobreza, desemprego e desigualdade de renda é alta. No Brasil, a ideia foi proposta pelo senador Eduardo Suplicy em 2004 na Lei 10.835/04 que prevê que “a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário. O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias”

Projetos pilotos dessas ideias foram testados nos Estados Unidos e no Canadá por diversos governos. Alguns desses projetos foram os primeiros experimentos sociais aleatorizados de avaliação de políticas públicas no mundo como o New Jersey Income Maintenance Experiment. Em geral, esses experimentos mostraram que os níveis de emprego fora reduzidos como uma resposta à transferência, mas aumentaram consumo e escolaridade. Os resultados dessa primeira geração de avaliações experimentais, porém, são bastante controversos.

Recentemente a explosão da desigualdade em diversos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) trouxe a renda mínima de volta ao centro de políticas públicas em diversos países. Figuras que vão de Bernie Sanders, candidato de esquerda ao governo norte-americano nas eleições de 2016, ao presidente do Facebook Mark Zuckerberg mostraram-se simpáticos à ideia. Vários países estão testando esse tipo de política. A Finlândia, por exemplo, introduziu em 2017 um experimento com um projeto piloto de renda mínima. Duas mil pessoas desempregadas foram escolhidas aleatoriamente para receber 560 euros por mês durante dois anos. Elas estão sendo acompanhadas pelo governo para determinar o que acontecerá com emprego, renda e outros resultados. Outros lugares também estão seguindo esse modelo de projeto piloto como Chicago.

Projetos relacionados também estão sendo implementados em países pobres e de renda média. Os economistas Chris Blattman and Paul Niehaus publicaram em 2014 um artigo intitulado Show them the money na revista Foreign Affairs onde argumentam que transferências diretas de dinheiro são mais custo efetivas do que outros tipos de transferências como microcrédito ou treinamento para empreendedores quando o objetivo é reduzir a pobreza. Esse argumento, porém, está sendo amplamente discutido já que alguns resultados de longo prazo não mostram melhorias de bem-estar para indivíduos que recebem transferências comparados com os que não recebem.

Uma das principais preocupações com um programa de renda mínima são efeitos no mercado de trabalho. Será que ao receber uma transferência do governo as pessoas continuarão trabalhando? Diversos estudos mostram que a resposta, em geral, é sim. Um dos exemplos vem do Alasca, que em 1976 criou um fundo com recursos de exploração de petróleo e minérios. Desde 1982, esse fundo rende dividendos aos habitantes do estado norte-americano. Em anos recentes, cada habitante do Alasca recebe US$ 2.072, ou US $ 8.288 para uma família de quatro pessoas. De acordo com um estudo feito por Damon Jones, da Universidade de Chicago e Iona Marinescu da Universidade da Pennsylvania, essa renda extra não reduziu o esforço de trabalho dos indivíduos de maneira sistemática. Resultados similares foram encontrados pelo economista Abhijit Banerjee do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e coautores. Eles analisam sete programas de transferência de renda no México, Marrocos, Honduras, Nicarágua, e Filipinas e Indonésia. Eles não encontram nenhuma evidência significativa de que transferências de renda reduzem participação no mercado de trabalho.

A preocupação com a manutenção de políticas de transferência de renda para famílias pobres é uma realidade no programa de esquerda, centro e direita no Brasil. A discussão existente na eleição de 2014, de que o Bolsa Família torna as pessoas mais preguiçosas, parece ter sido superada. O Brasil caminha, mesmo com a polarização política existente, para uma discussão sobre como reduzir a pobreza e a desigualdade de forma mais efetiva. Até candidatos que abominavam o Bolsa Família parecem ter incluído algum tipo de programa de redistribuição em seus programas, mesmo que tenha sido sem querer. Essa discussão é muito bem-vinda num dos países mais desiguais do mundo.

Claudio Ferraz é professor da Cátedra Itaú-Unibanco do Departamento de Economia da PUC-Rio e diretor científico do JPAL (Poverty Action Lab) para a América Latina. É formado em economia pela Universidade da Costa Rica, tem mestrado pela Universidade de Boston, doutorado pela Universidade da Califórnia em Berkeley e foi professor visitante na Universidade Stanford e no MIT. Sua pesquisa inclui estudos sobre as causas e consequências da corrupção e a avaliação de impacto de políticas públicas. Ele escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

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