O que é classe social?

Jessé Souza

Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 14/05/2018

É comum, inclusive entre gente da esquerda, se falar de classe social como se fosse constituída pelo nível de renda. O problema com os conceitos da ciência é que eles herdam o caráter sagrado dos dogmas religiosos. Pelo seu “carisma” e prestígio, portanto, a ciência é o lugar da manipulação mais perigosa e poderosa sobre um público leigo e indefeso.

Hoje em dia, a “falsa consciência” de uma sociedade é construída em boa parte com meios (pseudo) científicos. Daí que, como artifício retórico, sempre se diga que existem ideias que nos fazem de imbecis. De posse de uma realidade confusa e distorcida, nossa ação no mundo é também confusa, hesitante e manipulável. Ou seja, nos tornamos efetivamente imbecis no sentido prático que todos entendem.

Por que confundir classe social com renda nos faz imbecis? Ora, primeiro porque distorce e inverte o núcleo principal da ideia de classe social.

Classe social é, antes de tudo, a reprodução de privilégios, positivos ou negativos. O problema é que muitos privilégios positivos, como a posse de conhecimento valorizado, é literalmente invisível para a maioria.

Para aprender de verdade na escola é necessário ter tido em casa, em tenra idade, todos os estímulos emocionais e morais (também invisíveis) sem os quais não existe real aprendizado. Ninguém nasce com capacidade de concentração, disciplina e autocontrole, pensamento prospectivo, capacidade de pensamento abstrato.

Em seu conjunto, essa “herança imaterial” permite reproduzir o privilégio da classe média “real” entre gerações que recebem de “presente”, pela socialização familiar específica da classe, o sucesso escolar e o sucesso no mercado de trabalho mais tarde.

Ou seja, a “renda” que a classe média adulta aufere só existe por conta dessa reprodução invisível de privilégios positivos na infância e na adolescência. É isso que explica a renda diferencial dos indivíduos da classe média em relação aos das classes populares e não o contrário.

Ao tornar a reprodução de privilégios invisível, a ciência se torna manipuladora, ao inverter causa e efeito, e legitima privilégios injustos como mérito individual e pode, inclusive, culpar as vítimas do abandono pela sua exclusão.

Mais ainda. Como todas as distinções importantes entre os indivíduos de classe distinta irão ser construídas também de modo invisível pela socialização familiar e escolar, todas as distinções simbólicas entre os indivíduos, quando se define classe como renda, tendem a ser percebidas como decorrente de outras razões – preconceito regional, de raça ou cor, etc. – que não a classe social.

Isso também nos faz de imbecis. É a classe social e sua reprodução familiar específica que cria os “estilos de vida” distintos, que se expressam nos modos de comer, beber, andar, falar e se vestir, que criam simpatia e solidariedade imediata e emocional entre os iguais e desprezo e preconceito contra os desiguais.

Isso legitima e justifica a desigualdade em todos os níveis e a faz parecer “mérito” e expressão de uma superioridade “inata” daqueles com “modos de gente” sobre quem tem “modos de animais”. Essa é a maneira pela qual a confusão de classe com renda, na verdade a renda é apenas o mais visível entre os diversos privilégios, compromete nossa reflexão sobre o mundo e nos imbeciliza no sentido sóbrio e exato do termo.

Dizer isso é dizer também que a classe social, “bem compreendida”, é o conceito mais importante para qualquer analise social bem feita. Perceber isso não significa, por outro lado, negar a importância de outras formas simbólicas de opressão e injustiça.

Entre nós, a “raça” é umbilicalmente ligada, até hoje, aos preconceitos contra as classes populares. Existe uma continuidade do desprezo e do ódio ao escravo no desprezo e no ódio ao pobre de hoje.

O amálgama entre “raça” e classe não deve implicar, no entanto, em confusão. A marginalidade e a exclusão social são criadas pela reprodução, também invisível, de privilégios “negativos” como a ausência dos pressupostos descritos acima para o sucesso escolar e no mercado de trabalho. Estes são mecanismos de classe, ainda que amalgamados de modo inextricável a “raça” e a cor da pele entre nós pela herança escravocrata consubstanciada em ódio e desprezo cotidianos ao pobre e ao negro.

Tornar a classe social “bem compreendida” ainda mais invisível do que ela é foi a grande sacada do capitalismo financeiro desde os anos 90 do século passado.

Ao separar as lutas por “igualdade” – redistribuição de riqueza e poder – das lutas por “diversidade” de grupos identitários oprimidos, o capitalismo financeiro separou o inseparável e ainda tirou onda de emancipador, enganando muita gente boa. Isso também nos faz imbecis. A Rede Globo, como a boca do capital financeiro entre nós, nada de braçada nesse mar revolto.

Jessé Souza é sociólogo e escritor.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *