Combate ao trabalho escravo perde força no Brasil

Trabalhadores cortam cana-de-açúcar em um engenho na Zona da Mata Sul de Pernambuco. Não há água potável para beber, nem banheiros disponíveis. Nenhum equipamento de proteção individual ou mesmo alojamentos para o descanso. O ofício desgastante deles é pago apenas com vales de compras do mercadinho mais próximo.

O cenário descrito acima foi encontrado por um grupo de combate ao trabalho escravo, formado por vários órgãos de fiscalização como o Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho (MPT), em um engenho no município de Água Preta, a 126 quilômetros do Recife. A ação foi realizada em 2012 e resultou no resgate de 21 trabalhadores submetidos a condições análogas ao trabalho escravo.

Naquele ano, o MPT em Pernambuco resgatou 33 pessoas que estavam sendo subjugadas a situações de trabalho semelhantes, incluindo seis resgates na construção civil e mais seis em uma pedreira, além do caso do engenho. Mas, desde 2012 não foram realizados novos flagrantes, embora o estado esteja longe de erradicar a exploração de trabalhadores.

Assim como acontece em Pernambuco, o combate ao trabalho análogo ao escravo, lembrado na segunda-feira (28), Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, está perdendo força em todo o país. Cortes orçamentários, mudanças na legislação trabalhista e decisões políticas, entre outros fatores, comprometem as ações de enfrentamento à escravidão moderna, onde pessoas são submetidas a atividades forçadas, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho.

Embora a escravatura tenha sido abolida há mais de 130 anos, o ranço da sociedade escravocrata, que se perpetua nas desigualdades sociais, econômicas, raciais e culturais, continua fazendo vítimas no Brasil. Desde 1995, quando o país reconheceu a existência de trabalho análogo ao escravo em seu território, até 2018, 53,6 mil brasileiros foram resgatados de trabalhos onde havia a exploração criminosa da mão de obra, segundo o MPT. No ano passado, foram 1.723 flagrantes em nível nacional. Em Pernambuco, 776 pessoas foram resgatadas de 1996 a 2018- a maior parte delas atuando no corte da cana-de-açúcar.

Resgates de trabalhadores em Pernambuco por município (Dados do MPT-PE)

Nos resgates, a maioria das vítimas são pessoas pobres e de baixa renda. Segundo dados do Observatório Digital do Trabalho Escravo, 15% dos trabalhadores se identificaram como negros e pardos e 17% como brancos, durante os resgates em Pernambuco. Em relação à escolaridade, 44% eram analfabetos e 23% não tinham completado o Ensino Fundamental.  “São indivíduos vulneráveis, invisíveis para a sociedade”, contextualiza o procurador Ulisses Carvalho, vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do MPT.

Ele conta que, em muitos dos resgates que acompanhou, as vítimas foram encontradas em lugares isolados, sem acesso a transporte para locomoção. Outros estavam presos ao trabalho por dívidas acumuladas junto aos patrões, que são geradas no ato da ‘contratação’. “Não existem mais os grilhões, mas ainda há prisioneiros”, diz.

O trabalhador resgatado tem direito a receber três parcelas do ‘Seguro Desemprego Especial para Resgatado’, no valor de um salário mínimo cada. Eles também têm prioridade para inclusão no Bolsa Família, mas o acompanhamento dessas pessoas e a inserção delas no mercado formal ainda é falho. Muitas vezes elas não conseguem um emprego e terminam se submetendo novamente a situações de exploração.

Combate 

Depois da Lei Áurea, o Brasil só reconheceu formalmente que a escravidão continua existindo em seu território em 1995. Reduzir alguém a esse tipo de condição é crime previsto no artigo 149 do Código Penal Brasileiro, com pena de reclusão de dois a oito anos e multa.  Mesmo assim, “nunca aconteceu prisão de empregadores por essas práticas no país”, ressalta o procurador Ulisses Carvalho, do Ministério Público do Trabalho. Mas houve avanços. A publicação do cadastro dos empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à de escravo, a “Lista Suja”, é um deles. Ao ser incluída neste cadastro, a empresa pode perder financiamentos por bancos públicos, entre outras consequências.

Porém, a fiscalização feita por grupos móveis formados por equipes interdisciplinares foi reduzida no país por falta de pessoal e de investimentos. Havia aproximadamente 12 grupos móveis em atuação no território nacional há pouco tempo atrás. Agora, restam apenas quatro, número que é considerado insuficiente para um monitoramento adequado. O próprio MPT também tem sido prejudicado pela falta de quadros. Por exemplo, há 24 procuradores do trabalho em Pernambuco – quatro no Interior e 20 na Capital. Apenas dois estão focados no combate ao trabalho escravo. É pouco para manter a vigilância sobre polos de desenvolvimento mais afastados, como o produtor de gesso no Sertão do Araripe.

Número de ações de fiscalização realizadas em Pernambuco por setor produtivo (Dados MPT-PE).

Além do corte de pessoas, há também o corte do orçamento. Em 2017, ainda no governo de Michel Temer, o contingenciamento do Orçamento Federal para despesas nessa área chegou a 52,7%. No mesmo ano, a quantidade de pessoas em condições análogas ao trabalho escravo resgatadas no país foi de 639, volume menor em relação ao ano anterior, quando 777 pessoas foram resgatadas.

No ano passado, os flagrantes e os resgates cresceram. Passaram de 645 flagrantes e 639 resgates em 2017 para 1.723 flagrantes e 1.133 resgates em 2018. “Mesmo assim, o congelamento de gastos públicos impede que o orçamento federal acompanhe a necessidade de fiscalização, que é crescente pelo avanço do desemprego e a flexibilização das leis trabalhistas”, na avaliação da  diretora direitos humanos da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Amatra), Luciana Conforti. “O trabalho tem sido prejudicado, por exemplo, pela vacância de cargos de auditores fiscais do trabalho, que é grande no Brasil. Não há concursos para suprir essas vagas e há pouca transparência com relação à aplicação dos recursos públicos nas ações de combate à escravidão moderna”, considera.

Reforma Trabalhista e fim do Ministério do Trabalho

Se por um lado, a carência na inspeção enfraquece o combate ao trabalho análogo ao escravo, por outro, o aumento do desemprego, da informalidade e as mudanças recentes na legislação trabalhista tornaram as relações de trabalho mais vulneráveis. Entre outras mudanças, a reforma trabalhista, por exemplo, flexibilizou as regras para a terceirização. “Acontece que a maioria dos resgates de trabalhadores em áreas urbanas foram realizados em terceirizadas”, lembra Luciana Conforti, da Amatra.

Depois da sanção da reforma, as relações formais de trabalho também foram fragilizadas. A judicialização de causas trabalhistas em todo o país caiu entre 40 e 50% porque, pelas novas regras, o trabalhador é obrigado a arcar com o custo dos honorários periciais e advocatícios caso perca a causa.

Além da reforma trabalhista que “abriu as portas para a precarização do trabalho”, a condução política aponta para um esvaziamento dos direitos do trabalhador, na avaliação de um dos coordenadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Xavier Plassat. Ele lembra que o presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), disse, ainda em campanha eleitoral,  que os brasileiros teriam “menos direitos e mais empregos”.

Assim que assumiu, Bolsonaro acabou com o Ministério do Trabalho, que foi dividido entre os ministérios da Economia, Justiça e Cidadania. A decisão prejudicou diretamente a fiscalização do trabalho escravo, atrelada atualmente ao Ministério da Economia. “Isso gerou um choque de interesses porque, com certeza, o poder econômico busca proteger os interesses das empresas e não dos trabalhadores”, avalia o procurador do MPT Ulisses Carvalho.A reportagem tentou contato com o Ministério da Economia, mas não conseguiu entrevistar nenhum representante até a publicação desta matéria.

A redução de status deixou o Ministério do Trabalho sem autonomia e orçamento próprio. Até agora, por exemplo, quase no fim do mês de janeiro, ainda não se sabe como ficará a Divisão de Radicação do Trabalho Escravo, um dos departamentos do extinto MTE. “Há uma incerteza sobre se a equipe será mantida ou quem ficará na chefia”, revelou Carvalho.

O próximo passo nesse retrocesso pode ser o fim da Justiça do Trabalho, como defende o presidente Jair Bolsonaro. Ele já chegou a dizer que existe um “excesso de proteção” dos trabalhadores no Brasil e que o país é o único a ter Justiça do Trabalho. Mas “não há base para comparação”, segundo o procurador do MPT. “Nos EUA, por exemplo, há uma tradição forte de causas coletivas”, explica.

Outro argumento tendencioso, na percepção do procurador, é o de que o Brasil seria o país com maior número de processos trabalhistas. “É impossível comparar números absolutos porque há diferenças nas leis. Ademais, os números do Conselho Nacional mostram que a Justiça do Trabalho é a que funciona mais rápido e a que mais produz”, lembra.

Xavier Plassat, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), diz que os posicionamentos do presidente em relação ao mundo do trabalho refletem “um negacionismo da existência da escravidão moderna no país”. Ele diz que os movimentos sociais precisam estar atentos e não esmorecerem diante dos desafios. “Não vamos desistir de cobrar e nos manifestar”, reforça.

Dentro dessa perspectiva de mobilização para garantir a fiscalização do trabalho, Luciana Conforti, da Amatra, considera que o maior desafio atual são as tentativas de redução dos conceitos legais de trabalho escravo. “Atualmente tramitam pelo Congresso alguns projetos de lei com esse objetivo, o que pode prejudicar ainda mais o combate a esse crime no país”. Para ela é fundamental que os brasileiros estejam conscientes e vigilantes com relação aos seus direitos.

Para marcar o Dia Nacional de Combate ao Trabalho escravo, em 28 de janeiro, o MPT lança uma campanha nacional nas suas redes sociais. O objetivo é conscientizar a população sobre o problema e estimular denúncias que podem ser feitas de forma anônima pelo link https://peticionamento.prt6.mpt.mp.br/denuncia ou no aplicativo MPT Pardal, que é gratuito e está disponível para Android, no Google Play, e IOS, na App Store.

Fonte: Marco Zero
Texto: Helena Dias e Mariama Correia
Data original da publicação: 28/01/2019

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