Capitalismo e Ideologia, o novo livro de Thomas Piketty

Capa e contracapa do novo livro de Thomas Piketty, “Capital et Idéologie”. Imagem: Seuil

“Capitalismo e Ideologia” é dividido em quatro blocos: regimes inigualitários na história, escravidão e sociedades coloniais, a grande transformação do século XX e as dimensões do conflito político.

Cesar Locatelli

Fonte: GGN
Data original da publicação: 04/09/2019

“Toda sociedade humana deve justificar suas desigualdades.”

“A partir dessa análise histórica, emerge uma conclusão importante: é a luta pela igualdade e pela educação que permitiu o desenvolvimento econômico e o progresso humano, e não a sacralização da propriedade, estabilidade e desigualdade.”

“Retomando o fio da história, numa perspectiva multidisciplinar, é possível chegar a uma narrativa mais equilibrada e delinear os contornos de um novo socialismo participativo para o século XXI, isto é, imaginar um novo horizonte igualitário com um objetivo universal, uma nova ideologia de igualdade, de propriedade social, de educação e de compartilhamento de conhecimentos e poderes, mais otimista sobre da natureza humana, e também mais preciso e convincente do que as narrativas precedentes, porque melhor ancorado nas lições da história global.”

O novo livro do autor, “O Capital no século XXI”, está previsto para chegar às livrarias no dia 12 de setembro próximo. “Capitalismo e Ideologia” é dividido em quatro blocos: regimes inigualitários na história, escravidão e sociedades coloniais, a grande transformação do século XX e as dimensões do conflito político. A publicação é de Les Editions du Seuil, com 1232 páginas.

Segue um trecho da Introdução:

Toda sociedade humana deve justificar suas desigualdades: devemos encontrar razões para elas, caso contrário, é todo o edifício político e social que se arrisca a entrar em colapso. Cada época produz, assim, um conjunto de discursos e ideologias contraditórios, que visam legitimar a desigualdade, da forma como ela existe ou deveria existir, e descrever as regras econômicas, sociais e políticas para estruturar o conjunto todo.

Desse confronto, que é ao mesmo tempo intelectual, institucional e político, geralmente surgem uma ou mais narrativas dominantes, nas quais se baseiam os regimes inigualitários.

Nas sociedades contemporâneas, isso inclui a narrativa ‘proprietarista’, empreendedorista e meritocrática: a desigualdade moderna é justa, porque decorre de um processo de livre escolha, no qual todos têm as mesmas oportunidades de ter acesso ao mercado e à propriedade, e onde todos espontaneamente se beneficiam das acumulações dos mais ricos, que também são os mais empreendedores, os mais merecedores e os mais úteis.

Isso nos colocaria em situação oposta da desigualdade nas sociedades antigas, que se baseavam em disparidades estatutárias rígidas, arbitrárias e muitas vezes despóticas.

O problema é que essa grande narrativa ‘proprietarista’, e meritocrática, que teve seu primeiro momento de glória no século XIX, após o colapso das sociedades da ordem do Antigo Regime, e após uma reformulação radical e em escala mundial desde o final do século XX, em seguida à queda do comunismo soviético e o triunfo do hipercapitalismo, parece cada vez mais frágil.

Isso leva a contradições, cujas formas são certamente muito diferentes na Europa e nos Estados Unidos, Índia e Brasil, China e África do Sul, Venezuela e Oriente Médio.

No entanto, essas diferentes trajetórias, decorrentes de histórias específicas e parcialmente conectadas, estão no início do século XXI cada vez mais intimamente ligadas entre si.

Somente uma perspectiva transnacional pode ajudar a entender melhor essas fragilidades e a considerar a reconstrução de uma narrativa alternativa.

De fato, o aumento das desigualdades socioeconômicas é percebido em quase todas as regiões do mundo desde as décadas de 1980 e 1990. Em alguns casos, adquiriu proporções tão grandes que está se tornando cada vez mais difícil justificá-las em nome do interesse geral.

Há também por todo lado, além disso, um abismo escancarado entre as proclamações meritocráticas oficiais e as realidades enfrentadas pelos menos favorecidos em termos de acesso à educação e à riqueza.

O discurso meritocrático e empreendedorista, muitas vezes, aparece como uma maneira conveniente para os vencedores do sistema econômico atual justificarem qualquer nível de desigualdade, sem sequer ter que examiná-lo, e estigmatizarem os perdedores por sua falta de mérito, de virtude e de diligência.

Essa culpa dos mais pobres não existia, ou, pelo menos, não de forma tão ampla, nos regimes inigualitários anteriores, que insistiam mais na complementaridade funcional entre os diferentes grupos sociais.

A desigualdade moderna também é caracterizada por um conjunto de práticas discriminatórias e desigualdades estatutárias e etno religiosas cuja violência é mal descrita pelo conto de fadas meritocrático, e que nos aproxima das formas mais brutais das velhas desigualdades que reivindicamos para nos distinguir.

Podemos citar as discriminações enfrentadas por quem não tem casa ou vem de certos bairros e origens. Também pensamos nos migrantes que se afogam.

Diante dessas contradições, e por falta de um novo horizonte universalista e igualitário credível para enfrentar os desafios da desigualdade, da migração e do clima à frente, é de se temer que a regressão identitária e nacionalista se torne cada vez mais uma grande narrativa substitutiva, como foi visto na Europa durante a primeira metade do século XX, e como se manifesta novamente no início do século XXI em diferentes partes do mundo.

Foi a Primeira Guerra Mundial que lançou o movimento de destruição e, em seguida, de redefinição da globalização comercial e financeira muito desigual em curso na “Belle Epoque” (1880-1914), época que parecia “belle” somente em comparação com as explosões de violência que se seguiram, e que o era verdadeiramente para os proprietários e, particularmente, para o homem branco proprietário.

Se não transformarmos profundamente o sistema econômico atual para torná-lo menos desigual, mais equitativo e mais sustentável, tanto entre os países quanto dentro dos países, então o “populismo” xenófobo e seus possíveis sucessos eleitorais futuros poderão começar, muito rapidamente, o movimento de destruição da globalização hipercapitalista e digital dos anos 1990 a 2020. Para afastar esse risco, o conhecimento e a história continuam sendo nossos melhores trunfos.

Toda sociedade humana precisa justificar suas desigualdades, e essas justificativas sempre contêm sua parcela de verdade e exagero, imaginação e baixeza, idealismo e egoísmo. Um regime inigualitário, conforme definido nesta pesquisa, caracteriza-se por um conjunto de discursos e arranjos institucionais que visam justificar e estruturar as desigualdades econômicas, sociais e políticas de uma determinada sociedade.

Cada regime tem suas fraquezas e só pode sobreviver se redefinindo constantemente, geralmente de maneira violenta e conflituosa, mas também apoiando-se em experiências e conhecimentos compartilhados.

Este livro tem por objeto a história e o futuro de regimes desiguais. Ao reunir materiais históricos relativos a sociedades distantes umas das outras e que, na maioria das vezes, se ignoram ou recusam a se comparar umas às outras, espero contribuir para uma melhor compreensão das transformações em andamento, de uma perspectiva global e transnacional.

A partir dessa análise histórica, emerge uma conclusão importante: é a luta pela igualdade e pela educação que permitiu o desenvolvimento econômico e o progresso humano, e não a sacralização da propriedade, estabilidade e desigualdade.

A nova narrativa hiperinigualitária que surgiu desde as décadas de 1980 e 1990 é parcialmente o produto da história e do desastre comunistas. Mas, essa narrativa, também é fruto da ignorância e da divisão do conhecimento, e ela contribuiu amplamente para nutrir o fatalismo e as correntes identitárias atuais.

Retomando o fio da história, numa perspectiva multidisciplinar, é possível chegar a uma narrativa mais equilibrada e delinear os contornos de um novo socialismo participativo para o século XXI, isto é, imaginar um novo horizonte igualitário com um objetivo universal, uma nova ideologia de igualdade, de propriedade social, de educação e de compartilhamento de conhecimentos e poderes, mais otimista sobre da natureza humana, e também mais preciso e convincente do que as narrativas precedentes, porque melhor ancorado nas lições da história global.

Compete, é claro, a cada um julgar e se apoderar dessas poucas lições, frágeis e provisórias, para transformá-las e conduzi-las ainda mais longe.

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