A pandemia escancarou os problemas estruturais que marcam a formação histórica do Brasil. Entrevista com Yuri Costa

Já há algum tempo o campo dos Direitos Humanos vem sendo alvo de ataques. Com a subida de uma direita conservadora ao poder, essas reações passaram a ser orquestradas também desde as instituições estatais. É essa a avaliação do professor Yuri Costa, que reflete a partir da realidade brasileira. “O discurso que reduz os Direitos Humanos à defesa de ‘criminosos’ é um discurso raso e claramente voltado à manutenção dos privilégios de uma minoria não comprometida com a expansão de direitos e de garantias sociais”, aponta, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ele compreende que “Direitos Humanos constituem-se como esfera de proteção que garante a existência digna a homens e mulheres”. Logo, “defender Direitos Humanos é defender o óbvio, pois significa, ao fim e ao cabo, lutar para que cada pessoa tenha o mínimo para que sua existência seja suportável e digna. Moradia, alimentação, saúde, vestuário, educação, trabalho…”. Mas, segundo Yuri, para compreender os ataques e as tentativas de retroceder em conquistas é preciso ter claro que a desigualdade é o suporte à supressão de Direitos Humanos. “Em um país com expressivo quadro de desigualdade social como o nosso, a defesa dos Direitos Humanos aparece como algo fundamental. Dessa forma, toda defesa por Direitos Humanos se converte na luta pela diminuição de desigualdades. Não há como desvincular uma coisa da outra”, enfatiza.

O professor ainda observa como a experiência da pandemia no Brasil reacende a necessidade de lutar por esses direitos. “A pandemia escancarou os problemas estruturais que marcam a formação histórica do Brasil, a exemplo da desigualdade no tratamento que damos a diferentes grupos sociais. Não por outra razão, a excepcionalidade da crise sanitária rapidamente se converteu em um drástico quadro socioeconômico”, analisa. E deixa claro: “o contexto que atravessamos lança diferentes desafios na área dos Direitos Humanos, sendo o principal não admitir retrocessos”.

Yuri Michael Pereira Costa é defensor público federal, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (biênio 2021/2022), doutor em História pela UNISINOS e professor adjunto da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Também possui mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. É atualmente membro do Comitê Especial de Atendimento a Grandes Impactos Sociais – CEAGIS, da Comissão Permanente dos Direitos dos Povos Indígenas e Quilombolas do Conselho Nacional de Direitos Humanos – CNDH, do Grupo de Trabalho em Políticas Etnorraciais – GTPE-DPU, do Conselho Penitenciário do Estado do Maranhão, da Comissão para a Erradicação do Trabalho Escravo no Maranhão, do Gabinete de Gestão Integrada em Segurança Pública do Maranhão e do Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No Brasil de hoje, quais os maiores desafios para a promoção dos Direitos Humanos? E como avalia o papel do Estado nessa promoção atualmente?

Yuri Costa – A construção de uma cultura que conheça e respeite os Direitos Humanos é um desafio constante. Essa luta se dá desde o pós-Segunda Guerra Mundial, quando foi estruturado um sistema internacionalmente voltado à proteção desses direitos.

No Brasil de hoje, o desafio parece adquirir elementos específicos. Nunca se teve de maneira tão explícita e institucionalizada um discurso contrário aos Direitos Humanos, que busca os deslegitimar e mesmo os associar a algo contrário ao desenvolvimento do país. Infelizmente, o Estado adquire protagonismo nesses ataques. Isso é lamentável e constitui grave retrocesso, pois ao poder público cabe, exatamente, promover os Direitos Humanos e proteger indivíduos e grupos vulnerabilizados.

IHU On-Line – As maiores infrações na promoção de Direitos Humanos ocorrem no Brasil urbano ou no campo, nas florestas e rincões do país? Por quê?

Yuri Costa – No Brasil, há lesões sistemáticas aos Direitos Humanos tanto no campo quanto na cidade. Cada um desses ambientes possui peculiaridades relacionadas a esse estado de coisas. Não é uma questão de gradação, ou seja, de qual desses espaços tem maiores lesões a direitos, e sim de perceber as características de cada ambiente.

No campo, aponto os conflitos fundiários e os ataques aos modos de vida de Povos e comunidades tradicionais como elementos que concentram boa parte dessas lesões. Na cidade, certamente a questão da moradia e a violência são igualmente destacáveis. Infelizmente, construímos historicamente um país injusto e desigual, que transformou tanto o ambiente rural quanto o espaço urbano em locais de exclusão e violência.

IHU On-Line – Em que medida a pandemia ressignifica a busca pela promoção dos Direitos Humanos? Quais os maiores desafios nesse sentido, desde a eclosão da Covid-19?

Yuri Costa – A pandemia escancarou os problemas estruturais que marcam a formação histórica do Brasil, a exemplo da desigualdade no tratamento que damos a diferentes grupos sociais. Não por outra razão, a excepcionalidade da crise sanitária rapidamente se converteu em um drástico quadro socioeconômico. Se há algo que aprendemos com os primeiros meses da pandemia é que ela não atinge grupos sociais da mesma maneira. O frágil discurso de que a doença seria “democrática”, impactando igualmente ricos e pobres, não sobreviveu às observações iniciais da realidade nacional.

O contágio que chegou em voos internacionais preenchidos pelas elites rapidamente mostrou-se muito mais drástico ao atingir, por exemplo, as periferias de grandes cidades, os imigrantes refugiados ou a população em situação de rua. Diante de tal cenário, nunca foi tão importante o reforço da defesa e da propagação dos Direitos Humanos.

IHU On-Line – Numa perspectiva histórica, como avalia a relação do Estado brasileiro com a promoção dos Direitos Humanos?

Yuri Costa – O que se pode conceber historicamente como Estado brasileiro, em suas diferentes dimensões e contextos, nunca teve como prioridade a proteção dos direitos da maioria da população. Nesse sentido, o Estado serviu (e em boa medida ainda serve) bem mais para a reprodução dos privilégios de uma minoria.

O abismo no acesso à educação, os problemas no serviço público de saúde, o racismo institucionalizado e a composição da população carcerária são alguns dos exemplos do quanto historicamente o Estado brasileiro contribuiu para a construção de estruturas que reproduzem lesões a direitos de pessoas e grupos vulnerabilizados. Como já citei, esse quadro é problemático em demasia, já que é esse mesmo Estado que deveria guiar a promoção de Direitos Humanos a partir do planejamento e da execução de políticas públicas que os valorizem.

IHU On-Line – A escravidão foi o maior atentado aos Direitos Humanos da História do Brasil? Por quê? E já superamos as máculas deixadas pela escravidão?

Yuri Costa – A escravização de indígenas, de africanos e de afrodescendentes, levada a cabo por séculos em nosso país, foi certamente a mais perversa e violenta lesão a Direitos Humanos que experimentamos. A escravização teve como uma de suas principais bases de sustentação e negação da humanidade do escravizado, além de reproduzir-se tendo como regra a violência e a tortura sobre os corpos de homens e mulheres sujeitos ao cativeiro.

Não consigo pensar em outra expressão de lesão à dignidade humana tão expressiva em nossa História. Além disso, não podemos esquecer que a escravidão foi uma política prevista em lei, assumida e incentivada pelo Estado. Constituiu-se, assim, no que hoje chamamos de política pública.

Por outro lado, as projeções das consequências do sistema escravista para quem dele foi vítima são ainda marcantes no Brasil. Nesse sentido, políticas de reparação a indígenas e a negros devem ser uma prioridade do Estado e da sociedade como um todo.

IHU On-Line – Lilia Schwarcz defende a tese de que o autoritarismo brasileiro vem do mandonismo que se origina no Brasil Colônia e que é atualizado no Império e nos diferentes períodos Republicanos. Como o senhor apreende esse ‘mandonismo’ autoritário?

Yuri Costa – O chamado mandonismo, denominado por outros autores de clientelismo ou por expressões similares, de fato foi estruturante em nossa sociedade desde os tempos coloniais. O poder das elites locais, por séculos, funcionou como importante mecanismo de reprodução de privilégios das elites e de violência contra minorias.

Concordo com Schwarcz que, de lá para cá, mudaram substancialmente as formas de expressão do mandonismo, o que não impediu de continuar presente nos dias atuais, e não apenas no campo ou em pequenas cidades. A violência, a corrupção, o racismo e o sexismo são alguns dos herdeiros diretos de um mandonismo que encontrou formas de reproduzir as desigualdades em nosso país e ainda hoje consegue manter privilégios de uma minoria em detrimento da maior parte da população brasileira.

IHU On-Line – No que diz respeito à proteção dos povos originários, quais os maiores desafios atualmente? Como o senhor analisa todo o retrocesso que vem ocorrendo nos últimos anos?

Yuri Costa – A despeito de não haver uma definição fechada do que sejam Povos e comunidades tradicionais, entendo que a principal característica dessas coletividades é a resistência cultural e social como base de sua organização e de sua conduta política. Tal resistência ganha forma na luta cotidiana pela reprodução desses grupos, e não apenas enquanto perpetuação física, mas como manutenção de uma peculiar visão de mundo e de um modo específico de vida material e mental.

Dito isso, é importante localizar como os ataques recentemente dirigidos a Povos e comunidades tradicionais, se por um lado são sérios e prejudiciais a essas coletividades, por outro se apresentam como a atualização de um racismo e de uma postura genocida que marca a História do Brasil desde o início de nossa colonização. Em meio a tais ataques, é de grande relevância reforçar a importância dos chamados povos originários, protegendo seus modos de vida, sem deixar de lhes dar o protagonismo nessa defesa.

IHU On-Line – O avanço de perspectivas mais conservadoras deu vazão a uma série de concepções manifestadas por algumas pessoas no sentido de que “Direitos Humanos são privilégios”, que “defendem bandidos” e que na proteção de indígenas “impedem a expansão da produção e o desenvolvimento”. Como responder a essas posições?

Yuri Costa – Os Direitos Humanos constituem-se como esfera de proteção que garante a existência digna a homens e mulheres. Nesse sentido, costumo pensar que defender Direitos Humanos é defender o óbvio, pois significa, ao fim e ao cabo, lutar para que cada pessoa tenha o mínimo para que sua existência seja suportável e digna. Moradia, alimentação, saúde, vestuário, educação, trabalho… todas essas são esferas ligadas diretamente à cultura dos Direitos Humanos.

O discurso que reduz os Direitos Humanos à defesa de “criminosos” é um discurso raso e claramente voltado à manutenção dos privilégios de uma minoria não comprometida com a expansão de direitos e de garantias sociais. De outra parte, não há qualquer descompasso entre a defesa de Direitos Humanos e a ideia de desenvolvimento. Muito pelo contrário. Um país somente se desenvolve verdadeiramente com a ampliação de direitos, e não meramente com o crescimento econômico, sobretudo quando concentrado nas mãos de poucos e em detrimento da maior parte da população.

IHU On-Line – Ao mesmo tempo que vemos discursos correntes de criminalização e condenação de pessoas minorizadas, vemos também discursos mobilizadores que visam denunciar tais perspectivas. Como o senhor observa essa aparente contradição? E como isso se atualiza, por exemplo, no caso de João Alberto Silveira Freitas, homem negro morto pelos seguranças do Carrefour em Porto Alegre?

Yuri Costa – Não vejo contradição entre o aumento dos ataques a grupos vulnerabilizados e as expressivas formas de resistências que tais grupos têm protagonizado. Há, em verdade, uma grande aproximação entre esses elementos. O crescimento da visibilidade de pautas de mulheres, de negros, da população LGBTQI+, de imigrantes e de Povos e comunidades tradicionais é um ato político e, como todo ato de poder, encontra resistência. No caso, a resistência à conquista de direitos dessas minorias se dá exatamente por aqueles indivíduos e grupos historicamente privilegiados, que construíram e mantêm seus elementos de distinção social e econômica justamente a partir do jugo e da violência contra a maior parte da população. Infelizmente, o Estado não raramente tem sido autor desses atos violentos e discriminatórios contra pessoas vulnerabilizadas.

IHU On-Line – Muitos defendem que os Direitos Humanos devem ser efetivamente trabalhados como conteúdos programáticos desde a Educação Básica. O senhor concorda? Como avalia a forma como o tema vem sendo tratado em sala de aula?

Yuri Costa – Não há respeito aos Direitos Humanos sem uma adequada educação em direitos. E não estou falando da educação em bancos de faculdades de cursos jurídicos. Refiro-me a uma cultura que leve a educação em direitos para as salas de aula desde as séries mais básicas da vida escolar. O exercício da cidadania, por meio sobretudo da exigência de direitos e de combate a violências e discriminações, deve ser cultivado desde cedo.

Entendo que ainda estamos muito longe dessa proposta, mas certamente houve avanços significativos nas últimas décadas. As escolas e os professores são cada vez mais desafiados a extrapolar um ensino conteudista e a trabalhar competências e habilidades críticas dos alunos e alunas. Esse me parece um caminho relevante para o que aqui chamei de cultura da educação em direitos.

IHU On-Line – A promoção dos Direitos Humanos pode ser vista como uma via para que se busque a redução das desigualdades? E como viabilizar isso?

Yuri Costa – Em um país com expressivo quadro de desigualdade social como o nosso, a defesa dos Direitos Humanos aparece como algo fundamental. Dessa forma, toda defesa por Direitos Humanos se converte na luta pela diminuição de desigualdades. Não há como desvincular uma coisa da outra.

Não por outra razão, a efetivação dos Direitos Humanos passa, em boa medida, pela ampliação de direitos e garantias. Incluir pessoas e grupos historicamente excluídos em políticas públicas antes voltadas a determinados segmentos da sociedade se converte, por exemplo, em relevante fator de efetividade dos Direitos Humanos.

IHU On-Line – Que relação podemos estabelecer entre promoção dos Direitos Humanos e Justiça Socioambiental?

Yuri Costa – As últimas décadas transformaram bastante a ideia de meio ambiente no Ocidente. Uma dessas transformações foi a superação da defesa de uma natureza intocada como principal meta do discurso ambientalista e a percepção de que se deve lutar pela perspectiva socioambiental. Grosso modo, é hoje incentivada a noção de que não se separa a dimensão humana da dimensão ambiental.

Em boa medida, a defesa de Direitos Humanos, como ferramenta para a proteção de pessoas e coletividades vulnerabilizadas, acaba sendo direcionada pela esfera socioambiental, pois não há como se garantir a defesa de minorias sem a luta por essa dimensão. Isso se dá de forma destacada, sobretudo, na proteção de grupos com uma visão de mundo peculiarmente relacionada à natureza e a seus recursos, como Povos e comunidades tradicionais.

IHU On-Line – Que Brasil o senhor apreende desde o estado do Maranhão, onde vive?

Yuri Costa – O Maranhão é um dos estados mais pobres e mais desiguais do Brasil. Figuramos como último colocado em diferentes e relevantes índices de desenvolvimento humano. Uma década de atuação como defensor público federal responsável pela pauta de Direitos Humanos no Maranhão me ensinou, infelizmente, o quanto a realidade maranhense atual reproduz um estado de coisas marcado pela violência e pelo desrespeito a direitos no campo e na cidade. Nessa perspectiva, se a experiência a partir do Maranhão certamente não destoa da maior parte da realidade brasileira, em boa medida ela apresenta uma dimensão peculiar, relacionada sobretudo a formas próprias de organização e de mobilização social.

IHU On-Line – Vivemos um tempo de muitas dificuldades, em meio a crises que vão desde econômicas, a sociais, ambientais, políticas, éticas e até sanitária. Como, em meio a tudo isso, renovar as esperanças e acreditar que é possível mudar essa realidade?

Yuri Costa – O contexto que atravessamos lança diferentes desafios na área dos Direitos Humanos, sendo o principal não admitir retrocessos. As conquistas no combate às distintas formas de violência e na defesa dos direitos sociais foram alcançadas a duras penas, com sacrifícios de indivíduos e coletividades e a longo prazo. Não se pode admitir o desfazimento dessas conquistas. Em boa medida, é o reforço de políticas governamentais o que contribuirá para a ampliação desses direitos. Quando o poder público deixa de atuar e reduz investimentos na atenção à população vulnerabilizada, logo se torna claro o retrocesso na área de Direitos Humanos. A crença na mudança da realidade é algo necessário e permanente. Não podemos perder esse foco.

Fonte: IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 13/01/2021

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