Uma alegoria da batalha entre capitalismo e democracia

Imagem: Netflix

Na nova temporada da série da Netflix, Round 6, as circunstâncias desesperadoras dos jogadores os levam a fazer apostas fatalmente arriscadas no sucesso individual, mesmo quando a ação coletiva pode salvá-los.

Caitlyn Clark

Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Pedro Silva
Data original da publicação: 17/01/2025

Se a temporada de estreia da série coreana Round 6 da Netflix expôs os males do capitalismo moderno, sua aguardada segunda temporada reflete os desafios de se organizar contra ele.

Lançado inicialmente em 2021, Round 6 se tornou um fenômeno global da noite para o dia. No programa de sobrevivência distópico, jogadores financeiramente desesperados entram em uma série de desafios adaptados de jogos infantis coreanos na esperança de ganhar um grande prêmio em dinheiro. As apostas são letais: perca um jogo e você será eliminado — permanentemente.

Toda vez que um dos cerca de quatrocentos jogadores morre, o prêmio total em dinheiro é aumentado em 100.000.000 wons coreanos (aproximadamente US$ 70.000). Após cada rodada, os jogadores têm a opção de fazer uma votação popular sobre continuar ou não os jogos. Se os jogadores votarem para encerrá-los antes que todas as seis rodadas sejam concluídas, o prêmio em dinheiro será dividido igualmente entre eles.

Na primeira temporada, os jogadores votam com sucesso para descontinuar o jogo após apenas a primeira rodada. No entanto, ao retornar à realidade de endividamento e desespero financeiro de suas vidas cotidianas, eles decidem voltar aos jogos. Em vez de contar moedas no mundo real, os jogadores arriscam suas vidas pela chance de se libertar da pobreza e do endividamento. É a exploração esmagadora e a injustiça do sistema capitalista que traz os jogadores de volta ao jogo.

A segunda temporada de Round 6 faz um uso ainda maior da votação, dramatizando o papel das eleições na manutenção do capitalismo. (Se quiser evitar spoilers, pare de ler agora.) Nos episódios mais recentes, o protagonista Seong Gi-hun retorna após vencer os jogos da primeira temporada e o prêmio de 38 bilhões de wons (aproximadamente US$ 26 milhões). Seu objetivo não é mais riqueza; ele quer encontrar o círculo de elites ultra ricas e sádicas que comandam os jogos para acabar com eles definitivamente. Depois que uma estratégia paramilitar insurgente falha, a única opção de Gi-hun se torna convencer os outros jogadores a votarem para parar os jogos.

O anônimo “mestre do jogo” dá um sermão para Gi-hun sobre a “benevolência” dos jogos, que oferecem aos pobres e oprimidos, o “lixo” da sociedade coreana, a oportunidade de se redimirem por meio da suposta meritocracia dos jogos sangrentos. Gi-hun está comprometido em provar que ele está errado. Mas, em vez de votar para se salvarem, os jogadores, atormentados por dívidas de contas médicas a investimentos fraudulentos em criptomoedas, continuam a votar para permanecer nos jogos. Atraídos pelo montante cada vez maior de prêmios em dinheiro em um enorme cofrinho brilhante, os jogadores convencem a si mesmos, e uns aos outros, de que podem jogar “só mais uma vez” antes de desistirem.

O mestre do jogo, disfarçado de jogador, se gaba para Gi-hun que os resultados das eleições provam seu ponto: os jogadores são egoístas, estúpidos, ávidos por dinheiro e não vale a pena salvá-los se eles nem estão dispostos a salvarem a si mesmos. Em outras palavras, os jogadores estão “votando contra seus próprios interesses” e merecem o que vier em seu caminho.

No entanto, longe de ilustrar a idiotice fundamental das pessoas comuns, as eleições fúteis na segunda temporada de Round 6 são uma analogia perfeita de como o capitalismo restringe e condiciona as ações da classe trabalhadora.

Em The Class Matrix [A Matriz de Classe], o sociólogo marxista Vivek Chibber argumenta que quando a sociedade capitalista carece de formas confiáveis ​​de organização da classe trabalhadora, a busca dos trabalhadores pelo interesse próprio individual é uma decisão racional. Sem sindicatos e partidos de trabalhadores, os custos de tomar uma ação coletiva contra a classe capitalista se tornam irracionalmente altos. Somente quando a organização da classe trabalhadora existe é que vemos um desafio sistêmico e coletivo ao capitalismo.

Chibber argumenta contra as ideias de falsa consciência e hegemonia cultural. Não é que os trabalhadores estejam confusos (a premissa básica da noção de falsa consciência de Friedrich Engels), mas sim que eles estão tomando decisões racionais a partir de seu próprio interesse material ao agir de forma individualista quando não há nenhuma forma de organização existente que tornaria a ação coletiva desejável ou mesmo possível.

Esta é uma releitura materialista de uma história frequentemente dominada pela cultura, mesmo entre pensadores marxistas. Para Antonio Gramsci, em uma leitura popular de sua obra, a classe capitalista usa sua posição dominante para moldar as ideias, crenças e valores de uma sociedade para apoiar o capitalismo — um processo chamado hegemonia cultural, que novamente sugere que os trabalhadores foram enganados. Mas para Chibber, é na verdade a estrutura material de nossa sociedade que determina principalmente o que os trabalhadores fazem, não suas ideias, sejam elas certas ou erradas. Nas palavras de Chibber, “Os trabalhadores aceitam o sistema não porque o considerem legítimo ou desejável, mas porque não veem outra escolha”. O capitalismo “permanece estável porque a ‘compulsão maçante das relações econômicas’ continua trazendo os trabalhadores de volta aos seus empregos todos os dias, estejam eles felizes ou não, estejam eles satisfeitos ou não”.

Na segunda temporada de Round 6, vemos isso acontecendo em tempo real, enquanto os jogadores votam repetidamente para continuar os jogos, mesmo depois de ver outros morrerem diante de seus olhos. Por meio dos alto-falantes assustadores, o locutor anônimo pede aos jogadores que respeitem a legitimidade das eleições “livres e justas”, enquanto ameaça punir aqueles como Gi-hun por tentarem convencer os outros a desistir. O tempo todo, guardas armados ficam em fila perante os jogadores.

Os jogadores não estão meramente iludidos. Eles não estão pensando irracionalmente. Sua escolha no jogo é feita no contexto de uma falta de escolha sobre suas condições econômicas fora do jogo. Eles não estão “votando contra seus próprios interesses”, mas sim avaliando sobriamente suas perspectivas sombrias de resistência e apostando no sucesso individual. A tarefa de Gi-hun — a tarefa da política — é tornar a ação coletiva uma escolha viável e racional.

Caitlyn Clark está na Universidade de Yale, estudando ciência política e é membro da Young Democratic Socialists of America. Ela atua no conselho editorial da Broad Recognition, uma revista feminista de Yale.

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