Um panorama dos “novos” problemas gerados pela gestão algorítmica: particularmente os impactos no tempo de trabalho

gestão algorítmica
Imagem: Pexel

Cássio da Silva Calvete

Esse artigo inaugura um novo espaço no Site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate. Nesse espaço iremos discutir como ocorrem os impactos nas Relações de Trabalho de novas tecnologias como a Inteligência Artificial, Gestão algorítmica e Softwares. Começaremos com uma série de dez artigos, que serão publicados mensalmente, que discorrem como as técnicas de gestão que utilizam essas novas ferramentas impactam no tempo de trabalho em suas três dimensões (intensidade, distribuição e extensão). Essa série será composta por esse primeiro artigo que expõe um panorama geral da situação e por mais nove artigos que detalharão como funcionam cada uma das técnicas de gestão. As técnicas de gestão analisadas serão: 1) a falta de transparência, 2) a assimetria de informações, 3) a discriminação, 4) a vigilância implacável e falta de privacidade, 5) a gameficação e gambleficação, 6) a instrumentalização, 7) a completa conexão do trabalhador, 8) a manipulação e, 9) ser tratado como um robô. 

A Inteligência Artificial (IA) está há tempos entre nós e seus efeitos positivos e negativos também estão em evidência. No entanto, com o surgimento do ChatGPT, que é uma ferramenta associada a IA, essa tecnologia ganhou maior espaço no debate público porque o potencial de suas consequências, novamente para o bem e para o mal, se mostrou extraordinário. Nunca é demais lembrar que nenhuma tecnologia determina as suas consequências, mas sim o uso que a sociedade faz dela e a forma como ela é implantada. Por isso, urge a discussão sobre a forma de utilização da IA e como ela deve ser controlada pela sociedade. Não podemos deixar que prevaleçam de forma acrítica nem a visão dos tecnofóbicos e nem a visão dos tecnófilos. Isso porque seguindo os primeiros iríamos tentar frear os avanços tecnológicos e por consequência também seus ganhos sociais e econômicos, e seguindo os segundos, não criaremos mecanismos para mitigar os efeitos perversos que inexoravelmente acompanham a implantação das novas tecnologias quando implantadas visando unicamente os interesses das empresas. Assim entendemos que o melhor caminho é absorvermos o melhor das duas visões para avançarmos no desenvolvimento tecnológico, mas mitigando os seus aspectos perversos. 

O termo Inteligência Artificial, que é a produção de dados para automatização de processos (o computador recebe dados/inputs, inseridos por humanos ou mesmo por sensores, processa-os e gera uma resposta/outputs), é um termo “guarda-chuva” que abriga uma série de ferramentas como o ChatGPT que ficou tão em voga a partir da sua disponibilização para o público em geral em novembro de 2022. A IA se enquadra na categoria de Tecnologia de Propósito Geral que quando partícipe do processo produtivo pode integrar-se em uma infinidade de processos de trabalho diferentes e, também de formas diferentes. Podemos caracterizar a IA como uma Inovação Revolucionária assim como foi a energia elétrica, a máquina a vapor e mais recentemente os computadores. Olhando dessa perspectiva histórica, a humanidade já sabe que junto com os benefícios da tecnologia vêm também os seus efeitos negativos como a poluição, a queima de postos de trabalho e outras mudanças, que em si não podem ser classificadas como boas ou más, mas dada a velocidade em que acontecem trazem problemas, estranhamentos e desconfortos. Portanto, o tamanho dos ganhos e das perdas e a forma como eles são distribuídos são determinados pela sociedade e não pela tecnologia. 

Os impactos da IA já são sentidos em todos os aspectos da vida humana e da sociedade. Muitos dos problemas que ocorrem nas relações de trabalho são comuns aos mais diversos tipos de relacionamento (comercial, social etc.). Também é preciso destacar que mesmo no âmbito das relações de trabalho os problemas aqui apontados têm impactos diversos e, em muitos casos, até mais importantes que os impactos que tem sobre o tempo de trabalho. A título de ilustração cito o aumento da invasão da privacidade e da discriminação que em si mesmo são problemas de enorme envergadura para a sociedade. Por isso mesmo, colocamos como título do artigo “Novos” problemas gerados pela gestão algorítmica de pessoal, justamente para destacar que os problemas vão muito além dos impactos que essas técnicas de gestão têm sobre o tempo do trabalho. Um dos objetivos do estudo é justamente fornecer uma listagem das novas técnicas de gestão de pessoal para que estudiosos de diferentes áreas, com olhares e preocupações diferentes, tenham uma listagem dos “novos” problemas trazidos pela gestão algorítmica como um roteiro para seus estudos críticos. No entanto, nessa série de artigos iremos nos dedicar a desvelar como a gestão algorítmica e a IA exercem impacto sobre o tempo de trabalho e, invariavelmente, de forma prejudicial aos interesses dos trabalhadores. 

Sabemos que as ferramentas que utilizam a IA são diversas e em expansão constante bem como os tipos de ocupação que impactam e a forma como o fazem. No entanto, procuraremos nos ater aos aspectos mais gerais que aparecem como problemas em muitas relações de trabalho e que pela velocidade com que surgem, bem como pelo desconhecimento da sociedade, são negligenciados pelos estudiosos, juízes e legisladores. Os problemas muitas vezes são similares nas novas ocupações, ou ocupações renovadas, e ocorrem, em parte pelo intenso uso das novas tecnologias utilizadas no gerenciamento como inteligência artificial, softwares algoritmos e vigilância; em parte, pela hegemonia de uma visão gerencial reconhecida como sendo originada no Vale do Silício e, em outra parte, não menos importante, pela busca de maior lucratividade das empresas. 

Dada a multiplicidade de casos, de formas de gerenciamento e de impactos, podemos citar vários direitos básicos dos trabalhadores que estão sendo desrespeitados e já foram exaustivamente discutidos na sociedade e vigoraram por muito tempo como sendo quase consensuais. Refiro as normas civilizatórias das relações de trabalho que garantem um Salário Mínimo para todo trabalhador, direito a férias, direito a uma jornada de trabalho não muito extensa, direito a aposentadoria, seguro saúde e acidente do trabalho. Direitos esses que são reconhecidos na Constituição brasileira e nas Resoluções da OIT.

Contudo, nesse estudo vamos nos dedicar aos “novos” problemas que a gestão por algoritmo e a inteligência artificial vêm inserindo nas relações trabalhistas e que de uma ou outra forma impactam as três dimensões do tempo de trabalho: intensidade, distribuição e extensão. Dessa forma, buscou-se identificar problemas que são comuns, em seu todo ou em parte, a todos trabalhadores gerenciados por algoritmos e inteligência artificial sejam eles plataformizados, micro-empreendedores, pejotizados ou mesmo trabalhadores formais. 

A utilização de técnicas de gestão e mesmo o monitoramento da força de trabalho é uma prerrogativa legítima e mesmo inerente ao processo de gestão e, portanto, direito do empregador. Logo, a questão que se coloca da necessidade de regulamentação do processamento e utilização de dados dos trabalhadores não é se esse monitoramento é justificável, mas, até que ponto ele pode ir e se manter justificável, legal e ético. Definir esses limites é cada vez mais difícil e necessário tendo em vista que o desenvolvimento tecnológico avança rapidamente e aprofunda o monitoramento e a vigilância dos trabalhadores a níveis antes inimagináveis. Essas tecnologias e a forma de suas utilizações criam novas questões jurídicas ou, pelo menos, questões que não têm uma resposta explícita e de entendimento consensual dos regimes regulatórios existentes (ABRAHA, 2023).

Abraha (2023) está se referindo de forma geral ao caso da União Europeia e o seu Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) que tenta suprir essa lacuna, mas que apesar do seu avanço na proteção dos cidadãos não consegue ser definitivo em todos os contextos. E, é, particularmente insuficiente na regulamentação do uso e monitoramento dos dados nas relações de trabalho como o próprio GDPR reconhece no seu artigo 88 que aponta para a necessidade de seus Estados-Membros elaborarem normas mais específicas para tratar das questões de relações de trabalho. Abraha (2022; 2023) aponta que muitos países já estão se debruçando sobre o problema, mas que ainda estão longes das melhores soluções e retrata particularmente o caso da Alemanha e suas contradições e paradoxos. Segundo Neri (2023, p. 5) no Brasil a situação é ainda pior, pois na formulação da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) “foram ignoradas praticamente todas as necessidades trabalhistas associadas a proteção de dados”.

Relativamente a questão do tempo de trabalho, a gestão algorítmica e a IA tem diversos expedientes para interferir no tempo de trabalho dos trabalhadores. Cada estratégia impacta mais diretamente em uma das três dimensões, no entanto invariavelmente ela também impacta nas outras. Os novos problemas se potencializam e muitas vezes também são similares, se confundem ou se sobrepõem. No tocante aos impactos no tempo de trabalho, que é o cerne da disputa entre capital e trabalho, cada expediente utilizado de forma discricionária pelos capitalistas atinge de forma específica uma ou mais das dimensões do tempo de trabalho buscando estender a jornada, torna-la mais flexível e intensa. A falta de transparência, a assimetria de informações, a discriminação, a gameficação e a instrumentalização impactam diretamente nas três dimensões. A manipulação impacta a intensidade e a distribuição, enquanto a vigilância e a falta de privacidade e ser tratado como um robô afetam mais diretamente a intensidade do trabalho. A maior, ou a completa, conexão ao trabalho afeta a extensão do tempo de trabalho (cada um desses expedientes será tratado separadamente e de forma mais profundada em colunas específicas que serão publicadas mensalmente nesse site). 

A inteligência artificial a cada dia que passa adquire novas funcionalidades e ganha mais sofisticação. Nas relações de trabalho ela está consolidada como ferramenta na gestão de pessoal e conquista novos espaços com uma velocidade impressionante. Apesar de estarmos vivenciando o início da sua utilização, já é bem perceptível os problemas que essa ferramenta de gestão acarreta aos trabalhadores: a discriminação, a falta de privacidade, a instrumentalização e a manipulação, são apenas alguns dos expedientes aqui descritos, mas que afetam a dignidade humana, leva a humilhação, a insegurança, a desumanização, enfim reificam os trabalhadores.

As normas e leis de direitos digitais devem ser elaboradas para dar direito e proteção aos trabalhadores contra as formas de gestão algorítma, de inteligência artificial e por softwares que levam ao limite a exploração dos trabalhadores  precarizando as condições de trabalho. Aos moldes do que foi feito para proteção dos cidadãos na União Europeia, com o Regulamento Geral de Proteção de Dados, e no Brasil, com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, deve ser criado um regulamento específico para uso e monitoramento dos dados nas relações de trabalho. Urge que o parlamento brasileiro discuta essas questões e crie leis que imponham limites às técnicas de gestão aqui apontadas. Leis que impeçam esse movimento perpetrado pelos donos do capital que controla, manipula, humilha e desumaniza os trabalhadores.

Bibliografia

ABRAHA, H. ‘A Pragmatic Compromise? The Role of Article 88 GDPR in Up holding Privacy in theWorkplace’ 12 International Data Privacy Law 276, 2022.

______.  Automated Monitoring in the Work place and the Search for a New Legal Framework: Lessons from Germany and Beyond. Early Draft Paper, presented at the study group on artificial intelligence at the Bonavero Institute of Human Rights at Magdalen College, University of Oxford, 2023. 

NERI, N. Neoliberalismo, dataficação e proteção de dados das pessoas trabalhadoras. In: Anais do Encontro Nacional da ABET. Anais. Brasília (DF) UnB, 2023. Disponível em: https//www.even3.com.br/anais/encontro-abet-2023/637958. Acesso em: 30/11/2023.

 

Cássio da Silva Calvete é Professor associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor em Economia Social e do Trabalho pela UNICAMP e com pós-doutorado pela Universidade de Oxford.

2 Responses

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *