
por Felipe Prestes
Em 2019, uma trabalhadora do Rio de Janeiro foi excluída da Uber sem qualquer explicação, após realizar quase 1,2 mil corridas pelo aplicativo em seis meses, sendo bem avaliada pelos usuários. A motorista resolveu ingressar na Justiça do Trabalho, pedindo o reconhecimento do vínculo empregatício, sem saber que seu caso se tornaria de suma importância até mesmo para o futuro das relações de trabalho no Brasil. Em 2024, o STF reconheceu o processo como matéria de repercussão geral. Ou seja, o que os ministros do Supremo decidirem sobre esta trabalhadora valerá também para contratações não só da Uber, mas de outras empresas de transporte, como a 99 e o Ifood.
A tramitação do caso da motorista fluminense mostra como o Judiciário brasileiro está dividido sobre o tema. Na primeira instância, o juiz Fabio Correia Luiz Soares entendeu que não havia vínculo, afirmando que a trabalhadora era dona de suas ferramentas de trabalho, não tinha jornada mínima, não recebia ordens diretas e não tinha fiscalização quanto a horários, rotas ou tempo mínimo de trabalho.
No TRT da 1ª Região a decisão foi revista, e o vínculo trabalhista foi reconhecido. A relatora no tribunal, desembargadora Carina Rodrigues Bicalho, pontuou que a capacidade controle nos meios digitais permite à empresa “obter um grau de fiscalização, controle e comando da prestação de serviços, tão ou mais intenso e eficiente que aquele exercido de modo presencial”. Esse controle se daria por meio de incentivos financeiros e sanções, como suspensão e exclusão da plataforma.
A Uber do Brasil foi condenada a realizar a anotação da carteira de trabalho da motorista, e a pagar direitos trabalhistas previstos em caso de demissão, como o aviso prévio, 13º salário e férias proporcionais, recolhimento do FGTS com pagamento da multa de 40%, indenização substitutiva de seguro desemprego, além de horas extras e indenização por dano moral. O TST manteve a condenação e a empresa ingressou com uma reclamação constitucional no STF, como tem feito em outros processos. Nestas decisões monocráticas, os ministros do Supremo têm dado ganho de causa à Uber, o que indica que a decisão do plenário, com repercussão geral, pode ser favorável às empresas.
O advogado José Eymard Loguercio, que atende a CUT Nacional, entende que a resposta da Justiça do Trabalho tem sido dúbia quanto à plataformização do trabalho. “Há juízes que reconhecem o vínculo e juízes que não reconhecem. O próprio TST não conseguiu uniformizar e, no meio dessa história, as empresas passaram a utilizar de um caminho tortuoso no Supremo, que foram as reclamações constitucionais, que eles começaram a promover, especialmente nos últimos três anos, para cassar decisões da Justiça do Trabalho”, relata.
As decisões dos ministros têm considerado que o trabalhador das plataformas é terceirizado, o que o advogado considera uma visão equivocada sobre o tema. “O Supremo começou, por decisão de cada um dos seus ministros, a dizer que já julgou este modelo de negócio quando julgou a terceirização. Mas, quando o Supremo decidiu sobre terceirização, ele não decidiu sobre os casos de contratação direta. Terceirização pressupõe que uma empresa externaliza uma parte da sua atividade para outra empresa, que contrata os trabalhadores”.
Para Murilo Carvalho Sampaio, juiz do trabalho e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o vínculo de emprego não deveria ser decidido pelo STF. “A gente não tem como saber se uma pessoa é autônoma ou subordinada em abstrato. A gente só vai saber isso se a gente examinar as provas do caso concreto, ouvir testemunhas, ver os documentos. E o STF não é um tribunal que enfrenta essa questão minúscula. Não é papel do Supremo”.
O magistrado relata que a maioria das decisões do TST são contrárias ao vínculo, mas que, atualmente, quatro turmas do tribunal têm reconhecido a relação trabalhista. “Se quatro turmas agora, na sua composição atual, reconhecem o vínculo, mais decisões viriam pela procedência. Só que o Supremo está interditando o debate”, lamenta.
Intermediação ou relação trabalhista?
O centro da polêmica sobre o trabalho plataformizado é definir se o que as empresas fazem é apenas intermediar a contratação de um serviço entre motoristas e consumidores, ou se são elas que prestam o serviço e controlam estes trabalhadores. Em muitos países essa dúvida parece não existir mais.
“No Brasil, o tema ganha uma polêmica maior”, ressalta Murilo Carvalho Sampaio. “Na maioria dos países da Europa há decisões reconhecendo o vínculo de emprego nesse modelo de negócios, como no caso da Uber, sobretudo após a última diretiva da União Europeia. Há também decisões em estados dos Estados Unidos”, complementa.
A diretiva a que o magistrado se refere foi adotada pelo Parlamento europeu no ano passado, e estabelece que a relação entre plataforma e trabalhador deve ser presumida como relação de emprego, determinando que os países-membros regulamentem esta questão em nível nacional. O regramento também define que nenhuma pessoa pode ser demitida com base em algoritmo ou outro tipo de decisão automatizada.
Em suas alegações no processo que está no STF, a Uber argumenta que o motorista é cliente dela e contrata a utilização da plataforma, em uma relação comercial, e não trabalhista. A empresa argumenta ainda que no trabalho feito por seus “parceiros” não há requisitos para configurar vínculo empregatício, como subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade.
Segundo a Uber, os trabalhadores não recebem ordens, ingerência ou fiscalização. A pessoalidade não está configurada pois o motorista poderia cadastrar auxiliares para dirigir seu veículo. Não haveria habitualidade, pois o parceiro pode usar a plataforma quando quiser. E a onerosidade estaria afastada, pois a companhia apenas repassaria valores das corridas ao motorista.
Murilo Carvalho Sampaio discorda dos argumentos da empresa. “Trabalhador autônomo é aquele sujeito que é dono do seu negócio, empreendedor no sentido estrito e fiel do termo, que cria um negócio, diz como se organiza, escolhe seus clientes, diz o preço do seu trabalho. Se você está num modelo de trabalho e você não escolhe clientes, você é avaliado, é punido, expulso se não tiver um desempenho, você não pode ser autônomo”.
Para o professor da UFBA, o fator que, por vezes, provoca confusão é que o trabalhador das plataformas de transporte tem flexibilidade de horários e dias de trabalho. Murilo Carvalho Sampaio afirma que essa forma de contratação está prevista desde 1943 na CLT e é uma forma de salário por produção. “As plataformas recuperaram uma forma salarial muito antiga, que é o salário por peça. Com isso, tentam ocultar a relação de assalariamento. Impor horário é irrelevante para a empresa, porque ela só paga pelo efetivo resultado, pela efetiva viagem. Do ponto de vista econômico, esse modelo é muito bom para a empresa. Os motoristas não recebem pelo tempo em que ficam esperando viagem e não recebem no tempo que gastam da chamada da viagem até o ponto de encontro do passageiro. Isso justifica por que essas empresas conseguem colocar um preço menor que as outras”.
“Pra não ter vínculo teria que ser verdadeiramente um serviço que aproxima consumidores e trabalhadores. O trabalhador pagaria uma taxa e usaria dentro de um limite, como um contrato de telefonia celular, e definiria seu horário de forma irrestrita, o valor da sua corrida”, afirma a socióloga e diretora-técnica do DIEESE, Adriana Marcolino. “As empresas criam mecanismos que fazem com que os trabalhadores tenham que ficar mais horas logados para poderem cumprir um determinado valor de salário, ela determina o valor da corrida, como o trabalho deve ser executado, monitora todo o trabalho – quanto tempo leva para se deslocar, quantas freadas – ela pode desligar o trabalhador da plataforma de modo unilateral, sem nenhuma explicação. São elementos de uma relação assalariada, de uma relação subordinada de trabalho”, completa.
A socióloga define os algoritmos das empresas como uma “caixa preta”, sobre a qual não se tem informações básicas para se entender como os trabalhadores estão sendo dirigidos. “É uma reivindicação dos trabalhadores, inclusive, que partes do algoritmo que são relacionadas diretamente com condições de trabalho possam ser auditadas”, relata. Trabalhadores relatam, por exemplo, que há momentos em que a empresa cria um bônus para quem atingir um determinado número de corridas em um espaço de tempo. “Então, os trabalhadores correm para tentar realizar essa quantidade de corridas, só que quando ele está chegando perto de realizar, ele deixa de receber corridas, porque o algoritmo consegue redistribuir de modo que não precise pagar esse bônus”, conta Marcolino.
Ainda segundo a diretora-técnica do DIEESE, quando a Califórnia estabeleceu um piso de remuneração para os trabalhadores, houve relatos de que sempre que o motorista atingia o piso ele parava de receber corridas. No entanto, essas formas de controle dos trabalhadores pelo algoritmo dificilmente são comprovadas, o que também dificulta o debate e a regulamentação.
Trabalhadores ou empreendedores?
Adriana Marcolino participou do grupo de trabalho que elaborou um projeto de lei com direitos trabalhistas para os motoristas das plataformas. O projeto era uma espécie de meio-termo, sem vínculo trabalhista, mas com garantia de seguridade social. O texto previa uma remuneração mínima por hora trabalhada, direitos previdenciários – como auxílio-doença e auxílio-maternidade – jornada máxima de 12 horas e regras mais rígidas para exclusão de trabalhadores.
Apesar de ter sido construído com participação de representantes dos trabalhadores, o projeto repercutiu mal entre a categoria e acabou não avançando. Nas redes sociais, motoristas questionavam temas como a jornada máxima e a contribuição previdenciária. “Teve muita confusão em relação aos principais pontos. Eu acho que faltou uma campanha de esclarecimento. Ele tinha limites, é óbvio, porque era uma negociação tripartite. Mas eu sempre avaliei como um primeiro passo, para estabelecer um risco no chão: menos que isso, não dá. A partir disso, os trabalhadores poderiam negociar com as empresas, ou surgirem novas legislações”, afirma Marcolino.
Para a diretora-técnica do DIEESE, o limite de jornada é “civilizatório” e garantiria segurança para os trabalhadores e passageiros. Ela conta que, apesar de expostos a possibilidade de acidentes e diversos problemas de saúde mental e física, hoje a maioria dos motoristas não têm seguridade social. “Os trabalhadores falam que podem ser MEI, mas, quando a gente vai verificar, a quantidade de trabalhadores que contribuem para a previdência é muito pequena. Além disso, é instável: esse mês tenho dinheiro, eu pago; mês que vem, não pago. Então, esse trabalhador não está coberto pela previdência”.
Como pano de fundo desse debate, está a questão do trabalhador se considerar empreendedor, além de prezar pela flexibilidade de horários, ainda que precise fazer longas jornadas para ter uma remuneração digna. Para a socióloga, as relações de trabalho no Brasil, marcadas pela superexploração, fazem com que se torne mais atraente a ideia de um novo modelo de trabalho. “Quando o trabalhador fala ‘eu não quero ser CLT’ é o conteúdo de uma fala histórica da relação capital e trabalho. Óbvio que ninguém quer ser subordinado a um patrão, ainda mais no Brasil. A gente tem relações servis, escravocratas, que ainda estão presentes na forma como nos relacionamos, as relações de trabalho são muito antidemocráticas. As denúncias de assédio moral e sexual no Brasil são gigantescas”.
O juiz Murilo Carvalho Sampaio chega a conclusão semelhante. “Nesse sistema de trabalho não há um encarregado, um capataz, que, muitas vezes, leva a situações de ofensa, de discriminação, de assédio. Então, prefiro me relacionar, digamos assim, com o algoritmo”.
No entanto, o discurso da categoria costuma ser contraditório. Mesmo ressaltando fatores que lhe concedem certa liberdade em relação às empresas, a maioria gostaria de gozar de direitos trabalhistas típicos da CLT. “São corretas as críticas que os trabalhadores fazem à CLT, mas quando a gente vai conversar com os trabalhadores da Uber, eles querem valor maior de salário-hora, um período de férias remunerado, adicional noturno, vale-refeição. Tem um conjunto de direitos que estão na CLT que todos os trabalhadores querem, ninguém quer abrir mão”, ressalta Adriana Marcolino.
Um projeto de pesquisa coordenado por Murilo Carvalho Sampaio na UFBA, chamado Assalariados Digitais, entrevistou 120 motoristas da Uber em 2019. Quando perguntados se seu trabalho era controlado pela empresa, 70% diziam que sim. Porém, quando questionados sobre serem empregados da Uber, a maioria respondia que não. “Ele tem uma percepção de que a Uber exerce ingerência, governa a vida dele. Mas ele acha que na CLT não tem espaço para essa formatação. E a gente entende que dá. A CLT comporta exatamente esse modelo de negócio, horário livre, ganhar só por viagem”, diz Sampaio.
O pesquisador pontua que o termo “trabalho por aplicativo” já carrega consigo uma indução ao erro na compreensão do fenômeno que tem mudado as relações trabalhistas no mundo todo. “O motorista não trabalha por aplicativo. O trabalho dele é dirigir nas ruas, trabalho físico, presencial, analógico. Quando a gente chama aplicativo, a gente invisibiliza a empresa que construiu uma rede tecnológica, que se expressa como um simples aplicativo, neutro, imparcial. Não é só uma tecnologia, é uma empresa que disse como vai funcionar o aplicativo, qual o tamanho da liberdade do motorista. Para a gente ter liberdade, a gente tem que ter liberdade de circulação. E, nos aplicativos, tudo o que a gente faz é só aquilo que as empresas consentem. Por isso, a regulação é indispensável. Elas são jogadoras e juízes do mesmo jogo”.
Para Murilo Carvalho Sampaio, o trabalho plataformizado pode ser até mesmo a antessala para o fim do direito do trabalho. “É um modelo de como organizar uma empresa sem responsabilidade trabalhista. Hoje, você tem professores que trabalham nesse formato, enfermeiros, cuidadores, todos os tipos de prestação de serviços podem ser agora organizadas por plataformas digitais. É uma forma de você ter trabalhadores dependentes, assalariados, sem dar a eles os direitos que foram conquistados nos últimos 200 anos, um projeto-piloto para o fim do direito do trabalho”.
Decisão do STF não deve encerrar o debate
Apesar de os ministros do STF não reconhecerem vínculo empregatício em suas decisões sobre o tema, José Eymard Loguercio acredita que os ventos podem estar mudando. “Houve uma audiência pública conduzida pelo relator que é o ministro (Edson) Fachin, que levou muitos elementos novos para a análise, porque no caso de uma repercussão geral, tem que se abrir para outras análises. Então, acho que esse é um elemento importante que poderá fazer com que alguns ministros repensem as consequências de uma decisão que afaste o vínculo por pressuposto”, diz.
Loguercio também crê que decisões do STF a respeito das redes sociais podem ter efeito sobre o entendimento dos ministros. “Eu penso que as decisões mais recentes do Supremo sobre limites para a questão do uso de redes sociais, embora não sejam matéria trabalhista, trazem elementos indiretos para essa discussão, porque o pressuposto de que a empresa pode se organizar do jeito que ela quiser, que ela tem liberdade de organização, contraria essa ideia de que tem liberdade, mas tem limites”.
Presente na audiência pública organizada pelo STF que discutiu a matéria, Adriana Marcolino diz que o ministro Fachin “não deu nenhuma pista” sobre seu voto. Ela acredita ser possível a fixação de uma tese com certos critérios para determinar ou não o vínculo. “É muito difícil avaliar qual vai ser o desfecho. Tem uma avaliação grande na sociedade de que se precisa criar um terceiro modelo, que não o vínculo. As características são de trabalho subordinado, teve um conjunto muito grande de juristas demonstrando os argumentos de relação subordinada. Pode ser que a gente não tenha força social para garantir isso. Tendo a acreditar que o mais provável é de que caminhe para uma regulamentação intermediária”.
Para Murilo Carvalho Sampaio, o desfecho no STF tende a ser a manutenção do entendimento de que não há vínculo trabalhista. “Tem, sim, modelos intermediários. Cada empresa tem uma sistemática de funcionamento. Existem empresas que não exercem direção, controle sobre os trabalhadores. Se a Uber deixasse o preço por conta do motorista negociar, não exigisse nota mínima, não punisse, ela seria uma grande rádio táxi. Mas pelos últimos julgamentos do STF, o Supremo vai dizer ‘olha, essas pessoas não são empregadas, não têm direito trabalhista. Ponto’”.
Ainda assim, o juiz e professor da UFBA crê que a luta coletiva pode levar a outro desfecho no futuro. “Daqui a cinco anos pode ser que os trabalhadores se revoltem tanto que consigam proteção em negociação coletiva, em atuação sindical”.
José Eymard Loguercio também acredita que a questão não terá fim com o julgamento do STF e que será necessária a elaboração de uma lei. Esta legislação, contudo, será fortemente influenciada pelo entendimento dos ministros. “Olhando para outros países, decisões judiciais não resolveram o problema, mas elas induziram processos legislativos e compromissos empresariais mais protetivos. Agora, o que a decisão judicial pode fazer? Ela pode levar para uma legislação mais protetiva ou pode levar para uma legislação menos protetiva. A decisão não vai resolver todas as questões, mas, com certeza, ela é parâmetro para uma boa regulação ou uma péssima regulação”.
O judiciário do stf etc
Não são confiável não
Cumpre a constituição