Trabalho e consciência: “Alto e Baixo”, de Akira Kurosawa

kurosawa
Fotografia: IMDB

Gláucia Campregher

Não fiz nenhuma pesquisa científica, mas eu diria que o grande cineasta japonês Akira Kurosawa é mais conhecido no Brasil pelos filmes onde retrata situações e eventos num passado distante do Japão – como Ran, Kagemusha, Rashomon, Yojimbo, ou Os sete samurais – do que os que trata de um passado recente. Todos estes filmes de Kurosawa fazem o que considero o mais interessante no cinema, que é mostrar como as histórias pessoais estão relacionadas aos processos sociais, ou às histórias nacionais e, até, universais. Assim é que, nos filmes citados acima, vemos os dramas demasiado humanos de camponeses, guerreiros samurais ou senhores feudais, absolutamente ligados aos trágicos momentos de construção da nação Japão, momentos onde toda uma sociedade rural, rigidamente estratificada e cindida, estava colapsando e se transformando. Ocorre que Kurosawa tem também filmes fascinantes – onde esta chave pessoal-social é o centro da trama – que tratam do Japão moderno, não mais feudal ou imperial, onde o capitalismo já se estabeleceu há muito e o individualismo subordina, mesmo que não destrua completamente, valores de pessoalidade milenares, como a honra. Dois destes filmes em particular me chamam muito a atenção, Homem Mau Dorme Bem e Alto e Baixo, que foi traduzido no Brasil por Céu e Inferno. Escolhi falar a vocês sobre este último que mostra um leque mais variado sobre os que, na nova sociedade, estão no alto, em baixo, e também espalhados pelo meio, e são todos, de alguma forma, trabalhadores.

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O filme trata do sequestro do filho do motorista de um grande empresário e como este irá lidar com a situação, dado que o sequestrador errou de criança. Este homem é mostrado, já na primeira cena, como um empresário preocupado com produção e qualidade do que é produzido – no caso, sapatos -, e não um acionista preocupado com ganhos financeiros e sem escrúpulos. A cena o mostra numa reunião com outros empresários da mesma fábrica que almejam persuadi-lo a juntar forças para derrubar o magnata maior fundador da dita cuja. Nosso personagem se recusa, mas não que ele não esteja tramando o mesmo e mais, se tornar sozinho o novo proprietário da maioria das ações da empresa. Sabemos disso porque finda a reunião, ele chama o executivo mais jovem, um afilhado seu, para levar uma soma vultosa de dinheiro a determinada cidade onde deverá realizar a compra. Ocorre que, enquanto essa reunião se passava, seu filho único brincava de algo como “polícia-ladrão” com um menino de mesma idade, filho do motorista, com quem – por sugestão do empresário -, tinha mudado de posição e fantasia. O sequestrador telefona para avisar do sequestro e das condições de resgate quando o seu filho entra na sala evidenciando, para quem o vê de perto, que o sequestrador pegou a criança errada. 

É chocante a mudança de comportamento do empresário quando falava ao sequestrador sem saber que o filho estava a salvo. Ele se mostrava disposto a obedecê-lo, não chamar a polícia e lhe enviar imediatamente o dinheiro que é justamente o que seria usado para a compra das ações. Uma vez compreendendo o equívoco, e para desespero do pai motorista, ele decide chamar a polícia, mas não despacha ainda o apadrinhado para a operação financeira planejada. Não quero contar muito mais do filme aqui, vá que alguém se incomode com os spoilers, mas também porque não preciso do desfecho desta história para me aproximar das diferentes funções e visões, e dos trabalhos, de todos os personagens já apresentados. Ou seja, o filme é genial não só por nos mostrar como os fatos e tragédias da vida são vistos de modo diferente a partir de diferentes pontos de vista, mas que estes pontos – altos ou baixos – correspondem à diferentes papéis na escala social que dizem respeito, por sua vez, a diferentes formas de trabalho. Mostra também diferenças de posicionamento de quem se encontra numa mesma posição e, por fim, os personagens podem alterar modos de ver e se comportar se suas posições-trabalhos vacilam. Gosto disso, pois, ao contrário do que pensam muitos, caráter não vem de berço, mas se constrói, como tudo, e isso não tira, mas condiciona, nossa agência.

Já comentei que nosso personagem central é um homem de negócios almejando poder e riqueza como os demais, mas Kurosawa mostra as diferenças dele e os demais na mesma posição. Se ele começou cedo na indústria e era um homem do chão de fábrica, pouco se importando e até ridicularizando com a ideia de fazer o produto aparentemente bom, mas com matéria-prima barata e mal-acabado, os demais não se importam em iludir os consumidores. Se ele titubeia, e demora a se decidir sobre as providências quanto ao sequestro, o jovem arrivista que apadrinha não. Sua esposa evidencia o modo como as mulheres burguesas eram tratadas no Japão dos anos 1960 – nem tão diferente do resto do mundo -, mas seu papel de esposa cordata vacila e ela enfrenta (suavemente) o marido e seu passado de filha-esposa mimada. O motorista, a princípio tão subserviente a ponto de não surtar, muito menos sugerir encaminhamentos quanto ao tratamento com o sequestrador, muda ao menos o modo de manifestar seu desespero e ao final ousa pequenas desobediências. 

Gosto de poder ver nesse filme como as limitações do que podemos ser estão associadas ao que fazemos, objetivamente. Ou seja, ao nosso trabalho. Os que estão no alto, os executivos, o empresário e sua esposa, desenvolvem tarefas que envolvem tomar decisões e construir estratégias (mesmo a gestora do lar faz isso), e para tanto devem ser bons observadores, oradores e convencedores. Mas constroem estratégias voltadas apenas a maximizar resultados financeiros, se tornam mais tolos e idiotas (tomem o substantivo e não o adjetivo), além de imorais. Se as estratégias envolvem a gestão de conflitos variados com sujeitos variados, e ainda que indiretamente, lidar com a produção, isso torna o indivíduo mais rico em determinações. De modo que, só é capaz de sentimentos mais nobres, atitudes mais inteligentes e uma vida mais digna e livre aquele que tem uma experiência mais completa e complexa da vida, o que se tem a partir de diferentes experiências de trabalho. O empresário é mostrado por Kurosawa como alguém que não apenas estudou para ser um gestor, que não é apenas atento à política entre proprietários, ele já foi trabalhador fabril e já teve de se ver com a matéria gentil e a máquina dura, já desempenhou outras funções e desenvolveu outras capacidades, já esteve entre os que nada têm e já viu o mundo de lá e de cá. Ao final do filme ele aceita ir ter com o sequestrador e de lá, de baixo, ele vê o que aquele via, quando o olhava lá em cima. 

Gosto muito de ver também um certo detalhamento do que fazem os policiais em seu trabalho de investigação, bastante coletivo e baseado em inteligência e não truculência, e o criminoso ao orquestrar suas ações, de resto solitárias. Os policiais são mostrados em sua máxima atenção aos detalhes, que podem dar em pistas, e esse seu fazer, junto com sua posição mediana – sem propriedades de peso na escala social -, os leva a desprezar os do submundo mas também a desconfiar dos das alturas, como confessa um deles numa cena. São mais espertos, portanto. Por fim, o sequestrador é mostrado também em seu fazer inteligente e diligente. Seja quando presta atenção nos detalhes que o podem incriminar, seja quando planeja sua ação a partir da observação criteriosa da vida do empresário. Essa observação se dá de sua janelinha, na casa feia e suja lá embaixo, da janela gigante do empresário lá em cima. 

Essas duas janelas me lembram do que mais gosto no recente Parasita, ver a família pobre mostrada vendo o mundo lhe urinar desde sua janela mais baixa que o nível da calçada, enquanto a família rica é mostrada vivendo em uma sala gigante com uma abertura gigante para um jardim deslumbrante. Neste filme, igualmente asiático, vemos também que há trabalhos e trabalhos… Pois espero que nós aqui, vendo e discutindo filmes assim, nos tornemos mais capazes de conquistar a maior diversidade possível de trabalhos, em vez da maior duração possível de um mesmo e limitado. A consciência, individual e de classe, com isso se fortalece.  

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