Os trabalhadores algoritmizados podem ter a falsa percepção de autonomia por não compreender a dinâmica para a conexão de oferta e demanda.
Herbert Salles
Fonte: Le Monde Diplomatique
Data original da publicação: 08/11/2024
O fenômeno “pobre de direita” intriga intelectuais e gera debates nos campos da sociologia, filosofia e política. Há uma crença de que esses indivíduos deveriam compreender sua condição e não ter dúvidas sobre qual espectro político seguir. Porém, vivemos hoje um ecossistema que constrói um cenário psico-político em que as big tech dominam a agenda política por meio do uso massivo de algoritmos. Em um arranjo de dependência, essas empresas são responsáveis por uma estrutura pan-óptica que prendem indivíduos, forçando-os ao consumo e ao trabalho em ambientes virtuais. Logo, a algoritmização modificou o capitalismo sem que a exploração do trabalho tenha deixado de existir. O debate aqui proposto, então, é substituir o adjetivo “pobre” pelo substantivo “trabalhador”, e assim perpetuar a ideia de que a pobreza é uma condição que afeta a classe trabalhadora como reflexo das práticas capitalistas.
Recentemente, o enigma “pobre de direita” foi debatido no mais novo livro de Jessé Souza, O pobre de direita: A vingança dos bastardos, no qual o autor elabora uma tese rica sobre esse perfil, mostrando raízes profundas para o fenômeno daqueles que pouco têm e se alinham aos discursos mais conservadores.
Para que seja possível aprofundar a análise, é necessário que não se perca o entendimento de que o pobre é, prioritariamente, um trabalhador. Ao adjetivar o indivíduo pelo acúmulo de capital realizado, perde-se a compreensão sistêmica do ambiente em que ele está imerso. Pois acumular capital a partir do seu próprio trabalho o diferencia do capitalista, que acumula seu capital a partir da exploração da classe trabalhadora.
A partir dessa concepção, o debate toma um novo rumo e aponta para a compreensão das razões pelas quais alguém, explorado pelo capitalismo, toma para si a ideologia desalinhada com os interesses de sua classe. Mesmo que um indivíduo consiga obter algum patrimônio, ele ainda pode estar na condição de trabalhador. Ora, até mesmo aqueles que ocupam espaços de poder dentro de empresas, como diretores e gerentes, não estão entre os que detêm meios de produção.
Ao destacar a condição de pobreza, o debate cria uma cisão em um grupo que se assemelha pela condição de obtenção de renda. Obviamente, há uma clara diferenciação salarial entre os extremos de uma empresa, mas nem sempre fica claro para esses trabalhadores que, independentemente do valor, todos estão na condição de explorados.
Para além desses trabalhadores formais, os chamados pequenos e médios empresários também podem ser vistos como uma classe que depende do seu trabalho para garantir a renda. Principalmente com a nova economia digital, em que os espaços online são essenciais para empresas de pequeno e médio porte, que dependem da algoritmização para a venda de produtos e serviços.
Os trabalhadores algoritmizados podem ter a falsa percepção de autonomia por não compreenderem essa dinâmica de conexão entre oferta e demanda. Logo, o que conecta um motorista a um passageiro na Uber, ou a melhor oferta para um determinado cliente que busca um produto na Amazon a ser entregue por um “pequeno negócio”, é o algoritmo.
Aos poucos, profissionais qualificados como médicos, psicólogos, advogados e professores utilizam plataformas de trabalho para oferecer seus serviços, sendo explorados por algoritmos. É perceptível que as novas formas de trabalho criaram novas formas de renda, sem que a condição de exploração tenha sido alterada no capitalismo.
Nota-se, então, que a forma de trabalho mudou nas últimas décadas, mas sem alterar a robustez da exploração. A figura do operário foi substituída pelo trabalhador de aplicativo, o que reflete uma profunda mudança nas demandas e expectativas individuais, já que esse indivíduo tem a falsa sensação de ser mais independente e de poder ter uma renda escalonável.
É nesse cenário que se constrói uma gestão de alta performance, na qual um aplicativo é capaz de criar, em um ambiente “gamificado”, uma série de metas a serem cumpridas, e cabe ao trabalhador alcançar todos esses objetivos. Em uma falsa sensação de ser chefe de si mesmo, esse indivíduo cria uma nova camada de exploração, uma autoexploração motivada por um ambiente algoritmizado que também o explora.
Nesse sentido, aquilo que afasta o trabalhador do seu ofício se modifica quando comparado com o que era visto na indústria dos anos 60, 70 e 80. Se antes um operário poderia ter um dedo amputado em uma máquina, hoje a depressão e a ansiedade são rotina para afastamentos e até incapacitação laboral. Antes, o capitalismo dominava corpos para a produção e, hoje, há uma clara dominação da psique, como um efeito psico-político. Assim, doenças e acidentes laborais ganham novas formas.
É preciso compreender que o arcabouço algorítmico não está presente apenas entre esses trabalhadores de aplicativo. Um pequeno empresário, como, por exemplo, um restaurante de bairro, usará o meio digital para receber pedidos, realizar entregas e se comunicar com clientes. Assim, ele precisará do Google para ser encontrado, do Meta (Instagram e WhatsApp) para se relacionar e do iFood para realizar a entrega de seu produto.
Nota-se um ponto em comum entre o pequeno empresário e o trabalhador de aplicativo: ambos se enxergam como profissionais independentes e donos de seus meios de produção. Obviamente, essa percepção é uma ilusão resultante do ambiente neoliberal no qual estão inseridos. A ausência de um gestor humano não faz com que esses trabalhadores percebam que estão vivendo em um ecossistema em que é possível, e necessária, a presença de um chefe invisível, que se formula a partir de algoritmos. No capitalismo, há sempre a função do explorador, seja ele físico ou virtual.
Porém, esses trabalhadores precisam ter uma percepção de liberdade e pertencimento, e é assim que a gestão de autoperformance se estrutura. O neoliberalismo digital obteve sucesso em sua forma de exploração a partir do momento em que aprisionou corpos e mentes na algoritmização. Tal aprisionamento é uma autofagia, em que o trabalhador se alimenta da sua própria exploração. Para estar bem em uma falsa condição de explorador, o indivíduo aceita seu próprio martírio.
O desafio da esquerda é entender o novo modelo neoliberal e perceber que esse trabalhador está em cárcere de si. É necessário debater formas de atender às expectativas e necessidades dessa classe, bem como acolher essas pessoas, trazendo propostas de bem-estar.
Não deveria ser surpresa o voto massivo de trabalhadores na direita, pois, para eles, é esse espectro que entende suas demandas e, principalmente, promete riqueza e prosperidade. A esquerda, por sua vez, é vista como uma política de barreira ao crescimento, que trará impactos significativos na renda dessas pessoas. Nota-se que a ideologia afeta de forma direta e concentrada o medo da pobreza, mesmo que o indivíduo já se encontre nessa condição. A classe média tem pavor de se tornar pobre, e os mais pobres enxergam no neoliberalismo o caminho para a riqueza. Logo, vê-se uma consolidação do capitalismo messiânico, em que são depositados fé e esperança na conquista de riqueza.
Os interesses desses trabalhadores estão concentrados na geração de riqueza. Perceba que não é na mera geração de renda; esse indivíduo quer usufruir de luxo e ostentação como símbolo da morte, da pobreza e da ascensão burguesa. Para eles, isso só poderá ser conquistado a partir do trabalho exaustivo que sustenta a gestão de autoperformance.
As longas jornadas de trabalho impedem essas pessoas de aprofundar as reflexões sobre si mesmas. É necessário aceitar que o pensamento da direita é mais fácil, principalmente pela baixa complexidade e pelo deserto teórico, enquanto a esquerda, mais notoriamente os marxistas, apresenta robustez em suas teorias. Assim, é perceptível um afastamento devido à dificuldade de absorver o debate da esquerda. De um lado, há intelectuais dispostos a trazer discussões ricas e a leitura de um cenário mais amplo sobre as facetas nefastas do neoliberalismo; do outro lado, há coaches e gurus que falam de meritocracia e “mudança de mindset”.
Porém, aos poucos, a esquerda vai avançando nas redes sociais e trazendo falas mais acessíveis para diferentes espectadores, como os trabalhos de Ian Neves, Rita von Hunty e Eduardo Moreira. Além disso, canais como “Galãs Feios” e “Meteoro Brasil” criaram espaços alternativos que apresentam a esquerda de forma mais clara e divertida para os públicos de interesse.
É, portanto, o uso da algoritmização a favor da classe trabalhadora: uma busca, ainda que nos primeiros passos, para que os ideais da esquerda sejam absorvidos por aqueles que precisam ter em mente a clareza de sua condição de explorados.
O trabalhador algoritmizado, ou aquele que depende da algoritmização, precisa enxergar o debate da esquerda como algo a seu favor, bem como compreender que é nesse espectro que poderá encontrar bem-estar e garantias de direitos. Assim, o primeiro passo é não lembrá-lo de que ele é pobre, mas trazê-lo à consciência de que ele é trabalhador. Há uma latente soberba em classificar o outro como um objeto homogêneo e quase amorfo, classificado como “pobre de direita”.
Essa classe heterogênea possui uma legião de vulneráveis de diferentes perfis, tais como, negros, comunidade LGBTQIAPN + e mulheres. Para cada um, a esquerda historicamente criou projetos e pavimentou debates para defesa e políticas públicas favoráveis. Mesmo assim, há um canto de sereia que aponta para que a esquerda abandone o debate dito “identitário”; porém, ao fazer isso, abre-se um espaço para a direita ocupar, além de escantear pessoas que já estão à míngua e na marginalidade social. Ao invés do abandono, o caminho passa a ser a agregação, trazendo a classe trabalhadora para discutir questões relacionadas a minorias e grupos vulneráveis, propondo alternativas de fortalecimento social e garantias de bem-estar.
Observa-se a entrada de influenciadores digitais progressistas e comunistas, algo muito positivo para que trabalhadores e, principalmente, os mais jovens, possam ter acesso aos ideais de esquerda. Entretanto, é necessária cautela quanto aos espantalhos criados por alguns. O devaneio de que Lula seria neoliberal, por exemplo, serve para aproximar a classe trabalhadora do espectro da direita, reforçando um sentimento de traição. Para além do pensamento pueril e rudimentar daqueles que endossam a tese de que o governo Lula está à direita, tal afirmação não colabora com o projeto de agregar trabalhadores a uma mudança política significativa e é um completo desserviço, sem base sólida.
Ainda é preciso cautela quanto a uma clara intenção de tratar diferentes linhas da esquerda como pedigree. Há muitos que buscam para si o modelo padrão de esquerda, apontando para os outros de forma pejorativa e desclassificatória. Há tempos é necessária a união da esquerda em sua pluralidade, e isso só pode ser alcançado se, na base, ficar entendido que o núcleo da ideologia é o trabalhador.
Assim, o desafio da esquerda deve ser a compreensão do trabalhador para além de sua condição de pobreza e de uma possível incoerência no voto pela direita. É necessário trazer a classe trabalhadora para entender quais são as possibilidades que a esquerda pode oferecer no sentido de criar barreiras à exploração neoliberal, sem que seja construída uma percepção de arrefecimento da renda.
O “trabalhador de direita” está preocupado com sua condição financeira, e o debate mais amplo, como aborto, emergência climática e direitos das minorias, não é prioritário, mas isso não significa que não esteja disposto a participar dele. É preciso, no entanto, estar presente em diferentes espaços com linguagem acessível e ambiente acolhedor, para que esse trabalhador perceba que está sendo ouvido e que suas demandas são reais. É nesse cenário que as redes sociais podem ser importantes para que a esquerda consiga ampliar seu público e engajar uma base para, não apenas angariar votos, mas também fortalecer a classe trabalhadora.
Portanto, compreender as mudanças nos perfis de trabalhador e as novas formas de labor promovidas pela algoritmização é necessário para que a esquerda avance na conquista de novos apoiadores e no engajamento da base. Para além da classe social, o indivíduo deve ser visto como trabalhador que, mesmo sem ter clareza, é explorado e mantém essa condição por conta do arranjo político-econômico neoliberal. Insistir na categorização de “pobre de direita” é reforçar a condição de humilhação perene em que se encontram. Essas pessoas precisam entender que podem acumular bens e prosperar financeiramente, mas a condição de trabalhador permanece. Como classe, é preciso ter consciência de que a luta deve ser por promover bem-estar entre seus pares e não fortalecer o capitalismo por meio da autoexploração.
Herbert Salles é doutor em Economia pela UFF.