“Sucessão”: o trabalho do capitalista

Fotografia: HBO

Glaucia Campregher

Os canais de streaming estão definitivamente produzindo cinema hoje. Aqui e ali vemos filmes bastante densos, ora no formato longa metragem tradicional, ora no formato série. Um desses canais, a HBO, está apresentando uma série chamada Succession, que estreou em 2018, foi premiada com o Globo de Ouro em 2020, mas só chegou a mim por estes dias (e só vi as duas primeiras temporadas). Estou gostando bastante, pois por trás de um produto aparentemente trivial, o que temos é um retrato excepcional da burguesia de nossa época, e um retrato muito especial, pois detalha exatamente o que fazem no seu dia a dia de “trabalho” os donos da riqueza e do poder.

Succession, ou Sucessão em portugês, sucede a outras boas séries da TV paga que detalham as vidas de diferentes grupos de profissionais – aqueles cujos trabalhos são, digamos, menos enfadonhos e mais cheios de conquistas e aventuras. Mas se até pouco tempo esse grupo se resumia a policiais, médicos e advogados criminais, hoje já alcançaram políticos, bombeiros, professores e até psicanalistas! Conto os dias para que alguém produza uma sobre os banqueiros e os economistas e também sobre os entregadores de aplicativos e os atendentes de telemarketing. O fato é que, ao se debruçar sobre os aspectos mais dinâmicos do que fazem essas pessoas, se produz um retrato, mesmo com brilho e contraste aumentados, sobre o que fazem e o que vendem… No caso de Sucessão, cujo foco é uma família de ricos proprietários de capital, ficamos sabendo o que fazem exatamente esses que só fazem gerir suas grandes fortunas. E então, afinal, o que significa isso, o que eles fazem mesmo, se é que fazem algo? Qual o seu, ouso dizer, trabalho? 

Guerra. Mas não, não é suficiente dizer que o que fazem os ricos proprietários de grandes fatias de capital é ‘guerra’ – seja entre si, membros da família, seja contra outros, membros dos mercados onde concorrem. A não ser que se entenda que é guerra sim, mas que fazer guerra também envolve trabalho. Aliás, o fato é que tudo no capitalismo se torna trabalho, essa é a condição de que algo possa ser produzido e vendido, e produzido por um tal valor e vendido por outro. Assim é que, a despeito de muitas especificidades, fazer ciência, arte, política, ou guerra nos nossos dias implica fazer o mesmo que se faz na produção de cimento, soja ou calçados – usar racionalmente os insumos, precificar riscos, inovar sempre, prospectar mercados, ganhar dos concorrentes. Organizar enfim tim tim por tim tim os processos produtivos segundo a máxima divisão do trabalho e buscando mais que a máxima vantagem no curto prazo a perenidade dos ganhos no longo. A guerra particular da burguesia entre si e contra nós é um produto, o seu produto. O principal trabalho a ser executado para a sua produção é o da construção de estratégias – de combate, de aliança, de ocupação de territórios conquistados, de vigilância das posições inimigas e outros. E embora a burguesia terceirize grande parte dele, cabe a ela ainda uma parte do trabalho. A série Sucessão, apesar da intenção satírica de mostrar uma família onde poucos efetivamente trabalham, acaba por mostrar que trabalho é esse.

A família em foco na série (os Roy) é composta por gente grosseira, ignorante, com pouca ou nenhuma formação educacional, pouca ou nenhuma cultura, pouco competente mesmo na arte da administração, pouco loquaz quando chamada a falar de seus próprios ‘negócios’ e absolutamente dependente de todo um exército de profissionais a lhes mastigarem as ações. Contudo, a família Roy é proprietária, e/ou detém o controle acionário, de várias grandes empresas que fazem parte de um conglomerado, a Waystar Royco – e isso significa que no topo da cadeia restam eles a elaborar que tipo de guerra irão travar. Poucas vezes vi no cinema ou na TV uma família burguesa ser tão ridicularizada. Com exceção do chefe do clã, senão inteligente, ao menos “matador” – algo como não titubear quando da chance de executar o inimigo, o que é apresentado como virtude máxima -, os demais são imbecis ou quase. O filho mais velho funciona como a metáfora mais clara do quão anti-meritocrática é essa família proprietária – não consegue fazer frases com sentido, não pode ser aproveitado no que quer que seja em qualquer das empresas, contrata uma garota de programa para casar, é péssimo investidor no mercado de artes (num dos episódios compra por zilhões o pênis seco de Napoleão), mas nada disso o impede de iniciar uma campanha à presidência dos US. (Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência). No extremo oposto, a filha, de início distante dos negócios, parece a mais razoável e tingida de alguma cultura e competência (é a liberal do clã); e entre estes extremos estão os filhos do meio, o que brinca de CEO, mas é obrigado a fazer o trainee básico, e o executivo, mais de direito que de fato, que perde batalha atrás de batalha tentando derrubar o pai porque comete os erros mais elementares. Ah, e há dois personagens impagáveis, o sobrinho-neto e o genro do magnata-mor, ambos absurdamente tolos, parecendo ter uma noção tão vaga da guerra onde se meteram quanto do que devem fazer nos cargos operacionais que vão ocupar, mas cuja ingenuidade, ou mínima dignidade, conduzem suas decisões sobre de que lado ficar.

Mas o fato é que, à medida que a série avança, o espectador começa a ter noção do que é o trabalho de cada um desses personagens na sua luta diária de conquista e manutenção do poder. A primeira coisa a fazer – e sim isso envolve esforço dirigido, método, trabalho portanto – é aprender a desconsiderar como humana uma certa parte, a ser identificada, da humanidade. Assim como os soldados rasos são menos humanos ao serem considerados os mais aptos candidatos à “baixa” (não é bom usar a palavra morte), ou os civis afetados (pra não dizer mortos) numa operação importante são considerados “danos colaterais”, os comuns (sem posses e poder) em Sucessão são menos humanos pois são ‘menos reais’. Aqueles que não podem entrar na guerra pelo poder, não podem tocar, alcançar ou afetar minimamente os deuses combatentes são chamados de NRPI, ou No Real People Involved. Estes são os peões, mais ou menos úteis, e mais ou menos sacrificáveis, nesta ou naquela jogada.  Depois vem o trabalho de aprender a distinguir as pessoas irreais das reais – com quem não se pode ‘mexer, ou só se pode mexer quando se tem as armas para as vencer’ – o que significa que aqui começa o trabalho da guerra de fato, que envolve principalmente elaborar estratégias e comandar as ações, o que significa decidir passos a seguir em cenários montados muitas vezes com muita ajuda dos ‘irreais’. 

Essa qualificação do trabalho do capitalista como sendo o de um estrategista militar me lembra  Marx e Engels que comparavam frequentemente o proletariado industrial a um ‘exército’. É da sua época também nomear os grandes líderes capitalistas ‘capitães da indústria’. Mas só na nossa época a finança submete a indústria, os donos do capital saem da fábrica, os grandes conglomerados parecem nações e a divisão do trabalho os alcança no andar de cima transformados em salas de comando. Não são mais capitães, são generais; não sabem o que fabricam, se é que fabricam algo; mas são os comandantes em chefe das operações de fusões e aquisições, e liquidações, e descartes de pessoas irreais. Não se trata de ser frio e calculista aqui e ali, cruel quando necessário, se trata de manter a operação todo o tempo, por isso também ela é trabalho. Isso significa que sim, a burguesia trabalha. Mesmo os mais inaptos e desqualificados Roys, se ocupam, treinam e melhoram seu desempenho – o pai distribui as estrelinhas como o gerente do Starbucks. Todos os personagens da série vão ficando melhores no que fazem. E mesmo que não batam cartão, ou sejam cobrados pelo gerente, mesmo que seu dia envolva um iate e um coquetel, aqui ou em Paris, eles não estão a passeio. O trabalho de fazer a guerra da concorrência e da acumulação de riqueza e poder consome sua energia, gera cansaço e tensão, não raro, sofrimento. 

Dessa forma, a série nos fornece um  retrato bastante real do trabalho que faz a burguesia atual. Se esse trabalho é socialmente produtivo ou não, como e pra quem, é outra questão (a qual terei prazer de voltar um dia). Mas o que me intriga mesmo é que esse retrato está alcançando muito mais gente que as que frequentam os cinemas.  Então, é assim, todo mundo pode saber?! Saber como vivem os ricos é antigo no cinema e na TV e nunca nos fez odiá-los de fato. Em verdade pode nos fazer invejá-los sem raiva ou rancor, como as tais celebridades quase celestes que jamais ousaríamos destronar, ou nos fazer vê-los com alguma empatia, como se víssemos, por trás de toda pompa, alguma igualdade entre seus sofrimentos e os nossos. Parece mesmo que saber que os de cima comem brioches quando aqui embaixo falta pão não é assim, digamos, perigoso em si e por si. Ainda que em algumas circunstâncias o seja, que o diga Maria Antonieta… Mas não se trata de saber o que eles comem, mas o que fazem pra comer o brioche que o diabo não amassou. Se entendemos melhor o que exatamente eles fazem, com tantos detalhes e tantas tiradas cômicas sobre estes detalhes; se  vemos de modo tão explícito quão desnecessário é ter qualquer aptidão excepcional para comandar; se vemos que os peões não são só os empregados das mansões, mas os executivos que, se em algum momento podem entrar na sala de comando, noutro podem ser descartados; se sabemos como são construídos os discursos validadores, as engenharias financeiras, as narrativas ideológicas, que ao fim e ao cabo nós fazemos pra eles que “apenas” orquestram o palco de operações; quem sabe não ousemos ir à guerra nós mesmos.

One Response

  • Excelente artigo. Invejar os “de cima” sempre funcionou. E sempre surgirão os Moliére para satirizá-los.

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