STF e pejotização: defesa da Constituição não pode ser matéria de conveniência

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Fachada do palácio do Supremo Tribunal Federal (STF) Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Corte deve retomar seu papel constitucional ou não terá autoridade moral para se apresentar como defensora da democracia.

Sérgio Batalha Mendes

Fonte: JOTA
Data original da publicação: 14/05/2025

decisão do ministro Gilmar Mendes que paralisou centenas de milhares de ações trabalhistas prossegue impedindo o exame da existência de vínculo de emprego pela Justiça do Trabalho, em qualquer caso em que se alegue a existência de uma relação autônoma ou a prestação de serviços por uma pessoa jurídica (PJ, daí o termo pejotização).

É uma evidente tentativa de subtrair a competência da Justiça do Trabalho para julgar a natureza das relações de trabalho e decidir se elas constituem uma relação de emprego, atraindo a aplicação da CLT. Mais do que isto, é uma afronta direta e literal ao artigo 114 da Constituição, que diz literalmente que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações oriundas da relação de trabalho”.

O resultado desta decisão absurda e inconstitucional pode ser a extinção do regime da CLT no Brasil, com a subtração de todos os direitos do trabalhador brasileiro. Bastará ao empresário impor ao trabalhador a assinatura de um contrato de prestação de serviços autônomo ou, no caso de trabalhadores com salário maior, impor a constituição de uma “PJ” para a prestação de serviços.

Não se trata de uma previsão catastrofista, já há decisões individuais de ministros do STF cassando vínculos de emprego reconhecidos pela Justiça do Trabalho sem qualquer análise das condições reais da relação de trabalho (o que não poderia mesmo ser efetuado pelo STF), simplesmente por existir um contrato de prestação de serviços formalmente assinado, mesmo no caso de trabalhadores comuns como pedreiros e entregadores de pizza.

Mas não é só. O entendimento no sentido de extinguir o vínculo de emprego no Brasil, tornando-o meramente opcional para o empresário, vai quebrar a Previdência Social, pois os trabalhadores passarão a ter aposentadorias mínimas por idade sem qualquer contribuição.

O fenômeno já está ocorrendo e a Previdência vem sofrendo perdas na sua arrecadação desde a reforma trabalhista de 2017, estimadas em R$ 89 bilhões, isto mesmo com a Justiça do Trabalho atuando para reconhecer a relação de emprego em casos de fraude.

A pergunta que todos os democratas devem fazer é como o STF pode defender a Constituição em relação à tentativa de golpe de 8 de janeiro e rasgá-la quando se trata da competência da Justiça do Trabalho e da própria efetividade de todos os direitos trabalhistas assegurados pelo artigo 7º da própria Constituição?

A situação provoca uma angústia em todos aqueles que defendem o Estado de Direito e a democracia, pois se veem premidos entre a defesa do STF das críticas dos apoiadores do golpe de 8 de janeiro e a justa crítica a esta mesma corte por investir de forma inconstitucional contra todos os direitos sociais que garantem a dignidade do trabalho no Brasil. Seria uma “escolha de Sofia” dos tempos modernos, constrangendo os democratas a decidirem qual filho querem sacrificar, a democracia ou os direitos sociais.

Temos de nos rebelar contra esta escolha indigna e bradar até que o STF nos ouça: a Constituição de 1988 é uma só e tem de ser defendida como princípio e não como matéria de conveniência em alguns casos, quando tal defesa coincidir com o entendimento dos ministros.

Ninguém concedeu um mandato constituinte aos ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, André Mendonça ou Luiz Fux para reformar a Constituição e mudar os artigos 7º e 114, excluindo da proteção social os trabalhadores brasileiros em homenagem à “liberdade da atividade econômica”. Até porque o “valor social do trabalho” é um dos princípios fundamentais da nossa República na dicção literal do artigo 1º do texto constitucional.

Portanto, se o STF quer ser respeitado, acatado e defendido por todos aqueles que defendem o Estado de Direito e a democracia, tem de defender a Constituição de 1988 também para assegurar os direitos básicos dos trabalhadores e a competência da Justiça do Trabalho para efetivá-los. Não há democracia sem respeito integral à Constituição e não há desenvolvimento sem o trabalho digno.

Os democratas não podem se calar! O golpe do 8 de janeiro é tão grave quanto um golpe que nos faria retroceder cem anos em relação aos direitos do trabalhador. Ou o STF compreende a gravidade da situação e retoma o seu papel constitucional, ou não terá a legitimidade e autoridade moral para se apresentar como defensor de nossa democracia.

 

Sérgio Batalha Mendes é advogado trabalhista e mestre em Direito

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