Quem é o adversário? Ou o inimigo?

Lorena Holzmann

O trabalho está sob ataque. Ao redor do mundo, a escalada de governos de direita, conservadores, inspirados no ideário neoliberal, tem investido contra conquistas dos trabalhadores obtidas sobretudo durante os trinta anos dourados que caracterizaram o capitalismo mundial após a segunda guerra mundial.

Naquele contexto, o grande crescimento econômico e o quase pleno emprego propiciaram aos trabalhadores desfrutarem dos resultados de uma conjuntura econômica favorável. Tais ganhos foram diferenciados em cada espaço nacional, decorrentes da capacidade organizativa dos trabalhadores, do fortalecimento de suas organizações representativas e de seu poder de barganha junto ao empresariado, na disputa pelos resultados da atividade econômica.

Nos últimos 30 ou 40 anos, o capitalismo tem se transformado profundamente, cujas mudanças vêm incidindo penosamente sobre o polo do trabalho, reduzindo ou suprimindo as conquistas de décadas precedentes.

Por isso fala-se que o trabalho está sob ataque.

A implantação de políticas econômicas e sociais de inspiração neoliberal tem gerado desemprego e, para quem consegue manter seus postos de trabalho, há redução de rendimentos, novas modalidades contratuais que reduzem benefícios e garantias, produzindo precariedade e insegurança. A adoção de novas tecnologias na produção de bens e serviços transforma ocupações tradicionais em obsoletas, tornando seus portadores dispensáveis se não tiverem condições de se adequar às novas demandas de desempenho ocupacional. Sobretudo as gerações mais velhas de trabalhadores têm sofrido as consequências dessas mudanças, produzindo uma categoria de pessoas sem chances no mercado de trabalho, ainda “jovens” para se aposentarem e já velhos para reaprender a trabalhar em novas condições, vindo a constituir um contingente de “inúteis”. As gerações mais jovens também encontram dificuldades de inserção no trabalho produtivo, devido a redução da oferta de postos de trabalho em decorrência da desaceleração da atividade econômica e da introdução de novas tecnologias, poupadoras de mão de obra.

Mas é sobretudo a desmontagem ou supressão do arcabouço jurídico de defesa e proteção ao trabalho que constitui o ataque mais voraz do empresariado à classe trabalhadora. A perda de direitos avança, o que nos permite afirmar que vivemos tempos em que a roda da História parece girar para trás, como já comentei em texto anterior, publicado nesta coluna. O Brasil, de fortes raízes escravistas modelando sua formação histórica, tem feito esforços indisfarsáveis para regredir ao antigo status, transformando seus trabalhadores em escravos do século XXI, comprometendo qualquer veleidade de um projeto civilizatório.

Rever a história de lutas da classe trabalhadora, retratada no cinema em películas memoráveis, se torna um exercício importante de resgate da abordagem dos conflitos próprios à relação capital-trabalho. Relação que adquire novas aparências, mas que mantém a inerência conflituosa e, na essência, não solucionável desse peculiar arranjo histórico entre produtores e apropriadores da riqueza gerada. O século XIX e os momentos originais da formação da sociedade industrial são realidade próximas do que está sendo reservado à classe trabalhadora, em diversos países ao redor do mundo. A perda de direitos em curso aproxima aquelas gerações de operários dos trabalhadores de hoje, concentrados no setor de serviços da economia urbana globalizada. Os mineiros de Germinal (Claude Berri), os tecelões de Os Companheiros (Mario Monicelli) e de A Terra Prometida (Andrzej Wajda) estão muito próximos, em suas dificuldades, do fazedor de versos de O Homem que Virou Suco (João Batista de Andrade) ou das mulheres que fazem a limpeza dos grandes prédios em Los Angeles, e que querem Pão e Rosas (Ken Loach) a que têm direito. Apesar dos distintos contextos, no tempo e no espaço.

Extrato do filme "Os companheiros" (1963), de Mario Monicelli. Imagem: Reprodução
Excerto do filme “Os companheiros” (1963), de Mario Monicelli. Imagem: Reprodução

A resistência teimosa dos trabalhadores é um desafio constante para a efetivação dos objetivos do capital na sua trajetória em busca da acumulação. Essa resistência, latente ou manifesta, está permanentemente à espreita: é a oposição a uma lógica estranha aos próprios interesse dos trabalhadores. Aqueles que vivem de vender sua capacidade de trabalho porque não dispõem da posse ou propriedade dos meios de produção são o inimigo do polo/capital nesse inexorável embate.

As estratégias de ambos se confrontam, se superam, se reorganizam, caracterizando diferentes períodos desse embate. O momento atual é de protagonismo predominante do capital, manifestando-se em modalidades de organização da produção e do processo de trabalho, da estruturação das empresas, das articulações com setores financeiros, tecnológicos, políticos, da redistribuição espacial das atividades produtivas industriais e de prestação de serviços. Confrontos que se manifestam em âmbito global ou no dia a dia, nos locais de trabalho. O trabalho está na defensiva, enfraquecido em sua capacidade de luta. O desemprego em alguns contextos, a fragmentação das categorias ocupacionais/profissionais pela via da terceirização e de subcontratações são elementos cruciais para esse enfraquecimento.

Excerto do filme "Pão e rosas" (2000), de Ken Loach. Imagem: Reprodução
Excerto do filme “Pão e rosas” (2000), de Ken Loach. Imagem: Reprodução

O cinema tem dado conta das condições adversas para a classe trabalhadora. Nenhuma narrativa – filmográfica ou literária – é neutra diante da realidade que aborda e que objetiva expor/reproduzir/interpretar. Em relação às condições atuais vivenciadas pelo trabalho, numa visão empática a esse polo, rever determinadas películas é atualizar o entendimento da realidade do trabalho hoje. Em cada película, é possível encontrar referências a dimensões dessa realidade, dimensões circunstanciais, secundárias na narrativa, mas que revelam a complexidade do trabalho no mundo contemporâneo. Buscar identificar esses elementos, embutidos na narrativa, pode ser um bom exercício para compreender melhor essa complexidade, e servir de orientação para a escolha de que lado ficar.

A realidade do mundo atual não admite neutralidades.

Lorena Holzmann é Socióloga, Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professora titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFRGS.

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