Gláucia Campregher
Se um filme bom é aquele do qual queremos falar, então “Megalópolis” é um bom filme. Ruim seria a realidade que ele ilustra. Ou não? (Ah, pode conter spoilers…).
Comecemos por quem retrata a realidade. Francis Ford Coppola é um cineasta corajoso, um autor, e não um mero funcionário da indústria do cinema – alguém que ousa passar a sua mensagem. Essa coragem apareceu, ao longo de sua carreira, em filmes ousados nos quais ele denunciava os males, contradições e perversidades do mundo capitalista. Ora seu foco eram males que afetam norte-americanos de certas épocas e lugares, como a dona de casa de classe média em “Caminhos mal traçados”, ou os jovens de periferia em “Vidas sem rumo”, ou os empresários realmente produtivos em “Tucker – um homem e seu sonho”. Ora, sua câmera visava algo presente num humano mais geral, de um tempo mais longo e um lugar mais largo, e os personagens eram mais que típicos norte-americanos, mais que meros mafiosos com moral, como no “Poderoso chefão”, ou soldados que piram na floresta, como em “Apocalypse now”, ou casais encurralados entre a fantasia kitsch e o realmente sublime do amor, como em “Do fundo do coração”. (Filme este que quebrou um estúdio e fez dele um devedor e logo após um empreendedor de sucesso na indústria vinícola, negócio que vendeu pra financiar “Megalópolis”). O que me faz concluir que Coppola tem inteligência e experiência pra ler e mostrar algo realmente interessante acerca dos tipos humanos para que aponta sua câmera. Mas em “Megalópolis” ele aponta menos para estes tipos – daí os personagens aparecerem bastante caricaturados -, e mais para um ambiente – que seria a cidade sede de um império, o império americano, ainda que trajado de vestes romanas. E então, é interessante o que ele nos mostra? Eu – e meu olhar de economista política de profissão, e historiadora, socióloga, antropóloga e psicanalista de mentira – diria que não, mas um amigo filósofo de verdade me convenceu que tem algo de sim (obrigada Luiz!).
Começando pelo não. Por mais interessante que tenha sido mostrar a América como Roma visualmente – amei as grandes estátuas caídas ao chão e a decadência nas vielas em meio aos espetáculos das avenidas, gostei do paralelismo com os nomes (César, Cícero, etc.), achei a propósito a aproximação dos espetáculos de entretenimento onde pão e circo viram drogas e redes sociais e gladiadores viram celebridades, mas só. Sem falar que no conjunto ficou algo meio carnavalesco e sem sentido, futuro e passado se confundindo sem muito sentido, sem uma intenção clara. Um samba enredo sem enredo. Muito diferente, por exemplo, do que fez Ridley Scott em “Brazil, o filme”, onde o paralelo visual entre o futuro distópico e os anos 50 e um Brasil utópico tinha tudo a ver com a trama. Esse elo com a trama viria aliás se no filme de Coppola o drama da decadência romana, como o da sociedade americana, saísse para fora dos palácios.
Esse é o ponto fundamental do meu descontentamento com “Megalópolis”. Afinal, a decadência de impérios passados, e também a do império atual, como bem visto nos bons livros de história e nos bons filmes de ficção (sejam históricos, sci-fi distópicos ou mesmo os focados em tragédias pessoais) têm por personagens, muitas vezes principais, os trabalhadores que não os sustentam mais! Assim é, apenas para dar alguns exemplos, em “Brazil”, citado acima, em “Blade Runner”, “Spartacus, ou “Apocalipse now”. Faltou citar “Metrópolis” de Fritz Lang, do meu ponto de vista, o filme de maior paralelo com “Megalópolis”, inclusive por ser este também um drama com personagens muito caricaturados e pertencentes às elites (voltaremos a ele adiante).
Em “Megalópolis” só há as elites e suas divisões internas. Há cenas cheias de figurantes figurando as massas empobrecidas e descontentes, mas elas não duram minutos e eles não fazem nada a não ser mostrarem suas caras tristes. A exceção é o menino usado no atentado a César/Adam Driver (usado por quem? pelas elites daquele inimigas). De fato, há uma cena mais longa de um pessoal que trabalha. Um pessoal importante pois produz, arma o cenário e faz a transmissão do espetáculo de alienação. (É boa a sacação de fazer este espetáculo em cima da carência de pureza e inocência que cresce na decadência, e nada melhor que embalá-las em valores antigos e patriarcais como a virgindade feminina, mesmo que transformada em aposta e diversão). Espetáculo este que será estragado, mas, de novo, não por uma ação dos trabalhadores organizados, mas, de novo, pela elite descontente.
Pra piorar, as caricaturas dos personagens elitistas principais são ruins, não carregando qualquer contradição, caricata que seja. Por exemplo, Clodius/Labeouf é um Nero excessivamente tonto, Cícero/Esposito um político excessivamente antigo (aquele que estupra mas não mata, e ama a filhinha, mas não a estupra, claro..), César/Driver é o cientista genial e anti social. Pior, o casal César/Júlia (Driver/Emmanuel) é romantizado ao extremo sem porquê ou pra que, a não ser que consideremos que o diretor também apelou ao amor pra nos fazer ficar na sala até o fim do filme. Juro que no início pensei que César o gênio cientista metido a arquiteto do novo mundo seria uma tiração de sarro de Elon Musk, sweet illusion…
Mas bem, eu posso estar errada e não ter entendido nada. Esse empobrecimento geral dos personagens pode ser mesmo a denúncia mais forte do filme. Ou não é verdade que as lideranças das elites na atualidade sejam absurdamente planas, sem qualquer relevo ou complexidade a ser explorada numa caricatura? A ausência de trabalhadores, com exceção de uma cena nos bastidores, pode igualmente ser uma denúncia de que foi a isso que nos reduzimos! Quem são hoje os candidatos a “Spartacus”? Onde estão os burocratas revoltados prontos a enfrentar o sistema, mesmo acovardados, como o personagem central de “Brazil”? Quais soldados ficam loucos na floresta e se voltam contra o império e a pseudo racionalidade deste que pra lá os enviou? Há uma cena em “O soldado anônimo” de Sam Mendes onde a cena de “Apocalipse now” que mostra soldados americanos drogados e eufóricos jogando napalm ao som da Cavalgada das Valquírias de Wagner, cena que nos chocou e emudeceu nos anos 70 e 80, é vista por soldados mandados ao Iraque nos 2000 numa sessão de cinema festiva onde todos cantam, aplaudem e batem os pés…
Abrindo-me pra essa autocrítica, penso em porque eu quis comparar o “Metrópolis” de Fritz Lang à “Megalópolis” de Coppola. Eu queria mostrar como o primeiro é um filme inteiro, com enredo sem delírios, por ser um filme de trabalhador, que trabalho em coletivo com outros pra fazer cinema. Já o segundo seria obra de alguém que, tal qual seu personagem, se viu como gênio e perdeu o pé da realidade e do que queria dizer sobre ela. Pensei nisso a partir também do paralelo óbvio de que ambos os filmes falam, fundamentalmente, de cientistas e políticos, sociedades em crise e casais que podem salvá-las (“Megalópolis” romantizando mais esse casal que um filme dos anos 20!). Eu ia dizer que “Metrópolis” me agrada imensamente mais por eu ver ali a presença dos trabalhadores, sua alienação mas também sua força, e a presença de contradições nas elites, e a solidão dentro delas daqueles que vivem nos arranha céus longe das “cidades subterrâneas” (onde vivem os trabalhadores de “Metrópolis”) em meio a crença (equivocada) em poderes que não têm, ao menos não absolutamente, sobre a sociedade e a natureza. Mas, penso agora, a organização dos conflitos que explodem em “Metrópolis” é passado, fazer o que se o presente é tão desorganizado?! Talvez mostrar isso num filme! Não é mais sequer possível sonhar com um enredo bonitinho de uma Maria vinda do povo ganhando a atenção do filho do patrão para a realidade de operários de macacão. “Metrópolis” hoje é um filme tolinho a defender a aliança entre a filha do povo e o filho das elites e ambos contra os perigos da tecnologia nas mãos de loucos. E aí entra a interpretação de meu amigo. O mais importante em “Megalópolis” é a discussão sobre os poderes da ciência, o resto pode e mesmo deve aparecer confuso e sem graça por trás de tanto efeito, cor e barulho. Por trás da decadência do império americano há também a decadência da razão ocidental e sua pretensão em ordenar o mundo, e dominar o tempo – metáfora maior para a natureza. O bebê que ao final (eu pensei que ia voar num tapete mágico!) apenas de move quando o tempo parou, é o recado único que é pra ser dado – não funcionou.
Pois então, talvez seja isso, e esse filme funcione justo por não funcionar. Afinal, como todo filme, e toda obra de arte, ele, dialeticamente, super pertence e nada pertence a quem o criou. Quem sabe “Megalópolis” se torne um cult como “Metrópolis” discutido em seminários vários. Quem sabe Elon Musk é que se inspire em César, corte uma franjinha e faça mais um filho com a filha de Trump. Mas o ideal mesmo é que nós, os trabalhadores dos bastidores, tirássemos dos filmes todos a mais importante lição, a de que devemos urgentemente voltar a ação.