
por Felipe Prestes
A Justiça do Trabalho lançou em 2024 três protocolos para atuação e julgamento. Os documentos visam combater a discriminação, o trabalho escravo e proteger a infância e a adolescência. Desenhados pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) e pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT), os protocolos foram construídos com escuta da sociedade civil.
Focado em combater os diversos tipos de preconceito, o Protocolo para Atuação e Julgamento com Perspectiva Antidiscriminatória, Interseccional e Inclusiva traz um passo a passo para os magistrados adotarem em suas decisões. O primeiro deles, é a identificação das vulnerabilidades do caso, como identidade de gênero, raça ou etnia, orientação sexual, classe, condição de pessoa com deficiência e condição de pessoa idosa. O segundo passo é conduzir o processo livre de opressões. A terceira e última etapa é decidir com uma perspectiva antidiscriminatória, interseccional e inclusiva, em que o magistrado relacione “o direito posto com a realidade social, cultural, econômica e política do grupo a que pertence a parte violada”, conforme consta no documento.
“A Justiça do Trabalho, como todo o Poder Judiciário, muitas vezes não contribui para a redução das desigualdades. A gente aprende na faculdade de Direito o mito da neutralidade, como se o julgador fosse um sujeito neutro e não falasse de um lugar específico. Toda a referência teórica que a gente tem, é do sujeito universal, que, na verdade, é um homem branco com privilégio socioeconômico, que é o perfil da magistratura”, afirma a juíza do trabalho Gabriela Lenz de Lacerda, que participou da coordenação, organização e revisão técnica dos protocolos. “O que o protocolo propõe é a adoção de novas lentes que a gente não tem considerado para fazer esses julgamentos. Isso demanda do juiz o aprendizado de competências que não aprendeu na faculdade”, complementa a magistrada, que é autora da dissertação de mestrado “De onde fala o juiz? Gênero, raça e classe na magistratura brasileira”.
A juíza ressalta que nem sempre essa perspectiva vai impactar na decisão dos juízes. “Pode ser que o trabalhador não tenha razão, pode ser que ele tenha razão. Agora, o importante é justamente trazer a visibilidade todas essas estruturas de opressão que sempre estiveram ali e a gente nunca viu”. Gabriela Lenz de Lacerda enfatiza também que, embora os protocolos sejam pensados para a magistratura, é importante que advogados se apropriem de seus conteúdos. “A advocacia tem um papel fundamental para a consolidação dos protocolos, que é nos trazer isso, provocar o magistrado já desde a petição inicial”.
Violência de gênero levou à criação de protocolos
O primeiro documento nestes moldes no Brasil, foi o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, editado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2021, reconhecendo que “a influência do patriarcado, do machismo, do sexismo, do racismo e da homofobia são transversais a todas as áreas do direito, não se restringindo à violência doméstica, e produzem efeitos na sua interpretação e aplicação, inclusive, nas áreas de direito penal, direito do trabalho, tributário, cível, previdenciário”. O protocolo foi criado após a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Márcia Barbosa de Souza, jovem negra assassinada pelo deputado estadual da Paraíba Aércio Pereira de Lima, em 1998, só condenado nove anos depois. A Corte entendeu que o Estado brasileiro, na investigação e no processo penal, tentou imputar culpa à vítima utilizando-se de estereótipos sexistas e determinou a criação de um protocolo nacional voltado à apuração de mortes violentas de mulheres em razão do gênero.
Em 2023, o protocolo virou uma resolução do CNJ. “Resolução é uma determinação para que os magistrados adotem de fato. Então hoje em dia isso não é facultativo, é obrigatório”, ressalta Gabriela Lenz de Lacerda. Os protocolos da Justiça do Trabalho ainda não se tornaram resoluções, mas a magistrada explica que eles se baseiam em previsões legais da Constituição Federal e de convenções internacionais das quais o país é signatário. “Na verdade, o que os protocolos fazem é dar visibilidade para um aparato normativo que sempre esteve presente. A gente precisa de um protocolo justamente porque está descumprindo, e é isso que a Corte Interamericana reconheceu, em mais de um caso”.
A discriminação de gênero no mercado de trabalho
A discriminação de gênero, que, de certa maneira, foi responsável pela criação dos protocolos, está bastante presente no mercado de trabalho e aparece recorrentemente nos conflitos que chegam à Justiça. “Ser mulher é algo que tem um impacto super grande sobre o mundo do trabalho e quanto mais a gente vai acrescentando categorias nesse ser mulher mais em situação de vulnerabilidade ela fica: mulher, negra, periferizada, mãe – a maternidade, principalmente, é um ponto que coloca a mulher numa condição muito desigual no mundo do trabalho”, explica Gabriela Lenz de Lacerda.
O Protocolo para Atuação e Julgamento com Perspectiva Antidiscriminatória, Interseccional e Inclusiva traz um extenso panorama de situações em que este tipo de discriminação pode aparecer, desde a menor empregabilidade, passando pela manutenção no emprego, remuneração, aspectos relacionados à medicina do trabalho, discriminação contra gestantes e lactantes, entre outras.
O documento enfatiza que, embora a população feminina no país seja maior, as mulheres são 44% do mercado de trabalho, enquanto os homens são 56%, segundo dados do IBGE, e que elas ocupam apenas 40% dos cargos de gerência. Também traz um levantamento do DIEESE sobre a desigualdade salarial que mostrou que o rendimento médio mensal das mulheres foi 22,3% menor que o dos homens no quarto trimestre de 2023.
O protocolo pede que os magistrados reflitam se a política remuneratória da empresa e a prática de promoções dentro da carreira reproduzem estereótipos de gênero. Outra reflexão proposta é como a violência doméstica pode afetar as mulheres na preservação do emprego.
Na questão da medicina do trabalho, o protocolo ressalta que “o desenho e o mobiliário dos postos de trabalho, a organização de espaços e de horários, o maquinário, as ferramentas, os fardamentos, os equipamentos de proteção individual e os instrumentos de trabalho levam em consideração o padrão masculino e utilizam as proporções anatômicas de homens (cis), fazendo com que as mulheres estejam expostas a maiores riscos ocupacionais”. Segundo o documento, as mulheres são “mais afetadas por distúrbios musculoesqueléticos ocupacionais e, portanto, as mais diagnosticadas com LER/DORT”. Por isto, uma das reflexões que o protocolo pede ao magistrado é observar se os instrumentos de trabalho se adequam aos diferentes corpos.
As mulheres também são maioria entre pessoas com diagnósticos de transtornos mentais, como depressão e ansiedade. Entre as causas, estariam o empobrecimento das mulheres negras, e a maior exposição à violência doméstica e sexual. O protocolo orienta os juízes e juízas a verificarem se há situação de violência impactando o trabalho da mulher quando há pedido de rescisão por justa causa, dentre outras situações.
No caso de pessoas gestantes e lactantes, o documento ressalta que, mesmo após o período de estabilidade previsto em lei, uma demissão pode ser discriminatória. O protocolo estabelece que se verifique se a demissão ocorreu com outras pessoas em situações iguais na mesma empresa ou apenas com mulheres que haviam sido mães.
Gabriela Lenz de Lacerda conta que aplicou o protocolo em uma situação envolvendo uma mulher com filho pequeno. Uma trabalhadora da lavanderia de um hospital havia sido demitida por justa causa, após recorrentes faltas. Ao analisar a documentação, a juíza notou que a trabalhadora tinha voltado de licença-maternidade há menos de seis meses, além de ter outro filho pequeno, e que perto das datas de suas faltas sempre havia atestados médicos. “A documentação mostrou que aquela trabalhadora muito provavelmente estava enfrentando algum problema de saúde, dela ou de um de seus filhos. Ela era uma mulher negra, em um posto de ocupação extremamente precarizado, e olhar esse processo com perspectiva de gênero faz com que a gente entenda a condição dessa trabalhadora. Não posso tratar esse caso como se ela não estivesse nessa condição de mulher, mãe, em uma sociedade em que o trabalho de cuidado recai de forma desproporcional sobre as mulheres. Quando eu adoto essa lente, decidi que não tinha como considerar justa causa, como se fosse um trabalhador que simplesmente decidiu não ir trabalhar”, explica.
A magistrada enfatiza que não tratar os desiguais de forma desigual também caracteriza uma forma de discriminação. “A discriminação não é só aquela discriminação direta, quando se hostiliza com algum tipo de xingamento. A discriminação indireta também é reconhecida pelo ordenamento jurídico, que é quando a gente, desconsiderando aquela situação de desigualdade, trata como se todos fossem iguais. E todos não são iguais”.