Princesas, migrações e tragédias

Cena do filme “Princesas”. Divulgação

Lorena Holzmann

O deslocamento de populações é um fenômeno recorrente na trajetória da humanidade no planeta. Ao longo de milênios, quase todo o espaço habitável foi ocupado. As causas desses deslocamentos são determinadas por fatores históricos específicos a cada contexto e cada época. Esgotamento da terra que possa garantir a sobrevivência dos grupos, perseguições políticas e religiosas, guerras, acidentes naturais e climáticos, sempre tornando difícil ou impossível sobreviver nos locais de origem, impelindo populações ao deslocamento, em busca de condições melhores de vida. Na sociedade capitalista, essa busca é por trabalho, atividade em troca de salário para fazer frente às demandas da sobrevivência. Abandonar o local de origem e dirigir-se para onde? Para lugares em que, real ou pretensamente, existem essas condições, promessa de melhoria de vida.

Essa é a motivação de Zulema (Princesas, Fernando León de Aranoa, 2005), oriunda da República Dominicana. Com baixa escolaridade e pouca qualificação profissional para obter uma boa colocação no mercado de trabalho (além da condição de ilegal, que dificulta ou impede essa possibilidade), acaba por prostituir-se em Madri, com o que pode sustentar sua filha que ficara no país de origem aos cuidados de parentes. Sua meta é regularizar sua situação na Espanha e trazer a menina para junto dela. Chegando à cidade sem nenhum conhecimento, foi presa fácil de um espertalhão, que em troca da promessa de regularizar sua permanência no país, exige-lhe favores sexuais como pagamento pela favor prestado. Além disso, maltrata-a com agressões físicas, que ela não pode denunciar dada sua condição de ilegalidade. Sofre discriminação das prostitutas nativas, que disputam as mesmas calçadas com as estrangeiras, acusadas de competição desleal por cobrarem preços mais baixos e explorarem seu exotismo (são africanas e latino-americanas) para obterem a preferência da clientela. A condição de Zulema é de quase miserabilidade, pois o que consegue ganhar, envia para seu país, a fim de sustentar sua filha. Durante 12 horas do dia descansa em um pequeno apartamento, que nas outras 12 horas é ocupado por uma família de conterrâneos, que evita cruzar com Zulema, a fim de preservar seus filhos do contato com uma prostituta.

A abordagem de Princesas é centrada numa história de vida pessoal (como a maioria dos filmes que tratam de migrações), suas mazelas, suas relações (a amizade com Caye, prostituta nativa, o sujeito mau caráter que a explora), a discriminação que sofre.

Mas esse é o cotidiano de milhares de pessoas que abandonam sua terra e se aventuram em lugares estranhos, em busca de uma vida melhor. Sofrem toda a sorte de extorsões (para as mulheres, frequentemente, a exploração sexual) e discriminação, executam tarefas desprezadas pelos nativos, são sub-remunerados, têm direitos sonegados e inacessibilidade às garantias da cidadania.

E por ser um fenômeno de grandes proporções, deve ser abordado além de motivações pessoais.

Os movimentos migratórios têm dois polos: o de expulsão, responsável pela conjugação de fatores que impelem populações a se deslocarem, e os de atração, locais para onde se dirigem os contingentes em movimento. Na origem, condições que dificultam ou inviabilizam a sobrevivência de grandes massas da população. No local de destino, a real ou presumida existência de oportunidades de melhoria de vida.

Pôster do filme "Princesas". Divulgação
Pôster do filme “Princesas”. Divulgação

Na sociedade contemporânea, os dois polos se articulam num processo global submetido à lógica do capital, fazendo emergir eventos de grande impacto demográfico, social, político, cultural, produzindo conflitos indisfarçáveis. Situações beligerantes no Oriente Médio e no norte da África, sobretudo, desarticulando os sistemas produtivos e desencadeando perseguições de natureza religiosa e étnica atuam como fatores de expulsão. A Europa, região mais próxima e com as presumidas promessas (ainda que quase falsas, diante da crise em que muitos de seus países estão submergidos), tem sido o lugar de destino. A lógica do lucro se apropriou desse fenômeno, e grupos criminosos têm se dedicado ao transporte dessa massa de desesperados, amontoados em embarcações precárias para a travessia do Mar Mediterrâneo, que centenas de pessoas não conseguem levar a termo. Mas milhares estão chegando no litoral de alguns países europeus, sobretudo a Itália, gerando problemas para as populações locais (como alojar tão elevado número de pessoas, sem nenhuma organização prévia?) e para os respectivos governos.

A União Europeia foi obrigada a enfrentar o problema e propor soluções, buscando distribuir o impacto dessa imigração em massa entre os países que a compõem. Um certo jogo-de-empurra se estabelece entre eles, pois inserir produtivamente essa massa recém chegada não é tarefa fácil, na medida em que as taxas internas de desemprego já são altas e a situação social é tensa. Os imigrantes são responsabilizados pelas mazelas da sociedade nacional e por isso são mal recebidos pela população nativa, a discriminação contra eles se torna mais acentuada e o preconceito se manifesta mais agressivamente. Propostas políticas xenófobas, do ponto de vista cultural e étnico, economicamente antipopulares e socialmente recessivas encontram campo fértil para prosperarem, anunciando tempos sombrios para a “civilização ocidental”. O diferente passa a ser visto como perigoso, vicejam ideias de pureza étnica e superioridade cultural, comprometendo a coesão social.

Mas, as migrações na atualidade são uma realidade, e o cinema as tem tomado como tema em numerosas películas, nas quais os dramas pessoais têm como pano de fundo a situação econômica, social e política de seus países de origem. Citando apenas alguns, mais recentes: Terra firme (Emanuelle Crialese, 2011), Bem vindo (Philippe Lionet, 2009), O porto (Aki Kaurismaki, 2011), cujos personagens estão indo ao encontro de familiares na Europa. Ou Gaijin (Tizuka Yamazaki, 1980), que narra a saga dos imigrantes japoneses em sua chegada ao Brasil, no início do século XX, e as implicações do grande choque cultural que os abate.

Mas há também leituras bem humoradas da presença de imigrantes em terras estrangeiras, como Um dia sem mexicanos (Sergio Arau, 2004). A presença decisiva de imigrantes na economia americana é o pano de fundo das histórias pessoais envolvendo nativos e forâneos. O caos se instalada quando, num certo dia, todos os mexicanos, que vivem e trabalham na Califórnia, desaparecem. Os trabalhos mais rotineiros e aparentemente sem importância deixam de ser executados, impelindo os nativos a substituir os mexicanos. Mas eles não estão preparados para tanta banalidade. Daí, o caos.

Mesmo nas economias mais adiantadas, o trabalho dos imigrantes é sustentáculo inegável da regularidade da atividade produtiva (o que fica evidenciado nesse filme). Mas, levas de imigrantes clandestinos são empregados em atividades ditas “subterrâneas”, à margem da economia formal, sem direitos laborais, com remuneração aviltante, vivendo em péssimas condições ambientais, presas de redes criminosas que os exploram paralelamente à exploração do trabalho. Grandes e requintadas grifes são parte da cadeia produtiva de artigos de luxo que abastecem as mais importantes cidades do planeta. No entanto, as empresas a que pertencem essas marcas não assumem nenhuma responsabilidade pelas condições degradadas e degradantes da força de trabalho, pois esta, comumente, não integra seu corpo funcional. É formada por trabalhadores terceirizados, sistema de contratação em expansão no mundo todo. Essa é uma das facetas vergonhosas do capitalismo globalizado.

Lorena Holzmann é Socióloga, Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFRGS.

Informações

Título: Princesas
Ano: 2005
Duração: 113 min.
País: Espanha
Diretor: Fernando León de Aranoa
Elenco: Candela Peña, Micaela Nevárez

Mais informações: IMDb, Wikipédia (inglês)

Trailer (espanhol):

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