Gláucia Campregher
Como bem sabemos, o trabalho do cuidado com casa e filhos no Brasil é na maioria dos lares de classe média (mesmo baixa) e alta, feito por um exército de empregadas domésticas (com “a” mesmo; segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio (Pnad) de 2023, 91% dos empregados domésticos no Brasil são mulheres. Ah, e apenas 1/3 têm carteira assinada). Ou seja, quem limpa, arruma, cozinha, lava e passa, e dá, além da comida e roupa lavada aos nossos filhos, carinho, atenção e até educação, são mulheres jovens (por vezes jovens demais), adultas, ou de idade (por vezes idosas demais), que têm suas próprias casas e filhos pra cuidar (na maior parte das vezes sem qualquer ajuda masculina). Por óbvio, suas crianças terão menos de tudo isso, menos arrumação, limpeza, comida, atenção, carinho e educação. Não é o fim do mundo, pois o bom senso dos simples e a ciência dos doutos bem sabem que crianças saudáveis que aprendem desde cedo a serem autônomas serão adultos saudáveis. Crianças mimadas pelos serviços pagos de suas babás e empregadas acabam por se tornar adultos não funcionais. Mas cuidado aí, não há que romantizar como autonomia uma criança de poucos anos a cuidar de irmãos menores, ou que desde muito cedo dispense alguém que lhe acompanhe as lições, e nunca demande uma historinha antes de dormir impossível de ser contada pela mãe muito cansada.
Este tema, das condições do trabalho doméstico entre nós, e também o debate acerca dos perigos do excesso de mimos dos filhos dos patrões ricos e da falta deles no caso dos filhos de suas empregadas, teve lugar no Brasil em 2015 quando do lançamento de Que horas ela volta de Anna Muylaert. 2015 sendo um ano especial, pois só então se votava a lei complementar que garantia às trabalhadoras (e aos poucos trabalhadores domésticas(os)) os direitos estabelecidos desde a constituição de 88. É mesmo chocante quanto isso demorou. Tão chocante quanto termos sido o último país a abolir a escravidão nas Américas. Tão chocante como ainda hoje apenas ⅓ das domésticas terem carteira assinada. Mas há algo outro que me choca e que é menos óbvio, e explica a população negra, tanto quanto a feminina, terem ido parar majoritariamente nessas funções – a desvalorização histórica (que vem de antes do capitalismo) do trabalho de cuidado, particularmente no âmbito do domus, ou do lar. E, o que deixa o assunto ainda mais interessante é que na quadra histórica atual isso vai ter que mudar, pois esse tipo de trabalho parece ser o que nos vai restar. Desta vez, a todos.
Mas bem, que trabalho é este? O trabalho doméstico envolve, ao meu ver, muito mais que cuidados com casas, cuidados com pessoas: crianças – a quem se deve ensinar a viver, o que vai da escovação dos dentes e da arrumação do quarto, a valores de civilidade -; idosos – a quem se deve ensinar também, a curtir seu tempo, suportar suas dores, deixar seus ensinamentos e, finalmente, a morrer; e os adultos em geral – a quem se deve ajudar a aguentar o tranco da vida, e do trabalho em particular, o que significa garantir que tenham em suas casas conforto material, físico e psicológico. Ocorre que os cuidados com as pessoas envolve o ambiente ao redor, e é frequentemente reduzido a isto, preparar o ambiente. Isso faz parecer que o trabalho doméstico nada cria propriamente, mas apenas cuida de manter o ambiente onde outras atividades, mais importantes, porque criativas e transformadoras, irão acontecer. Pouco se percebe que o produto deste trabalho são pessoas saudáveis e razoavelmente felizes, em permanente processo de crescimento e amadurecimento. Manter permanentemente as condições de higiene, de produção de refeições, de gerenciamento do tempo e do espaço (privado e comum), parece algo monótono, vazio de significado, que não exige maiores qualificações. Isso leva ao argumento de que o trabalho doméstico não é trabalho, ele apenas deixa tudo preparado para o trabalho acontecer fora e depois, portanto ele em si nada cria ou transforma. Esse argumento foi desenvolvido pela filósofa Hannah Arendt. Ela chamava esses afazeres de labor, e o diferenciava do trabalho efetivamente transformador da natureza – do agricultor, do artesão, do operário e mesmo do cientista fabricante de conhecimentos -, e da ação, criadora de fatos políticos, de história efetivamente. Eu não aprecio essa divisão e tão pouco concordo com a crítica arendtiana a Marx que não as teria visto, entendendo-as todas como um só “trabalho”.
Sim, em Marx é assim, porque ele bem descreve, e analisa, o que o capitalismo faz. É o capital que torna todos esses afazeres trabalho, pois os torna a todos mercadoria, algo a ser comprado e vendido em algum mercado. Um problema evidente, e principalmente no capitalismo do Sul da Terra, são as diferenças de remuneração, e valorização social na sua esteira, entre estes mercados. Verdade que trabalhos mais qualificados são mais densos em trabalho e essa é a base da sua valorização, mas a essa base há que se adicionar várias camadas de determinações para entendermos o porquê de diferença tão exuberante. Exuberância essa que vira uma série de imagens contundentes no filme de Muylaert. Ali, a desigualdade social tem por base a diferença do trabalho que Val, a empregada, vende e o que seus patrões vendem. Essa desigualdade irá aparecer de diversos modos: no que consomem (comida, roupas, equipamentos de utilidade), no espaço que habitam (amplo e iluminado ou pequeno e escuro), e, mais interessante, no modo como se comportam (mais falso e pseudo civilizado ou mais verdadeiro mesmo que grosseiro). Mas vejamos que a denúncia dessas desigualdades, feitas em grande parte pela filha da empregada (Jéssica), cuja presença vai parecer ostensiva e ameaçadora aos patrões, só pode ser feita por ela estar se preparando para vender um trabalho diferenciado, em outro mercado. A petulância, ou consciência da opressão, de Jéssica só tem lugar porque ela não fará nenhum trabalho doméstico.
É o mesmo que acontece num outro filme brilhante, Parasita de Bong Joon-ho de 2007. Ali, do mesmo modo, ascender socialmente é ter algo pra vender diferente do mero trabalho de arrumar a casa, fazer a comida ou dirigir o carro (coisas que os pais da família do filme coreano, como a Val do filme brasileiro, ainda fazem). Em Parasita os filhos da família principal não escapam ao destino dos pais só porque foram a escola e podem ter um trabalho diferente pra vender como a Jéssica do Que horas ela volta, mas porque vendem justamente o trabalho de educar/ensinar, que é a primeira das atividades feitas em casa a escapar da desvalorização do trabalho doméstico. A alfabetização, o treinamento profissional e a formação moral e a civilidade das crianças foi das primeiras atividades domésticas a escapar da casa. Nem sempre é ruim que os filhos de pobres e ricos não tenham seus pais como tutores desses processos, tudo irá depender de quem irá prestá-los. O que adultos e crianças perdem, em ambos os extratos, são os laços afetivos que vêm junto com esse cuidado.
A necessidade de gente disciplinada socialmente, treinável e adaptável a uma rotina de produção regular e contínua em grande escala no capitalismo industrial fez com que a educação se tornasse uma mercadoria a ser oferecida por gente especializada, ou mesmo instituições, públicas e privadas. Ocorreu algo semelhante com a alimentação, a saúde, etc. Foram retirados das casas e ofertados a tempo e a hora para o capital. Contudo, já há em muitos países um retorno à esfera doméstica de muitos destes trabalhos. A obtenção da alimentação, por exemplo, via mercado, acabou por levar à má nutrição, à obesidade e outros problemas de saúde. Mas um outro aspectos da questão nos mostra que esse retorno começa a se justificar também porque cresce o número de tarefas nas outras áreas feitas por softwares e autômatos.
De fato, o uso da tecnologia nunca objetivou a redução da labuta mais sofrida. Marx comenta que, em Londres, em plena revolução industrial, se máquinas substituam muitos trabalhadores, havia gente carregando carroças no lugar de motores e até de cavalos e mulas (como ocorre ainda no Brasil). No caso das novas tecnologias da informação e da computação, muitos são os que as acusam de nos substituir nas atividades criativas (até mesmo na arte e na ciência) e não nas domésticas. Do meu ponto de vista, essa crítica compactua com o dito acima sobre pensar o trabalho doméstico como algo tão somente inferior. Ao meu ver, todos os trabalhos têm algo de realmente chato e repetitivo que as máquinas poderiam e deveriam nos ajudar (não fosse a lógica do capital) e nos deixar com a cereja do bolo, o momento criativo. Há muitas tarefas monótonas envolvidas nos processos de compor uma sinfonia, desenhar uma casa, diagnosticar uma doença ou realizar mil e um cálculos matemáticos, que poderiam ser realizadas por softwares nos deixando com a direção da coisa toda. Mas erra quem pensa que o trabalho doméstico não é como estes, sendo feito só de tarefas monótonas. Lidar com demandas humanas nunca o é! Podemos usar uma máquina para bater uma massa em vez de usarmos a força dos braços, e um software para descobrir uma receita especial num tempo e lugar onde nunca estivemos, mas nenhuma máquina vai nos ajudar a saber se esse prato vai mesmo agradar e dirimir os maus humores da família na hora do jantar. Também tem outra coisa, talvez seja o caso de bater a massa na mão e reduzir o número de horas na academia, e lavar a louça com os convivas do jantar em vez de colocar tudo na máquina. Talvez seja justo nessa hora que distenderemos os maus humores…
Não creio que trabalhadores e trabalhadoras domésticos(as) sejam mais sofridas pelo que fazem, mas porque são pouco valorizados(as). Creio ainda que esse trabalho cujo conteúdo é o cuidado de humanos por humanos é, e pode ser ainda mais, criativo e construtivo, ainda mais se trouxer de volta pra casa certas tarefas terceirizadas ao mercado. Os filmes citados, mais ou menos romantizados, nos mostram quão são valorosos na criação de laços.