Por que cresce o emprego no Brasil?

Fotografia: Arquivo/EBC

Regras institucionais podem não afetar o nível do emprego no curto prazo, mas são decisivas na determinação de suas condições e da distribuição da renda primária da economia.

Carlos Henrique Horn

O nível geral de emprego da economia brasileira vem crescendo de forma contínua na conjuntura pós-covid. Desde maio de 2021, a variação interanual no número de ocupados foi positiva em todos os períodos de apuração da PNAD Contínua (IBGE). No trimestre encerrado em setembro de 2024, o total de ocupados chegou a 103,0 milhões de pessoas. Além disso, o ritmo da variação interanual acelerou ao longo deste ano e o aumento no número de postos de trabalho foi de 3,2% em comparação com o mesmo período do ano passado. Essa dinâmica do emprego tem sido capaz de absorver novos entrantes no mercado de trabalho e promover uma redução consistente do desemprego. Assim, nos últimos doze meses, houve crescimento de 3,2 milhões de pessoas ocupadas em postos que, a um só tempo, abrigaram a expansão de 1,9 milhão de pessoas ocorrida na força de trabalho e resultaram numa queda no contingente de desocupados da ordem de 1,3 milhão de pessoas.

O desempenho positivo do mercado de trabalho tem suscitado os debates esperados – por exemplo, o da sustentabilidade desse crescimento e do risco inflacionário – e novos debates, onde ganham projeção os motivos para o crescimento ocupacional e as formas de trabalho que vêm angariando maior espaço na estrutura da ocupação. Uma afirmação taxativa quanto aos motivos para o aumento do emprego formal apareceu em artigo de opinião do jornal carioca O Globo, publicado em 15/9/2024. Em editorial, explica o redator que:

Entre as hipóteses levantadas para explicar a criação de vagas formais, a mais provável é a reforma trabalhista feita pelo governo Michel Temer. Aprovada em 2017, ela desestimulou a indústria do litígio trabalhista. Com menos insegurança jurídica, houve queda no número de processos trabalhistas “aventureiros”, e as empresas se sentiram mais confiantes para contratar funcionários com carteira assinada (…) Esse é o principal legado das mudanças…

A explicação reverbera antiga contenda entre os economistas acerca dos determinantes do nível de emprego no curto prazo, em especial quanto aos efeitos de diminuições nos custos laborais sobre o número de postos de trabalho. Não obstante, o ponto central do argumento do jornal está na menor insegurança jurídica decorrente da reforma trabalhista de 2017, a qual teria o condão de impulsionar os contratos formais de emprego. O texto não mostra a evidência, mas sejamos justos: devemos esperar arrolamento de evidência numérica em editorial?

O debate é interessante e carece de estudos para seu esclarecimento. Nos limites deste artigo para DMT em Debate, trato de sugerir uma explicação alternativa e de esmiuçar alguns dados sobre o mercado de trabalho a fim de salientar mudanças havidas na presente conjuntura.

A hipótese mais provável para o crescimento contínuo da ocupação é bastante conhecida e reside no ritmo de crescimento da atividade de produção. Vale dizer: com o objetivo de produzir mais e atender a uma demanda em crescimento, mais cedo ou mais tarde, as empresas contratarão novos trabalhadores. Isto fará crescer o número de postos de trabalho assalariado e, em economias com forte presença do trabalho por conta-própria, também o número desses trabalhadores. O contexto geral da economia brasileira enquadra-se nessa explicação. O crescimento anual do PIB foi positivo nos últimos anos: em 2021, no ano de recuperação após o choque da crise sanitária, o país cresceu 4,76%; em 2022 e 2023, ainda que o ritmo tenha diminuído como esperado, houve novo crescimento – 3,02% e 2,91%, respectivamente. Já para 2024, as expectativas, inicialmente mais conservadoras, vêm confluindo para a faixa de 3% ou mais de aumento do PIB. Antes de quaisquer hipóteses de outra natureza, portanto, parece razoável admitir que o aumento conjuntural do emprego tem origem no crescimento ininterrupto da atividade econômica.

Um aspecto de particular interesse refere-se à composição desse aumento da ocupação quanto às formas de inserção dos indivíduos na atividade econômica. O IBGE, seguindo orientações internacionais em estatísticas do trabalho, classifica a posição dos indivíduos na ocupação em quatro categorias: empregados, empregadores, conta-própria e trabalhador individual familiar. E também oferece estimativas sobre subdivisões dessas categorias, que envolvem o registro do emprego assalariado em carteira de trabalho e o registro de empregadores e conta-própria no CNPJ. A Tabela 1 mostra indicadores da estrutura ocupacional brasileira com base nessas divisões. Procuramos situar esses indicadores em três momentos distintos com o intuito de aferir suas variações no tempo. Assim, os indicadores referem-se a um período pré-recessão de 2015-16 (jul./set.-14), a um período pré-covid (jul./set.-19) e ao último trimestre com informação disponível (jul./set.-24).

Ao se comparar o trimestre recente com os dois períodos de referência (pré-recessão e pré-covid), verifica-se que houve crescimento no número de postos de trabalho e no nível da ocupação. O indicador de nível da ocupação, que mede a razão entre os totais de ocupados e de pessoas em idade de trabalhar (14 anos ou mais de idade), merece especial atenção. Isto porque apenas muito recentemente ele retomou o patamar registrado antes da recessão. Ao longo de dez anos, entre 2014 e 2024, sua oscilação ocorreu sempre abaixo do nível que fora atingido no ápice da trajetória de melhora do mercado de trabalho ocorrida nos primeiros anos deste século. Em agosto de 2020, no vale da crise da pandemia, esse nível recuara para tão somente 48,5% da população em idade de trabalhar.

Os indicadores de participação das diferentes formas de trabalho na estrutura ocupacional permitem a observação de aspectos específicos dessa dinâmica. Quando se comparam os dados recentes com a situação pré-recessão, destacam-se os avanços dos empregados do setor privado sem carteira (de 11,3% para 13,9% do total de ocupados) e dos trabalhadores por conta-própria (de 22,8% para 24,6%). De outro lado, é notável o recuo dos empregados do setor privado com carteira (de 40,7% para 37,8%) e dos trabalhadores domésticos (de 6,3% para 5,7%). Quanto aos empregados do setor público, cuja participação agregada cresceu timidamente de 12,3% para 12,4%, vale notar que suas subdivisões manifestam comportamentos muito diferentes. Enquanto os servidores estatutários perderam participação (de 8,3% para 7,6%), a parcela dos empregados contratados sem registro em carteira – basicamente, contratos temporários – aumentou de 2,5% para 3,3% do total dos ocupados.

Já a comparação dos dados recentes com a situação pré-covid mostra semelhanças e diferenças para com a comparação acima. O que é semelhante? Nos anos de recuperação da pandemia, também houve perda de participação dos servidores estatutários e dos trabalhadores domésticos e ganho de participação dos empregados sem carteira nos setores privado e público. No caso específico dos domésticos, a variação negativa concentrou-se nesse período, uma vez que, entre o pré-recessão e o pré-covid, houve um pequeno aumento na participação. Quanto às diferenças, há duas mudanças relevantes. Os empregados no setor privado com carteira, que perderam participação no período pré-covid, mostraram alguma recuperação depois da tormenta, passando de 49,1% para 51,7% dos ocupados, o que foi insuficiente para retomarem a importância pré-recessão. E os trabalhadores por conta-própria, diferentemente do que ocorreu antes da pandemia, reduziram sua parcela relativa da ocupação (de 25,5% para 24,6%). Essa perda concentrou-se no segmento sem registro no CNPJ (queda de 20,4% para 18,4%), uma vez que o segmento dos autônomos que possuem esse registro saltou de 5,2% para 6,3% do total de ocupados.

Os dados admitem algumas constatações gerais sobre a recuperação do emprego no último quadriênio. Em primeiro lugar, vê-se um persistente e forte aumento do emprego sem carteira no setor privado. Essa forma de inserção ocupacional é reconhecidamente precária, sendo a falta de registro do contrato um indicador de piora nas condições de emprego – não pagamento de horas extras, férias em períodos menores do que os estipulados pela lei, falta de contribuição à seguridade social etc. Em seguida, tem-se o forte crescimento recente da ocupação autônoma registrada no CNPJ, acompanhado por um declínio igualmente forte na participação dos conta-própria sem CNPJ. Esses resultados relacionam-se diretamente com a legislação do MEI. Uma terceira constatação é que a mudança no perfil dos empregados no setor público, com perda de participação dos servidores estatutários organizados em carreiras e aumento relativo dos contratos temporários, provavelmente concentrados nos serviços de saúde e educação. A quarta observação geral aponta para a redução da parcela dos trabalhadores domésticos, sobretudo, no segmento com carteira assinada.

Por fim, cabe um olhar sobre os empregados no setor privado com carteira, a parte mais expressiva do chamado “emprego formal” e da estrutura ocupacional brasileira. Esses empregados foram fortemente atingidos durante a recessão de 2015-16 e no auge da crise da pandemia. Não obstante a aprovação da reforma trabalhista de 2017, sua recuperação no período até março de 2020 foi tímida. Pudera. O crescimento da atividade econômica também não se mostrou nada vigoroso nesses anos. Somente depois da recuperação propiciada pelo processo de vacinação em massa contra a covid, com crescimento anual do PIB na casa de 3% ou mais, o emprego formal encontrou terreno para ganhar pontos na composição da ocupação. E se a “segurança jurídica” e mesmo a redução dos custos do trabalho propiciadas pela reforma trabalhista não parecem oferecer uma explicação para o aumento no emprego formal, podem figurar, todavia, no rol das explicações para o aumento robusto do emprego informal, ou seja, do número de assalariados sem carteira. Isto porque, com o aumento dos custos de demandar na Justiça do Trabalho e o enfraquecimento dos sindicatos – consequências diretas da reforma do governo Temer –, uma proporção crescente dos empregadores parece ter se sentido liberada do cumprimento de direitos básicos quanto à jornada, renda e outros. Regras institucionais podem não afetar o nível do emprego no curto prazo, mas são decisivas na determinação de suas condições e da distribuição da renda primária da economia.

Carlos Henrique Horn é Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS.

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