
Ser jogador de futebol. Modelo. Cantor. Bombeiro. Astronauta. Quando perguntamos a uma criança o que ela quer ser quando crescer, essas costumam ser algumas das respostas. Em comum, todas elas unem o lúdico ao trabalho. O sonho é um trabalho atravessado por um hobby. Você largaria tudo para fazer do seu passatempo favorito sua fonte de renda? Para Igor Romero, “Igordao”, como é conhecido em seu canal de transmissões, 7 anos foi o tempo que ele levou perseguindo sua maior ambição – que, agora, ele chama de trabalho.
Igor tem 24 anos e atualmente vive da internet, trabalhando como criador de conteúdo com foco na Twitch, plataforma de transmissões da Amazon, onde aliou sua personalidade e regionalismos aos games. O gaúcho teve sucesso, mas mostra que essa relação de trabalho com uma plataforma de entretenimento digital não é simples.
A rotina de Igor é intensa. Costuma fazer live desde a manhã até o fim da tarde, em torno de oito a 12 horas por dia. Às vezes, chega a 14 horas, quando acaba se debruçando mais tempo editando cortes de momentos de suas transmissões. Trata-se de uma carga pesada fora das câmeras, na qual Igor edita o material produzido naquele dia para distribuir em outras plataformas, diversificando suas possibilidades de monetização. “ A plataforma, se ela vê que tu estás te esforçando, demora, mas tem resultado”.
O streamer explica que, ao longo desses anos, precisou adaptar o foco do conteúdo que criava nas transmissões para tentar “construir seu algoritmo”, no sentido de segmentar o trabalho para ter maiores chances de entregar e construir audiência. Até 3 anos atrás, ainda não conseguia viver das lives, cogitando desistir diversas vezes, enquanto viu alguns amigos atingirem o sucesso. Mesmo assim, o pequeno público que já tinha sido conquistado foi um apoio para que não desistisse. Esse esforço contínuo permitiu que trancasse a faculdade e enfim transformar o hobby em sua principal fonte de renda.
8 ou 80
Apesar da ideia de que com o esforço a recompensa chega, poucos conseguem obter uma renda significativa no universo de transmissões de videogames. Dados divulgados em um grande vazamento de 2021 revelaram que cerca de 3/4 dos criadores não fazem dinheiro suficiente para ter o streaming como atividade principal. Além disso, ao passo que a Twitch promete liberdade e autonomia para criadores de conteúdo, ela também exige que uma série de regras sejam cumpridas com regularidade, para que o criador participe dos programas de parcerias – espécies de contratos informais, já que não preveem vínculo empregatício, nem garantias trabalhistas, apenas repasses de acordo com o desempenho. “O universo de lives é muito oito ou 80, né? Tu podes ‘estourar’, como tu podes não ‘estourar’ e vai ficar sempre com aquele mesmo público. (…) Para uma pessoa que quer começar com isso, ela já tem que ter em mente que os resultados no início não vão ser bons”, ressalta.
A analogia entre dois números distantes se traduz na realidade: a parcela de 1% dos maiores streamers concentra mais da metade de toda a receita da plataforma. Beatriz Blanco, coordenadora dos cursos de tecnologia no Centro Universitário SENAC em São Paulo, afirma que essa repartição não é uma falha sistêmica, mas um modelo.
A acadêmica conta que em sua pesquisa existiram relatos de pessoas que cumprem o mínimo de horas sem se tornarem parceiros da plataforma. Ela explica que, ao mesmo tempo em que há cobrança de periodicidade por parte da plataforma, o retorno financeiro pode levar um tempo indeterminado, ou nunca acontecer. Essa lógica produz um ambiente em que as plataformas conseguem se apoiar em trabalho não remunerado, atraindo mesmo assim mais pessoas para dentro delas. “Muitas pessoas trabalham muito intensamente com a esperança de que ‘se eu fizer isso por um período de tempo vou me tornar remunerado em breve’ “, comenta Beatriz. Na análise da especialista, esse processo faz com que a falta de retorno pelo esforço crie uma tendência de olhar para si mesmo ao invés de possíveis problemas estruturais das plataformas.
A soma de todos esses elementos resulta em um modelo nomeado “winner-takes-all” (o vencedor leva tudo), no qual poucos ganham muito e a maioria sustenta o sistema sem retorno proporcional – o que faz com que a maioria dos streamers não se sustentem com a Twitch, mas com trabalhos conjuntos a partir do uso da visibilidade que conquistam através da plataforma. “Hoje a maior parte dos streamers não se sustenta com a monetização, os que são de médio e pequeno porte usam a Twitch para tentar parcerias comerciais externas, então eles tentam usar para ganhar certa visibilidade para firmar publis e parcerias que são externas ao streaming”, destaca Blanco.
Igor conta que sua principal fonte de renda, na verdade, vem através do “livepix” ou “pix.gg”. São doações diretas para o streamer para que uma mensagem seja exibida na tela e lida por ele. Outras estratégias como fechar contratos de parcerias com marcas e participar de publicidades, monetizar com conteúdos menores dentro do TikTok ou Shorts do YouTube são imprescindíveis para o trabalho valer a pena. “Se tu queres virar streamer, se tu conheces alguém que é streamer, ele nunca vai ter só a renda da Twitch. Impossível. Impossível viver só de Twitch”.
Com isso nasce outra questão: essas doações diretas não são de responsabilidade da Twitch, afinal, acontecem por fora da plataforma e, devido ao público do Igor também ser de fora do Brasil, vindo até de Portugal, o gaúcho se viu obrigado a criar um MEI para conseguir comprovar sua renda. O produtor de conteúdo ressalta que até os ganhos obtidos diretamente pela Twitch são difíceis de comprovar formalmente, o que dificulta o uso do dinheiro e joga o criador para a ala da informalidade.
Em 2024, o Brasil foi responsável por um bilhão das 15,6 bilhões de horas assistidas dentro da Twitch. A plataforma também revelou que possui 105 milhões de espectadores mensais e que 21 milhões de streamers transmitiram conteúdo no país. Os números reforçam o tamanho da Twitch e a relevância do Brasil dentro da plataforma — ao mesmo tempo em que evidenciam o contraste entre a audiência massiva e o baixo retorno financeiro para a maioria. O modelo baseado em visibilidade massiva convive com a lógica da precarização algorítmica — tema debatido por estudiosos do trabalho digital. Números atualizados sobre a Twitch podem ser acompanhados no site TwitchTracker.
Trabalho plataformizado
A lógica da Twitch se assemelha à de outras plataformas digitais, como Uber e iFood. André Campos Rocha, pesquisador na temática do trabalho digital, ressalta que, apesar dessas plataformas venderem a ideia de tornar as pessoas autônomas, existe um controle muito rígido sob o trabalho – o que costuma não ser percebido, por ser digital. Todas plataformas se colocam apenas como um meio, onde as pessoas vão lá de forma supostamente voluntária e atuam. Campos traça algumas características das plataformas: ideia de flexibilidade e autonomia; se colocarem como intermediárias; gestão algorítmica das atividades; e, claro, visar lucro. Conforme Campos Rocha, existe uma relação entre uma ideia de autonomia e trabalhos temporários, na qual a carteira assinada já não é mais uma ambição e ideia hegemônica. Nessa transição de preferências acontece a precarização do mercado de trabalho, onde as plataformas, estruturas de dados enxutas, entram e atuam. “Essas plataformas, elas se aproveitam desse ambiente. Primeiro de mercados de trabalho desestruturados e, segundo, de uma injunção subjetiva que a gente tem no neoliberalismo, de você trabalhar com o que gosta”, resume.
O pesquisador da PUC Minas aponta para contradições desses aplicativos – ao mesmo tempo em que se dizem democráticos e oferecem independência, exercem um controle algorítmico forte para que se estabeleça uma constância, uma relação de trabalho, em conjunto com uma estrutura onde poucos ganham. “O que se nota é que, na verdade, se trata de relação de trabalho mesmo. A maioria dessas pessoas têm uma assiduidade dentro da plataforma” e conclui que, em conjunto com a pressão por produzir conteúdos constantemente sem clareza de como opera o algoritmo, existe uma precariedade algorítmica, aliada a falta de direitos trabalhistas.
Nesse sentido, Igor compreende estar num momento em que precisa aproveitar, pois está obtendo sucesso com a internet, mas já começou a pensar em outras alternativas para o futuroe. “É muito bom tu teres um plano B quando tu trabalhas com a internet, porque, tipo, tu não tens um INSS da vida, né? Daqui uns anos eu paro e, aí, o que eu vou ganhar?”
Por amar muito o que faz, o streamer identifica poucos pontos negativos, mas reconhece que não ver a luz do Sol e trabalhar por muitas horas o deixam cansado. Em todo caso, sente que precisa aproveitar o momento propício e que, caso demonstre estar mentalmente abalado, sua audiência irá perceber. “Eu sempre gostei de jogo, então trabalhar com isso nunca me cansa psicologicamente”, salienta.
O amor e o sonho
A professora Beatriz explica que existe uma cultura muito forte na indústria dos games em torno da ideia do “trabalho por amor” — e que as plataformas se beneficiam diretamente disso. Trabalhar com games ainda é visto como um sonho para muita gente, especialmente no sul global, onde essa possibilidade parecia distante até poucas décadas atrás. Essa sensação de estar realizando um sonho sustenta diversas formas de abuso trabalhista em todos os níveis da indústria. “É um trabalho muito da esperança. ‘Ah, vou me esforçar porque algo vai acontecer e a minha carreira vai deslanchar.’ Isso sustenta que elas fiquem muito tempo insistindo, com uma carga de trabalho fora da curva”, detalha a professora, sobre uma crença difundida de que, com esforço, qualquer um “chega lá”.
Isso sustenta o que a especialista chama de um “trabalho de esperança”: jornadas excessivas, sem garantias, movidas pela expectativa de sucesso futuro. “Depois que eu consegui viver de live, a minha vida mudou muito. Praticamente eu não saio de casa, eu fico só na frente do computador”, relata Igor, com a câmera fechada — ela só é ativada nas transmissões. Apesar de se dizer feliz com a trajetória, ele revela que ainda deseja alcançar números maiores e conquistar mais reconhecimento. Ao olhar para o início da carreira, é direto: a Twitch é um péssimo lugar para começar.
O algoritmo é prejudicial aos criadores, as taxas são altas sobre o pouco que se monetiza e, fisicamente, o trabalho é desgastante, afinal, “são muitas horas sentado”. O produtor também expressa o desejo por mais formalização em sua parceria com a plataforma: “Teria que ter uma comprovação de renda, ajudaria muito tu comprovares que trabalha. Porque, se tu chegares para uma pessoa e disseres que tu és streamer, a pessoa vai perguntar ‘o que é isso aí?’. Imagina tu pegares uma carteira de trabalho e estar lá assinado pela Twitch. Já dá um baque.”
Sobre a informalidade, Beatriz defende a regulamentação legal e estrutural do trabalho digital por parte do Estado. Para ela, resistências individuais são ineficazes num sistema que penaliza quem não age conforme os critérios — muitas vezes obscuros — do algoritmo. Na leitura dela, a regulamentação deve reconhecer formalmente o trabalho nas plataformas e enfrentar a lógica de exploração que beneficia empresas estrangeiras às custas de trabalhadores precarizados no Sul Global — o que ela nomeia de “colonialismo digital”. Em sintonia, o cientista social André acredita que o primeiro passo é reconhecer legalmente o trabalho digital como um vínculo.
Beatriz ainda aponta que, além da ação do Estado, é preciso que a academia continue produzindo e divulgando dados sobre a precarização causada pelas plataformas, e que esses dados sejam comunicados de forma acessível à população. Para ela, a falta de letramento digital sobre os impactos cotidianos das plataformas impede que as pessoas reconheçam a precariedade como parte de um sistema mais amplo — que é nocivo, mas muitas vezes naturalizado. Essa cegueira estrutural favorece a continuidade da exploração e dificulta qualquer possibilidade de organização coletiva. O amor, o sonho e a esperança, nesse cenário, viram matéria-prima para informalidade digital.
Fonte: Humanista
Texto: Thiago Soria
Data original da publicação: 15/05/2025