
Carlos Henrique Horn
Este artigo é o segundo de uma série de cinco artigos sobre o desempenho do mercado de trabalho brasileiro em 2024 para publicação no site DMT em Debate. O propósito dessa série é oferecer um panorama do mercado de trabalho em perspectiva temporal mais longa, comparando os resultados recentes com dois momentos críticos da economia nacional – a recessão de 2015-16 e a pandemia da covid-19 em 2020. A fonte dos dados é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE. Os valores são médias de quatro trimestres fixos de cada ano.
O desempenho favorável da atividade econômica nos anos subsequentes à crise da covid-19 fez com que o número de ocupados na economia brasileira saltasse de 94,3 milhões de pessoas em 2019 (ano anterior à pandemia) para 102,2 milhões de pessoas em 2024, num crescimento médio anual de 1,64%. Nesse mesmo período, o nível da ocupação – que mede a parcela da população em idade de trabalhar que se encontra ocupada – voltou a aumentar, oscilando de 56% para 58%. A trajetória desses indicadores desde 2014 é mostrada no Gráfico 1.

A evolução do contingente ocupado no quadriênio recente distingue-se daquela observada no período de recuperação após a recessão de 2015-16 segundo o ritmo do aumento ocupacional. Assim, entre 2017 e 2019, o crescimento médio no número de ocupados foi de apenas 0,43% a.a., ao passo que a taxa de aumento nos anos pós-pandemia (2021 a 2024) foi quatro vezes superior. Essa distinta velocidade não foi a única diferença relevante no modo de recuperação do mercado de trabalho em cada subperíodo. Outra discrepância relaciona-se aos tipos de inserção ocupacional que se destacaram em cada conjuntura.
A PNAD Contínua classifica os ocupados na atividade econômica segundo quatro diferentes posições: empregado, conta-própria, empregador e trabalhador auxiliar familiar. O Quadro 1 apresenta as definições do IBGE para cada uma dessas categorias.

No Gráfico 2, mostramos as taxas de crescimento anual médio do número de ocupados em cada categoria de ocupação nos dois períodos de referência. No período correspondente à recessão de 2015-16 e sua posterior recuperação, que se prolongou até o ano de 2019, o contingente ocupacional cresceu em apenas duas categorias, a dos conta-própria (2,80% a.a.) e a dos empregadores (3,23% a.a.). A categoria dos empregados assalariados, fortemente afetada pela recessão, não chegou a recobrar o patamar prévio, tendo o número de empregados diminuído ao ritmo de 0,39% a.a. entre 2014 e 2019. Uma diminuição numérica também aconteceu na categoria dos trabalhadores auxiliares familiares.

Já na conjuntura recente de recuperação do mercado de trabalho após a crise da covid-19, os resultados foram diferentes. No período 2019-24, a categoria com o maior crescimento numérico foi a dos empregados assalariados, com taxa anual de 2,15%, sendo acompanhada, ainda que em ritmo mais lento, pelos trabalhadores por conta-própria (1,32% a.a.). No polo do declínio numérico, ficaram os empregadores (-0,36% a.a.) e, novamente, os trabalhadores auxiliares familiares (-8,44% a.a.).
Essa dinâmica acarretou uma mudança na composição ocupacional no mercado de trabalho brasileiro. Em especial, a participação dos conta-própria saltou de 22,6% do total de ocupados em 2014 (ano pré-recessão) para 25,0% em 2024 (ganho de 2,4 p.p.). Os empregados, que consistem na maior categoria, perderam 1,1 p.p. na estrutura ocupacional, passando de 70,6% para 69,5% no mesmo período. Por fim, as duas categorias de menor tamanho registraram comportamentos distintos, com os empregadores ampliando sua participação de 4,0% para 4,2% e os trabalhadores auxiliares familiares sofrendo forte contração de 2,8% para 1,3% do total de ocupados.
Um detalhamento sobre essas categorias revela aspectos importantes do desempenho do mercado de trabalho no decênio. O Gráfico 3 apresenta as taxas de crescimento anual médio do número de ocupados com base nas divisões dos assalariados em empregados do setor privado, empregados do setor público e trabalhadores domésticos e no modo de sua contratação, assim como segundo o registro dos empregadores e dos trabalhadores por conta-própria no CNPJ.

Os dados apontam para um traço básico da trajetória ocupacional no mercado de trabalho brasileiro no decênio 2014-24: o declínio das formas de inserção ocupacional relativamente mais protegidas e a expansão das formas menos protegidas pelo sistema de relações de trabalho e de seguridade social. No caso do emprego assalariado, as formas mais protegidas incluem os empregados no setor privado com carteira, os empregados no setor público com carteira e estatutários e os trabalhadores domésticos com carteira. Cada uma dessas categorias manifestou um ritmo de variação do número de ocupados mais lento em comparação com as categorias relativamente menos protegidas. No setor privado, o número de empregados sem carteira se expandiu em ambas as conjunturas (pós-recessão e pós-covid), enquanto os com carteira amargaram redução numérica entre 2014 e 2019 e menor crescimento entre 2019 e 2024. No setor público, a categoria com o crescimento ocupacional mais robusto foi a dos empregados sem carteira, ou seja, aqueles que laboram, sobretudo, com base em contratos por tempo determinado e sem expectativa de continuidade. Por fim, no caso dos trabalhadores domésticos, houve expansão numérica apenas para o contingente que reúne os mensalistas sem carteira e os diaristas. Em conjunto, as formas relativamente mais protegidas, que representavam 52,4% do total dos ocupados em 2014, tiveram um declínio de 4 p.p. em sua participação, caindo para 48,4% da estrutura ocupacional brasileira em 2024. Já a participação das formas menos protegidas aumentou de 18,1% para 21,2% no mesmo intervalo.
Os trabalhadores por conta-própria – categoria com menor proteção laboral relativa – também aumentaram em número total e participação no decênio. Na conjuntura pós-covid, esse crescimento concentrou-se no segmento com CNPJ, cujo aumento anual médio de 6,27% dimensiona o chamado efeito pejotização da força de trabalho. Ou seja, uma parcela cada vez maior desses trabalhadores supostamente autônomos – há quem os chame de empreendedores – sujeitam-se à disciplina de organizações empresariais que os contratam por longos períodos sem se submeterem, todavia, às normas protetivas da legislação ou do contrato coletivo. Combinando o aumento nas participações dos grupos de empregados assalariados menos protegidos e dos trabalhadores por conta-própria, tem-se um acréscimo de 5,5 p.p. no decênio – em 2014, sua parcela na estrutura da ocupação era de 40,7%; em 2024, alcançou 46,2% do total de ocupados.
Ainda que um exame dos fatores explicativos dessa mudança no perfil da ocupação no mercado de trabalho brasileiro fuja aos propósitos deste pequeno artigo, vale levantar uma hipótese básica, sem prejuízo de outras, que é a do enfraquecimento das estratégias coletivas dos trabalhadores subordinados – quer sejam assalariados, quer trabalhem sob o disfarce de conta-própria – em sua busca de melhores condições laborais. Enfraquecimento que se associa à perda de poder e de status revelada, por exemplo, na reforma trabalhista de 2017; no engrandecimento midiático da figura do trabalhador por conta-própria como um empreendedor; e no atrofiamento da defesa do trabalho subordinado, substituída por pautas particularistas ou meramente assistenciais, na agenda da esquerda política.
Carlos Henrique Horn é Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS.
[…] Confira a matéria original clicando aqui […]