Os capitalistas de desastre

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Fotografia: Marinha do Brasil/RS

Na catástrofe das enchentes, os neoliberais se travestem de socialistas, e a demagogia do mercado autorregulado é trocada pelo estatismo de conveniência.

Luiz Marques

Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 05/06/2024

A doutrina do choque

Naomi Klein é uma premiada jornalista canadense, com publicações em diversos idiomas. Em A doutrina do choque: A ascensão do capitalismo de desastre (Nova Fronteira, 2008), propõe um olhar sobre a história do “Estado corporativista” onde a globalização — codinome do livre mercado — aproveita a chance de desastres naturais (Sri Lanka), golpes militares (Chile), guerras (Iraque) e atos terroristas (Estados Unidos) para alterar a legislação da economia em prol de corporações na área da construção civil, saúde, segurança, turismo, etc.

Tal tem sido o modus operandi do sistema para implementar “a nova razão do mundo”, na direção de uma distopia anarcocapitalista. Os choques servem para minar e exterminar resquícios do Estado de Providência, no imaginário social e no real.

A inundação do berço do blues e do jazz no furacão Katrina de 280 km de rajadas e dois mil mortos, em 2005, enseja um artigo emblemático de Milton Friedman no Wall Street Journal: “A maior parte das escolas de Nova Orleans está em ruínas, assim como os lares das crianças que lá estudavam. As crianças espalharam-se pelo país. É a oportunidade de reformar o sistema educacional”. Milhares de professores são demitidos. Empreendedores privados recebem o licenciamento das escolas públicas, não como uma medida urgente de alívio às pressões pelo caos, mas como uma reforma permanente.

“Os capitalistas de desastre não tem interesse em consertar o que existiu. O processo chamado ‘reconstrução’ conclui a obra do desastre original ao eliminar o que restou da esfera pública e das comunidades – depois busca substituí-las por um tipo de Nova Jerusalém corporativa, antes que as vítimas se reagrupem e reivindiquem direitos sobre o que era seu”, sublinha Naomi Klein.

A pressa de setores, que amiúde instigam e não se comovem com as iniquidades sociais e étnicas, ilustra a estratégia dos think tanks da opressão e exploração: medo e desordem são os catalisadores de cada salto para a frente. O antiestatismo faz do voluntariado uma alternativa aos órgãos regulatórios para colocar em prática o receituário do Consenso de Washington; a saber, quanto menos Estado, melhor.

O tripé que sustenta o ideário é a privatização, a desregulamentação governamental e o ajuste fiscal para conter os gastos sociais. O judiciário e a mídia comercial prestam-se para operar golpes, agora, dissimulados com a chancela do legislativo para envernizar o conluio dos “donos do poder” e adequar as leis tributárias, fundiárias, ambientais e o que mais apetecer a voracidade. A autora, em tela, recusa aquelas narrativas em que o capitalismo desregulado anda de par com a democracia.

Entre privatizar ou morrer

Naomi Klein compara um choque econômico ao tratamento de choque nos pacientes psiquiátricos e nos prisioneiros da CIA, em Guantánamo, como técnica de interrogatório para os recalcitrantes. Os métodos violentos expressam convicções que lembram as Cruzadas, na Idade Média. Para tolher a audiência dos progressistas no proletariado e no subproletariado, a extrema direita descobre na bandeira da “liberdade individual” – pela via do consumo – um critério seletivo para decidir sobre “a sociedade que queremos”, em contraposição às lutas revolucionárias para transformações coletivas.

A liberdade individual une o idealismo ao radicalismo, na abolição das regulamentações forjadas pelo keynesianismo na Europa e pelo nacional-desenvolvimentismo no Cone Sul, da América Latina: obstáculos à acumulação sem freio das gulosas fortunas. Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e o pop star da Universidade de Chicago Milton Friedman conferem um ar de cientificidade à ganância dos poderosos. Governantes liquidam ativos que são o produto de investimentos públicos e conhecimentos, para construí-los e fazê-los valiosos. Tudo tem de passar às mãos dos particulares. “Privatizar ou morrer”, diz o FMI. Os contrarrevolucionários se nutrem de axiomas matematizados.

Segundo Eduardo Galeano, as teorias ultraliberais pariram Augusto Pinochet. Se, com Salvador Allende no Chile, o pão, o leite e o transporte abarcam 17% do salário-mínimo, sob as patas do general 74% dos rendimentos se destinam à aquisição do pão, no más; 45% da população cai abaixo da linha de pobreza, e os 10% mais ricos ficam 83% mais enricados. Os financistas, como viciados, ignoram as desigualdades e perguntam pela próxima dose. O PIB é insatisfatório na saga hiperindividualista. A purificação feita com a ortodoxia é um convite ao abismo da infelicidade: ampla, geral e irrestrita.

Argentina, Uruguai e Brasil que brilhavam em planos de igualitarização, qual as “reformas de base” de João Goulart, cedem lugar ao pesadelo de um capitalismo filtrado pela lente do laissez-faire. Na Argentina, a ditadura chega ao poder com a dívida externa em 7,9 bilhões de dólares, e é expulsa da Casa Rosada com défice de 45 bilhões. No Uruguai, a junta militar eleva o débito de meio bilhão de dólares para 5 bilhões. No Brasil, de 3 bilhões de dólares o passivo salta para 103 bilhões, em 1985. Eis o saldo da experiência que retirou o neoliberalismo da biblioteca para configurá-lo na política.

A era das descontinuidades

Naomi Klein enfileira exemplos de vários países (Bolívia, Polônia, China, África do Sul, Rússia, EUA) para explicar o princípio da doutrina do choque. As apropriações unem a planificação tecnocrata à repressão covarde dos subalternos. Não raro, a ordem é imposta à força pelos agentes oficiais. Remédios neoliberais são impopulares. O objetivo final é pulverizar a noção emancipadora da solidariedade institucional do Estado em relação aos indivíduos, credores de direitos. Também romper a solidariedade pessoal e a lealdade entre os trabalhadores tornados concorrentes, com a flexibilização dos valores civilizatórios e da dignidade. O monetarismo esconde cartas na manga.

Joseph Stiglitz resume a mentalidade dos fabricantes de choques: “Só a ação ao estilo Blitzkrieg na janela de oportunidade, propiciada na névoa da transição, possibilita a realização de mudanças antes que a população se organize para proteger seus interesses”. As multinacionais colonizadoras das “nações selvagens” veem ativos estatais como terreno a conquistar – correios, aeroportos, portos, estradas, escolas, bancos, energia elétrica, água, gás, petróleo, seguridade social, parques nacionais, defesa civil e até a guerra – em qualquer escaninho público das instâncias federativas colonizadas.

De acordo com o jornalista italiano Benedetto Vecchio, a abordagem kleiniana foca a atenção na “descontinuidade” da trajetória do capitalismo no século XX, ao revés da celebrada continuidade nos trinta gloriosos anos do Estado de bem-estar. A tragédia lota as estatísticas de desempregados e, de relatos tristes, os consultórios Psi. O curioso é que o fracasso do sistema vira case de sucesso no balanço dos aprendizes de feiticeiro. A “realidade paralela” inspira-se na Société du Mont Pèlerin.

A besta do neoliberalismo ora mergulha na corrupção ora no autoritarismo, sempre ameaçando as instituições da democracia com os tentáculos do regime discricionário – a aporofobia, o racismo e as injustiças imemoriais. O Estado corporativista e financeirizado possui atribuições monetizadas por um trust de negócios que circula entre a mais-valia e os cargos públicos, sem conflito de interesses. A trama espúria renova a instabilidade das relações sociais e a desagregação da sociabilidade. Seres humanos são tratados como unidades mercantis e, de pronto, rotulados na categoria ou de cidadãos ou de subcidadãos. Essa é a cultura política a transcender com a mobilização do otimismo, nas ruas.

Não ao oportunismo da vez

O dirigente da Federasul (Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul) subestima os 15 bilhões em créditos liberados pelo governo federal às grandes empresas, com juros simbólicos de 1% ao ano. Em entrevista, o líder empresarial reconhece o afago paternalista, mas ainda minimiza o montante alçado. “A expectativa era superior”. Na crise climática com a catástrofe das enchentes, os neoliberais se travestem de socialistas.

Pedem que o Tesouro jorre a dinheirama na sociedade e, em simultâneo, seja um camarada comprador dos serviços que financia. Em ocasiões, a demagogia do mercado autorregulado é trocada pelo estatismo de conveniência. A questão é como serão aplicados os aportes do erário. A solidariedade deve ter caráter, verdadeiramente, comunitário e sem desvios.

Não espanta a recente criação pelo governo gaúcho da Secretaria Extraordinária para reconstrução e redefinição das normas fiscais, que tem entre suas funções a contratação das obras de infraestrutura e o monitoramento dos contratos de concessões, com os recursos advindos de Brasília. Tampouco surpreende o secretário, recém nomeado pelo governador tucano, querer imprimir com celeridade a privatização em rodovias e em duas mil escolas públicas no território guasca, com as eufemísticas Parcerias Público-Privadas (PPPs).

Alguém precisa avisar o marinheiro que o auxílio não é para navegar na lama do privatismo. É para qualificar a vida dos sobreviventes do cataclismo, enaltecida por um planejamento participativo. O espectro de Nova Orleans paira sobre o calcanhar do Brasil.

Não vale imitar o quero-quero, e cantar longe do ninho. Se não houve aceno do presidente petista à negociação direta das empresas com os empregados, para arrochar os salários e remanejar as férias, isso revela que o antitrabalhismo do golpista Temer e do fascista Bolsonaro é página virada no horizonte brasileiro. Ontem a opinião dos trabalhadores era desconsiderada. Os patrões tinham o timbre da exclusividade, na voz de mando e obediência. Hoje a CUT e o conjunto dos movimentos sociais necessitam ser ouvidos, o que não é favor; é o senso comum em ambientes democráticos. Cabe à República demonstrar imaginação para não tropeçar nas próprias pernas. Calma nessa hora.

O ministro-chefe da Casa Civil Rui Costa verbaliza a intenção de a União realizar a gestão e a manutenção de todas as estruturas de proteção contra cheias, a começar pelo Muro da Mauá, diques e casas de bombas em Porto Alegre. A União moderniza o aparato e repassa a responsabilidade das prefeituras da região metropolitana à administração estadual, por meio de um organismo público. A proposição da governança Lula resolve o problema estrutural.

A notícia está de molho. Desmistifica as pseudo virtudes do mercado e amplia o controle sobre a res publica. Para mais informações, vide a reportagem de Gabriela Moncau – “Alvarez & Marsal, McKinsey e EY: o capitalismo de desastre toma a frente na reconstrução no RS” (in: Brasil de Fato, 31/05/24). – Não ao oportunismo, da vez!

Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

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