Oportunidade perdida: brasileiros estão mais instruídos, mas desindustrialização frustra expectativas

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Fotografia: Sesi

por Felipe Prestes

O IBGE divulgou, no final do mês de fevereiro, dados de educação do Censo 2022. Os resultados mostraram uma população com um grau de instrução cada vez maior. De 2000 a 2022, a proporção de pessoas com 25 anos ou mais de idade que tinha nível superior completo quase triplicou, passando de 6,8% para 18,4%. Porém, o país tem tido dificuldades de absorver essa mão de obra mais qualificada.

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada (IPEA) mostra que, entre 2012 e 2023, a proporção de sobre-educados passou de 26% para 38%. São pessoas que têm um grau de instrução maior que o indispensável para sua ocupação. Entre os brasileiros com nível superior, os sobre-educados passaram de 28% para 34%, no mesmo periodo. Ou seja, dentre os diplomados que têm algum trabalho no Brasil, um terço exerce uma atividade em que sua formação não é necessária. Entre as pessoas com ensino médio, os números são ainda maiores, chegando a 51% de sobre-educação.

Para o economista e técnico de planejamento e pesquisa do IPEA Maurício Cortez Reis – um dos autores do estudo ao lado de Sandro Sacchet de Carvalho – a sobre-educação no Brasil é surpreendente uma vez que este era um problema de países desenvolvidos, em que a proporção de pessoas com nível superior costuma ficar acima dos 40% da força de trabalho. “O Brasil tem uma taxa de sobre-educação muito alta”, aponta.

Reis considera difícil precisar quais são as causas desta sobre-educação. “Pode ser uma questão de demanda por trabalhadores, de que a economia não avançou no mesmo ritmo, a indústria vem perdendo participação no emprego. Mas tem outra questão também de oferta. Como se deu esse aumento (de diplomados)? Pode não estar ocorrendo da forma que a gente gostaria que estivesse, talvez com uma qualidade menor do que seria o ideal, talvez descasado das áreas mais dinâmicas da economia”, reflete. Ainda segundo o técnico do IPEA, a crise econômica que o país enfrentou na década de 2010 pode ter influenciado, mas a pesquisa demonstrou que ela não foi determinante. A tendência, com a estabilização do país, é de uma leve absorção de pessoas diplomadas em trabalhos que exigem nível superior.

O economista Marcelo Manzano, professor da Unicamp, não tem dúvidas de que a explicação se dá pela falta de demanda por trabalhadores instruídos, causada pela desindustrialização do país. “É equivocada a ideia de que se houver gente com maior qualificação, haverá criação de atividades mais sofisticadas, que têm maior valor agregado. A relação causal é inversa. É a partir da geração de ocupações que exigem maior grau de formação que se pode incorporar as pessoas que estão se formando. Se a gente olhar em um gráfico, a evolução no número de pessoas formadas e a evolução da indústria no PIB são curvas que caminham no sentido inverso. Logo, é muito difícil absorver essas pessoas, não porque elas trabalhariam necessariamente no setor industrial, mas porque a indústria, na sua demanda para outros setores, gera alternativas de maior qualificação”, afirma.

Nos anos 1980, recorda Manzano, se dizia que “o engenheiro virou suco”, em referência a pessoas com formação superior que estariam trabalhando como vendedores ambulantes de suco. “Hoje é o engenheiro que virou motorista de Uber”, lamenta. O estudo do IPEA mostra que, de fato, os trabalhadores por conta própria têm os mais altos índices de sobre-educação e aponta que os trabalhos plataformizados podem estar absorvendo essa força de trabalho mais instruída. O levantamento cita outra pesquisa do Instituto, feita por Sandro Sacchet de Carvalho e Mauro Oddo Nogueira, que revela que, desde 2015, a ocupação de motoristas de passageiros teve um ingresso de pessoas com ensino superior provenientes do desemprego ou inatividade ”consideravelmente maior que o observado para os trabalhadores autônomos em geral”.

Para Manzano, a reindustrialização pode tirar essas pessoas dos automóveis para uma atividade em que exerçam seus conhecimentos na plenitude. O economista cita como exemplo a indústria farmacêutica. “As fábricas de medicamentos só produzem o comprimido no Brasil. Compram os princípios ativos e os insumos de fora, transformam em comprimido, embalam e vendem aqui. Isso não absorve a mão de obra qualificada. Participei de um seminário recentemente com o pessoal da área de biofármacos e eles diziam que não temos problemas de formação nessa área, mas as pessoas se formam e não têm o que fazer. Pessoas bem formadas, com bolsas de mestrado e doutorado, vão trabalhar em outros países. Se a economia avançasse, no sentido de ter uma densidade industrial, faria sentido instalar laboratórios no próprio Brasil”.

O professor da Unicamp afirma, porém, que questões como a alta taxa de juros e o câmbio flutuante dificultam o sucesso de qualquer política industrial. “Só um capitalista muito bocó vai se sentir estimulado a investir pesadamente em atividades mais robustas quando ele sabe que vai ganhar 15% ao ano comprando títulos do Governo Federal. Então, isso é disfuncional. E a gente tem um sistema cambial muito volátil. Isso além de trazer problemas como a inflação, pode dificultar todo o planejamento de uma empresa. A gente paga o preço de ter aderido de maneira muito destemida à agenda neoliberal”.

Por outro lado, o economista elogia o programa Nova Indústria Brasil, do Governo Federal, que visa reaquecer o setor. “Acho que o Governo Federal está com uma proposta razoável. Tem algumas missões que se traduzem em avanços de alguns setores industriais considerados importantes. A missão 2, por exemplo, é expandir o complexo econômico-industrial da saúde, que é uma atividade que tem todos os méritos. Em primeiro lugar, porque oferece mais saúde para a população, mas não apenas por isso. Um serviço de saúde demanda uma multiplicidade de insumos, de técnicos, de especialistas, que resume muito bem o que deveria ser a economia de um país”, explica Manzano.

A medicina, aliás, é uma das áreas que menos têm sobre-educados, enfatiza Maurício Cortez Reis. “Quando você compara áreas, na medicina todo mundo que se forma trabalha na área praticamente. Tem um indício aí de que esse é um setor que tem necessidade de mais pessoas”. O levantamento do Censo 2022 mostrou que dentre os 25 milhões de brasileiros com nível superior há 8,4 milhões formados na área de “negócios, administração e direito” e menos da metade na área de “saúde e bem-estar” (4,1 milhões) – os médicos, por sua vez, são cerca de 550 mil pessoas.

Pessoas com nível superior têm mais emprego e renda

Apesar da sobre-educação, a formação superior confere vantagens para os trabalhadores no Brasil, o que mostra, por um lado, a importância da inclusão de mais pessoas na universidade, mas também é revelador das desigualdades sociais do país. A coordenadora de pesquisa da diretoria de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV DGPE), Jaana Flávia Fernandes Nogueira, destaca que segundo o estudo Education at a Glance (EaG) 2024, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o percentual de pessoas empregadas no Brasil com idade de 25 a 64 anos era de 59% para pessoas com escolaridade inferior ao ensino médio, 74% para pessoas com ensino médio e 85% para pessoas com ensino superior. “Segundo dados dessa publicação, trabalhadores com nível de escolaridade abaixo do ensino médio têm mais probabilidade de ter contratos temporários ou de estar em empregos de meio período”, afirma a doutora em educação, que atuou no MEC nos governos anteriores de Lula e Dilma e, recentemente, compôs a equipe de transição do Governo Lula para a área educacional.

Também de acordo com este levantamento da OCDE, o Brasil tem uma enorme diferença salarial entre as pessoas com maior ou menor grau de instrução. “Está entre os países do mundo com maior diferença salarial entre os que têm apenas ensino médio e os que têm nível superior, perdendo apenas para o Chile e para a Colômbia. No outro extremo estão os países escandinavos. Seguramente, vale destacar que outros elementos impactam na questão dos ganhos além do nível de escolaridade, em função das desigualdades sociais, como idade, gênero, raça/cor. Fatores adicionais como a demanda do mercado de trabalho por habilidades e a oferta de trabalhadores com habilidades, entre outros, também importam”, ressalta Nogueira.

Para Maurício Cortez Reis, a formação superior traz melhor produtividade mesmo em atividades que não exigem esta qualificação. “Os resultados indicam que esse adicional de educação é, de alguma maneira, válido. Não tanto quanto seria se aquela ocupação estivesse relacionada com a formação do trabalhador, mas ele tem algum ganho com aquilo que ele estudou”, afirma. “(Mas) tem uma questão para a própria pessoa, que estudou para determinada profissão e não consegue exercer. E para a economia, de não estar aproveitando o potencial daquela pessoa”, ressalta o economista do Ipea. Em seu estudo, Reis e Sacchet apontam que a sobre-educação “está relacionada a uma maior propensão para que os trabalhadores apresentem insatisfação com o emprego e a taxas mais elevadas de rotatividade”.

Marcelo Manzano considera que ter uma formação acima da exigida pode, muitas vezes, trazer menos produtividade. “Às vezes a pessoa não se sente muito motivada, sem nenhum tipo de afinidade com o que está fazendo. Ela se formou para cinema e está trabalhando no McDonalds. Isso não significa que ela execute melhor sua tarefa, muitas vezes ela trabalha de forma mais frustrada, e quem veio de uma situação de vida mais precária agarra aquela ocupação com mais empenho. Claro que isso tudo é difícil de medir”, pondera.

O economista da Unicamp volta ao tema da industrialização. Segundo Manzano, ter uma economia mais complexa ajudaria a valorizar todas as profissões, mesmo as mais simples. “Um garçom na Alemanha ganha mais que um garçom no Brasil porque o alemão é mais produtivo? Não, ele ganha mais porque as outras atividades mais sofisticas que existem na Alemanha pagam salários tão melhores que esse trabalhador exige um salário bastante mais alto para trabalhar no bar, porque tem outra alternativa. Você sobe o padrão salarial por influência do setor mais dinâmico. Como nós estamos esvaziando o setor mais dinâmico, nós não puxamos esses outros salários. Isso não tem nada a ver com a produtividade da produção de garçom, do balconista de loja, do borracheiro. A produtividade deles é a mesma em qualquer lugar do mundo”.

Aumento da formação superior deve ser celebrado, mas há muito a fazer

Os especialistas são unânimes em afirmar que a expansão da educação superior no Brasil deve ser comemorada. Porém, o feito brasileiro de triplicar o acesso não chega a ser extraordinário. “Realmente, a partir dos anos 2000 teve um crescimento grande, mas não foi um ótimo resultado. Outros países em desenvolvimento, como Turquia e Chile, também tiveram um aumento muito grande. Não foi uma coisa espetacular, que ninguém mais tenha conseguido. E ainda está muito longe dos países desenvolvidos, que estão com pelo menos 40% da força de trabalho com educação superior”, avalia Maurício Cortez Reis.

“A ampliação do percentual de pessoas com nível superior completo deve ser celebrada. É algo bastante necessário, e que tem impacto individual e coletivo”, afirma Jaana Flávia Fernandes Nogueira, que também faz ressalvas a esse crescimento. “Ainda há muito esforço a ser feito. O número de pessoas nessa faixa etária com ensino superior ainda é mais baixo no Brasil do que em outros países da América Latina e que a média dos países da OCDE. Isso mostra que a ampliação do acesso à educação superior precisa continuar no país”.

Apesar de ressaltar que a educação, por si só, não traz desenvolvimento econômico, Marcelo Manzano também celebra a inclusão de mais brasileiros na educação superior. “Isso é importantíssimo, é uma questão de democracia, de acesso a direitos iguais, melhora das condições das pessoas viverem sua vida, pensarem o mundo, terem possibilidades de atuar em diferentes tipos de atividades que não sejam braçais. Do ponto de vista dos indivíduos, isso é ótimo. Mas isso não vai resolver o problema do desenvolvimento econômico, não vai resolver o problema dos empregos de qualidade. É claro que é uma condição necessária para que o país melhore seu padrão salarial. Mas para que isso aconteça tem outras políticas econômicas que têm que vir na frente”.

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