O trabalhador voltou à cena política?

Fotografia: Agência Brasil

O fim da escala 6×1 por estar recolocando a relação capital-trabalho no centro da organização e da luta política dos trabalhadores.

Graça Druck e Luiz Filgueiras

Fonte: A terra é Redonda
Data original da publicação: 19/11/2024

O trabalhador voltou à cena política. E não voltou de forma partida, fragmentada. O trabalhador voltou à cena política como classe social, que unifica todos os seus segmentos, independentemente de sua identidade específica. E mais, voltou nas redes sociais e nas ruas, mobilizados na luta pela redução da jornada de trabalho, que interessa a todas as categorias de trabalhadores: pobres e remediados, negros e brancos, homens e mulheres, hetero e homossexuais etc.

O responsável direto por isso, e que deu partida a essa mobilização, é o Movimento “Vida Além do Trabalho” (VAT), iniciado pelo vereador do Rio de Janeiro Rick Azevedo, o mais votado do PSOL na recente eleição municipal, e que teve adesão imediata nas redes sociais e apoio nas ruas. Com base em sua própria experiência, de “viver para trabalhar”, de forma exaustiva e precária, surgiu a iniciativa de uma petição online que já reuniu três milhões de assinaturas e, em parceria com a deputada do PSOL, Érika Hilton, foi elaborada uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) alterando a jornada de seis dias de trabalho (48 horas por semana como limite máximo) por um de descanso, para quatro dias de trabalho (36 horas por semana como limite máximo) por três de descanso – sem redução do salário.

Os benefícios para todos os trabalhadores brasileiros é evidente: a adoção de uma jornada 4×3 trará melhoria significativa na qualidade de vida dos trabalhadores, que terão mais tempo para descanso, convívio familiar e lazer, contribuindo para a saúde física e mental dos mesmos – ao reduzir o estresse e o cansaço acumulado. Também vai lhes possibilitar aperfeiçoamento e qualificação profissional.

Do ponto de vista das empresas, ela reduzirá a alta rotatividade da força de trabalho associada, entre outras razões, à insatisfação dos empregados com a existência de jornadas de trabalho extenuantes. Com isso, o número de demissões será reduzido, com economia de treinamentos e substituições frequentes. Adicionalmente, impactará positivamente a criação de mais empregos e o aumento de produtividade, conforme constatado em países, como a Inglaterra, Alemanha e a Espanha, que reduziram suas jornadas.

A luta pela redução da jornada de trabalho é uma luta histórica da classe trabalhadora, desde os tempos da primeira Revolução industrial, nos séculos XVIII e XIX, quando se trabalhava até 16 horas por dia todos os dias, inclusive com o uso do trabalho infantil. Um dos momentos mais marcantes dessa luta ocorreu no dia 1º de Maio de 1886, na cidade de Chicago nos EUA, quando milhares de trabalhadores foram às ruas, com a paralisação dos serviços em protesto por melhores condições de trabalho, sobretudo a redução de jornada de trabalho para 8 horas por dia. A resposta do Estado foi uma violenta repressão aos manifestantes, dando origem ao 1º de maio como o dia dos trabalhadores.

Aos poucos, tendo como determinante fundamental a mobilização e luta dos trabalhadores, essa jornada foi se reduzindo e chegou no início do século XX nos países centrais do capitalismo, a uma jornada diária de oito horas de trabalho, com um total de 48 horas na semana. Isso ocorreu e foi legitimado pela Primeira Convenção da OIT assinada em 1919.

Entretanto, na atualidade, as transformações tecnológicas e na organização do trabalho no capitalismo financeirizado contemporâneo, que tem a precarização do trabalho no seu centro dinâmico, trouxeram de volta as jornadas extenuantes e desumanas, como é o caso mais evidente dos trabalhadores de plataformas.

No Brasil, a jornada de trabalho de oito horas diárias foi instituída apenas em 1932 e inscrita na Constituição de 1934, com seis dias de trabalho; portanto, há 92 anos. A CLT, criada em 1943, e restrita então aos trabalhadores urbanos, incorporou a jornada de 48 horas semanais, juntamente com o estabelecimento de um conjunto de direitos trabalhistas e outros que vieram a ser estabelecidos posteriormente (salário-mínimo, décimo-terceiro salário, férias remuneradas, aposentadoria, seguro-desemprego etc.).

Na Constituição de 1988, apesar do movimento sindical ter defendido uma jornada de 40 horas semanais, a jornada de trabalho foi reduzida para 44 horas. No entanto há inúmeras brechas na legislação que, na prática, possibilita burlar esse limite, como a escala 6×1 – vigente, principalmente, nos setores de comércio e serviços.

Tanto no Brasil, como nos países centrais do capitalismo, a luta pela redução da jornada de trabalho sempre foi árdua. A burguesia, e seus porta-vozes, em todas as ocasiões resistiram fortemente a qualquer iniciativa nessa direção, pintando um quadro caótico para a economia, prevendo o aumento dramático do desemprego e, até mesmo, vislumbrando o surgimento de uma “classe de vagabundos”.

Nunca é demais recordar que, no Brasil, os grandes proprietários de terra e de escravos, quando da eminência da abolição da escravidão, se comportaram desse mesmo modo, prevendo o fim da produção cafeeira e uma debacle da economia nacional. O mesmo ocorreu mais recentemente, com a extensão da legislação trabalhista às empregadas domésticas. Evidentemente, como a história demonstrou, nenhum desses vaticínios se concretizou.

Na conjuntura atual do capitalismo financeirizado, os argumentos da direita neoliberal e da extrema direita neofascista, contra a redução da jornada de trabalho, continuam basicamente os mesmos: a economia brasileira não vai suportar, o pequeno capitalista vai “quebrar”, o desemprego vai explodir, os preços dos bens e serviços vão subir e a PEC proposta, que já conseguiu mais de 200 assinaturas dos deputados é coisa de vagabundo.

Desde o início da década de 1990, com a constituição do padrão de desenvolvimento liberal-periférico no Brasil, a relação capital-trabalho se alterou profundamente, com o aumento do desemprego estrutural e enfraquecimento dos sindicatos, uma maior precarização do trabalho e a instituição de um processo de desregulação dessa relação em prejuízo das condições de trabalho (jornada e remuneração) e de redução dos direitos trabalhistas, a exemplo da reforma trabalhista de 2017.

Em suma, a prevalência de uma correlação de forças política desfavorável aos trabalhadores, implicou o surgimento de novas formas de superexploração do trabalho (característica estrutural do capitalismo dependente brasileiro), como a que estão submetidos os trabalhadores das plataformas digitais – cujas empresas chegam ao paradoxo de negarem a existência da relação capital-trabalho.

No último dia 15 de novembro, foram realizadas manifestações em vários estados do Brasil, chamadas pelo movimento Vida Além do Trabalho e outras organizações, tendo por bandeira central o fim da escala 6×1, ou seja, pela redução da jornada de trabalho sem redução de salário. Foi uma primeira iniciativa nacional de manifestar nas ruas a campanha que já vinha ocorrendo pelas redes e localizadamente nas ruas de algumas cidades, como Rio de Janeiro, onde nasceu o movimento. Uma mobilização que passou a pautar os noticiários, a imprensa corporativa, os diversos canais de redes sociais, os partidos e sindicatos.

A campanha – nas redes e nas ruas – obteve a adesão dos partidos de esquerda, de lideranças sindicais e de movimentos sociais, que parecem ter redescoberto a centralidade dessa luta para o conjunto dos trabalhadores brasileiros. A experiência do VAT – Vida Além do Trabalho – enquanto um movimento social por melhores condições de trabalho para além do espaço sindical, presente nos bairros, nos locais de trabalho, nas redes, no parlamento, vem demonstrando uma vontade coletiva que pode ajudar a alterar a correlação de forças política no país, tendo por sujeito central desse processo, a classe trabalhadora – recolocando, dessa forma, o trabalho e os trabalhadores na cena política.

Mas isso veio para ficar, recolocando a relação capital-trabalho no centro da organização e da luta política dos trabalhadores, reorientando os rumos das esquerdas no Brasil? Ou estas, em sua maioria, continuarão olhando apenas a conjuntura imediata e apegada a uma “correlação de forças política” circunscrita apenas ao Parlamento e vista como uma fotografia, que impede ações e iniciativas que confrontem o capital e o neofascismo?

Graça Druck é professora titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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