O STF e a Blitzkrieg trabalhista

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Fotografia: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

O patrão brasileiro torna-se um Führer em sua empresa, podendo decidir, unilateral e autoritariamente, se aplica ou não o Direito do Trabalho.

Lorena Vasconcelos Porto

Fonte: GGN
Data original da publicação: 02/09/2024

França, maio de 1940. O Exército alemão invade o país, após atravessar a Bélgica, em uma velocidade impressionante. As divisões de blindados (Panzerdivision), comandadas pelos generais Rommel e Guderian, avançam em um ritmo avassalador, impulsionadas pela ingestão massiva e indiscriminada de metanfetamina pelos soldados, inaugurando a chamada Blitzkrieg (guerra-relâmpago)[1].

Berlim, 20 de fevereiro de 1933. Os grandes líderes da indústria alemã se reúnem com os maiores dirigentes do Partido Nazista para investir em sua campanha pelo poder no país. Em seu discurso, Hitler promete “acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa[2]. O resultado foi a expansão vertiginosa das fortunas dos magnatas germânicos de 1933 a 1945, com a “arianização” (expropriação) de indústrias e bancos de judeus, a produção de armas e munições para a Wehrmacht e a exploração do trabalho escravo de prisioneiros dos nazistas[3].

Brasil, 2024. No julgamento de reclamações constitucionais, Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) vêm admitindo que basta a contratação formal de um trabalhador com uma roupagem diversa (sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego, não importando que os requisitos dela estejam presentes. O patrão brasileiro torna-se, assim, um Führer em sua empresa, podendo decidir, unilateral e autoritariamente, se aplica ou não o Direito do Trabalho.

Assiste-se à destruição rápida e avassaladora do Direito do Trabalho no Brasil, em um ritmo de guerra-relâmpago (Blitzkrieg) conduzida pelo STF. Na Reclamação 66.843, por exemplo, no mesmo dia da sua distribuição, o Ministro Alexandre de Moraes julgou improcedente (sic) uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho[4]. Paradoxalmente, a mesma celeridade não é empregada em outras ações que tramitam na Corte, como o Habeas Corpus 232303, embora haja previsão expressa de prioridade no julgamento[5]. Distribuído há quase um ano ao Ministro André Mendonça, que indeferiu a liminar, foi impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de Sônia Maria de Jesus, suposta vítima de trabalho análogo a escravidão doméstica, durante 40 anos, na residência de desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina[6].

Enquanto o Direito do Trabalho é desmantelado, as fortunas dos magnatas brasileiros e a concentração da riqueza também aumentam[7]. Mas, ao contrário do período nazista, hoje podemos recorrer eficazmente aos sistemas internacionais de justiça. Como demonstrado alhures[8], a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos consagra o princípio da primazia da realidade para o reconhecimento da relação de emprego, ao contrário do que vem decidindo o STF. Trata-se de princípio de vigência universal, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), devendo-se dar maior importância aos fatos do que à forma.

Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que a investiga e busca uma solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo.

Recentemente, a Comissão Interamericana, por meio de sua Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA), manifestou preocupação com essas decisões do STF, que “não reconhecem a condição de empregados em situações que deveriam estar amparadas pelas normas internacionais e nacionais, o que leva à negação das respectivas proteções trabalhistas e sociais[9].

O Direito do Trabalho e a democracia compartilham da mesma estrutura de valores: limitam o poder e permitem que os mais fracos dele participem. O Direito do Trabalho visa a organizar, controlar e limitar o poder patronal. Se essas funções essenciais são atingidas ou simplesmente reduzidas, há uma erosão da ideia democrática[10]. É evidente, portanto, que a Blitzkrieg dos direitos trabalhistas promovida pelo STF leva ao enfraquecimento da democracia no Brasil.

Um possível caminho é continuar aplicando o princípio da primazia da realidade. Do contrário, será o aniquilamento do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil. A História deu razão à Resistência na luta pela democracia e pelos direitos humanos[11].

Notas

[1] OHLER, Norman. High Hitler: como o uso de drogas pelo Führer e pelos nazistas ditou o ritmo do Terceiro Reich. 2ª ed. São Paulo: Planeta, 2020.

[2] VUILLARD, ÉRIC. A ordem do dia. São Paulo: Planeta, 2019. p. 22.

[3]  Trata-se de famílias e marcas mundialmente conhecidas, tais como Porsche, Oetker, Mercedes-Benz, BMW, Volkswagen, Allianz, Deutsche Bank, AG-Varta, BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Telefunken, entre outras. In: JONG, David de. Bilionários nazistas: a tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2023; e VUILLARD, ÉRIC. A ordem do dia. São Paulo: Planeta, 2019. p. 24.

[4]  CARELLI, Rodrigo de Lacerda. A morte e a morte do Direito (assassinado pelo STF). Disponível em: <https://www.jota.info/artigos/a-morte-e-a-morte-do-direito-assassinado-pelo-stf-04082024>. Acesso em 25 ago. 2024.

[5] Regimento Interno do STF: “Art. 145. Terão prioridade, no julgamento do Plenário, observados os arts. 128 a 130 e 138: I – os habeas corpus; (…)” e “Art. 149. Terão prioridade, no julgamento, observados os arts. 128 a 130 e 138. I – os habeas corpus;”. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso em 25 ago. 2024.

[6]  BARROS, Carlos Juliano. ‘Sônia Livre’: ato cobra STF por demora em caso que gerou comoção nacional. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/colunas/carlos-juliano-barros/2024/07/16/sonia-livre-stf-e-questionado-sobre-demora-em-caso-de-escravidao-domestica.htm>. Acesso em 25 ago. 2024.

[7]  EXAME. Concentração de renda no Brasil aumenta 17% em 15 anos; veja ranking. Disponível em: <https://exame.com/economia/concentracao-de-renda-no-brasil-aumenta-17-em-15-anos-veja-ranking/>. Acesso em 25 ago. 2024.

[8]  PORTO, Lorena Vasconcelos. Ainda há juízes em Costa Rica. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/ainda-ha-juizes-em-costa-rica>. Acesso em 25 ago. 2024.

[9]  CIDH. REDESCA. VII Informe Anual de la Relatoría Especial Sobre Derechos Económicos, Sociales, Culturales Y Ambientales (REDESCA) de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH), 2023. Disponível em: <https://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2023/docs/IA2023_Anexo_REDESCA-ES.pdf>. Acesso em 25 ago. 2024. Parágrafo 178.

[10]  DOCKÈS, Emmanuel. Pouvoir patronal et démocratie. Disponível em: <https://www.parisnanterre.fr/medias/fichier/pouvoir_patronal_et_democratie_1265970391202.pdf>. Acesso em 25 ago. 2024; DOCKÈS, Emmanuel. Desafios Contemporâneos
dos Direitos Sociais na França
e na União Europeia
. Palestra proferida no Simpósio Internacional Desafios Contemporâneos dos Direitos Sociais, na Escola Superior do Ministério Público da União, em Brasília/DF, no dia 31.10.2018.

[11]  ROSE, Sarah. As mulheres do Dia D. 1ª ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2022.

Autor é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

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