O RJU e a estabilidade funcional dos servidores nos cargos públicos

Fotografia: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Estabilidade é necessária para uma profissionalização contínua do setor público e para a melhoria do desempenho institucional.

José Celso Cardoso Jr.

Fonte: Jota
Data original da publicação: 22/11/2024

Em sociedades capitalistas heterogêneas e desiguais (vale dizer: subdesenvolvidas) como a brasileira, os mercados de trabalho desregulados e precários foram a tal ponto naturalizados que não apenas as elites, mas sobretudo seus representantes na mídia e na política não mais se envergonham de defender publicamente a restauração dos mesmos padrões laborais e sociais do século XIX no Brasil.

Por esta via, ausência ou precariedade de vínculos trabalhistas, jornadas de trabalho longas e abusivas, remunerações insuficientes e instáveis, mecanismos de proteção social inexistentes ou totalmente individualizados, assim como ausência ou precariedade das instâncias de representação coletiva e de acesso à Justiça do Trabalho, são aspectos defendidos e propagados como modernidade ou referência programática principal para as propostas de reforma social, laboral e administrativa em voga.

A única métrica meritória, dentro dessa perspectiva desconstrutiva da cidadania, é a métrica do lucro privado imediato, na vã ilusão de que esse indicador simbolize o máximo de liberdade, produtividade e retorno financeiro dos agentes econômicos num ambiente idealmente marcado pelo máximo de concorrência entre indivíduos como critério dominante de sociabilidade.

Ocorre que a própria pesquisa divulgada pela Folha de S. Paulo em 17/11 demonstra que:

  1. a maioria da população brasileira (sendo 41% de ótimo/bom, mais 40% de regular) aprova o desempenho geral dos funcionários públicos;
  2. 56% defendem a estabilidade dos servidores;
  3. não há insatisfação generalizada da opinião pública nem contra os serviços nem contra os funcionários do Estado.

Ainda assim, tudo se passa como se de menos gastos com pessoal e a máquina pública fosse possível obter – contrassenso absoluto do mantra liberal sobre a eficiência – mais ou melhor eficácia e efetividade das ações estatais e políticas públicas.

Aqui é preciso enfatizar: há ao menos cinco fundamentos históricos da ocupação no setor público que precisam ser levados em consideração para uma boa estrutura de governança e por incentivos corretos à produtividade e a um desempenho institucional satisfatório ao longo do tempo. São eles:

  1. estabilidade na ocupação, idealmente conquistada por critérios meritocráticos em ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social, visando a proteção contra arbitrariedades – inclusive político-partidárias – cometidas pelo Estado-empregador;
  2. remuneração adequada, isonômica e previsível ao longo do ciclo laboral;
  3. qualificação/escolarização elevada desde a entrada e capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações;
  4. cooperação – ao invés da competição – interpessoal e intra/inter organizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público; e
  5. liberdade de organização e autonomia de atuação sindical, no que tange tanto às formas de auto-organização e funcionamento dessas entidades.

Atendo-se ao tema da estabilidade funcional dos servidores nos cargos públicos, é preciso ter claro que ela remonta a uma época na qual os Estados nacionais, ainda em formação, precisaram, para sua própria existência e perpetuação (isto é, consolidação interna e legitimação externa) transitar da situação de recrutamento mercenário e esporádico para uma situação de recrutamento, remuneração, capacitação e cooperação junto ao seu corpo funcional. Este, gradativamente, foi assumindo funções estatais permanentes e previsíveis em tarefas ligadas às chamadas funções inerentes e depois assessórias dos Estados capitalistas modernos e contemporâneos.

Olhando da perspectiva histórica, Silva lembra que:

“O Princípio da Estabilidade nasceu nos Estados Unidos para barrar um costume desumano e imoral, sem contar o fato de que bania completamente a democracia da Administração Pública, em virtude da usual e costumeira troca de governantes no Poder Público de partidos políticos influentes, os Democratas e os Republicanos. Diante desse panorama antidemocrático em que viviam os cidadãos estadunidenses, onde os servidores eram sumariamente demitidos, quando considerados contrários ou desnecessários ao atual governo que buscava se cercar apenas de seus partidários. Tais atitudes causavam total desalinhamento na prestação do serviço público, afetando a credibilidade do governo, e causando injustiças tanto aos servidores quanto aos administrados. Dessa forma, buscando atender ao interesse coletivo idealizou-se o instituto da estabilidade, almejando alcançar proteção aos cidadãos na prestação das atividades essenciais da Administração.” [1]

Aqui no Brasil, consolidou-se a estabilidade funcional no serviço público com a Lei 2.924 de 1915. Constitucionalmente, a estabilidade foi recepcionada em 1934, e de lá para cá tem sido mantida em todas as Constituições, até na – ainda que precariamente vigente – de 1988. Em todas elas, sempre vigorou um mesmo atributo original e essencial, qual seja, o da indispensabilidade da estabilidade do corpo funcional do Estado como forma de garantia da provisão permanente e previsível das respectivas funções junto ao próprio ente estatal, nos territórios sob suas jurisdições e suas populações.

O inverso disso, ou seja, o receituário liberal-gerencialista em defesa da flexibilidade quantitativa como norma geral, por meio da possibilidade de contratações e demissões rápidas e fáceis no setor público, insere os princípios da rotatividade e da insegurança radical não apenas para os servidores, que pessoalmente apostaram no emprego público como estratégia e trajetória de realização profissional, como também introduz a insegurança na sociedade e no mercado pelas dúvidas e incertezas na capacidade do Estado em manter a provisão de bens e serviços públicos de forma permanente e previsível ao longo do tempo.

Portanto, permanência e previsibilidade são duas características fundamentais das políticas públicas e da própria razão de existência e legitimação política do Estado, algo que apenas pode estar assegurado por meio da garantia da estabilidade e da proteção do seu corpo funcional, além de outros fatores.

Diante do exposto, entende-se melhor porque é que a ocupação no setor público veio, historicamente, adotando e aperfeiçoando a forma meritocrática como critério fundamental de seleção e acesso, mediante concursos públicos rigorosos e sob a guarida de um regime estatutário e jurídico único (RJU), como no caso brasileiro desde a CF-1988.

O RJU foi criado para assegurar a estabilidade dos servidores, protegendo-os de pressões políticas e externas, e garantir a prestação contínua e imparcial dos serviços públicos. A CLT, projetada para o setor privado, não contém disposições detalhadas sobre conduta, direitos e deveres específicos, nem oferece a estabilidade e segurança necessárias para funções estratégicas. Portanto, o RJU e regimes estatutários similares são essenciais para manter a eficiência, a imparcialidade e a proteção dos servidores, assegurando a continuidade e a qualidade dos serviços públicos.

Sabemos que o critério weberiano-meritocrático de seleção de quadros permanentes e bem capacitados (técnica, emocional e moralmente) para o Estado depende de condições objetivas em construção, mas ainda longe das realmente vigentes no Brasil, quais sejam: ambiente geral de homogeneidade socioeconômica, republicanismo político e democracia social.

O ambiente geral de homogeneidade econômica e social é condição necessária para permitir que todas as pessoas aptas e interessadas em adentrar e trilhar uma carreira pública qualquer, possam disputar, em máxima igualdade possível de condições, as vagas disponíveis mediante concursos públicos, plenamente abertos e acessíveis a todas as pessoas aptas e interessadas.

Por sua vez, o republicanismo político e a democracia social implicam o estabelecimento de plenas e igualitárias informações e condições de acesso e disputa, não sendo concebível nenhum tipo de direcionamento político-ideológico nem favorecimento pessoal algum, exceto para aqueles casos (como as cotas para pessoas deficientes e as cotas para gênero e raça) em que o objetivo é justamente compensar a ausência ou precariedade histórica de homogeneidade econômica e social entre os candidatos a cargos públicos.

Apenas diante de tais condições é que, idealmente, o critério meritocrático conseguiria recrutar as pessoas mais adequadas (técnica, emocional e moralmente), sem viés dominante ou decisivo de renda, da posição social e/ou da herança familiar ou influência política. 

Por isso, uma verdadeira política nacional de recursos humanos no setor público deve ser capaz de promover e incentivar a profissionalização da burocracia pública a partir do conceito de ciclo laboral no setor público, algo que envolve as seguintes etapas organicamente interligadas: i) seleção; ii) alocação; iii) capacitação; iv) remuneração; v) progressão; e vi) aposentação.

Este é o escopo necessário para uma discussão qualificada acerca do ciclo laboral no setor público e suas relações com os temas e objetivos da produtividade e do desempenho institucional do Estado brasileiro no século XXI. Em outras palavras, o aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional será resultado desse trabalho permanente e difícil, mas necessário, de profissionalização da burocracia pública ao longo do tempo, para a qual importa, sobremaneira, a estabilidade funcional dos servidores nos respectivos cargos públicos.

Não há, portanto, choque de gestão, reforma fiscal, ou reforma administrativa contrária ao interesse público (do tipo PEC 32/2020), que supere ou substitua o acima indicado.

Nota

1] SILVA, B, S. O Princípio da Estabilidade e seu Propósito. Mimeo, em: https://jus.com.br/artigos/55179/o-principio-da-estabilidade-eseu-proposito, 2013.

José Celso Cardoso Jr. é Secretário de Gestão de Pessoas do Ministério da Gestão e Inovação.

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