A luta por melhores condições para profissionais da saúde deve ser prioridade para todos que esperam atendimento com qualidade nas unidades de saúde.
Samara Ferrazza
Fonte: Revista Movimento
A relevância dos trabalhadores da saúde é inegável e a pandemia da COVID-19, que atingiu severamente todos os países do mundo, serviu para reforçar a importância de quem escolheu trabalhar nesta área. Foram os profissionais da saúde que, enquanto a maioria de nós se isolava, iam ao encontro do vírus. Escolher ser profissional da saúde significa escolher cuidar do bem mais precioso de todos que é a vida, mas também significa conviver diariamente com cenas de atendimentos de emergência, internação de pacientes graves em UTIs, isolamento e, inevitavelmente, em alguns casos, apesar de todo o esforço, conviver com a morte.
Em razão disso, em 01 de maio, data que celebra o Dia do Trabalhador e da Trabalhadora, devemos aproveitar para homenagear tais profissionais e refletir sobre a situação de trabalho e emprego dos mesmos. Diga-se que estas também são reflexões propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em todos os dias 07 de abril, data que celebra o Dia Mundial da Saúde. As últimas campanhas têm chamado atenção para as prioridades de saúde global e de condições de trabalho, especialmente a partir de 2020, em que reiteradamente há convocação para que os líderes mundiais se preocupem em garantir que todos tenham condições de vida e de trabalho propícias a uma boa saúde e acesso a serviços de qualidade quando e onde precisarem. Nesta linha, a campanha de 2020 trouxe a temática: “Apoiemos os profissionais de saúde” e, nos anos seguintes: “Construindo um mundo mais justo, equitativo e saudável” (2021), “Nosso planeta, nossa saúde” (2022), “Saúde para todos” (2023) e “Minha saúde, meu direito” (2024).
No Brasil, a saúde como direito universal tem garantia no artigo 196 da nossa Constituição Federal (CF/88): “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. E os artigos seguintes tratam da forma de custeio de cada um dos entes integrantes da Federação.
Além disso, o direito à saúde, assim como ao trabalho protegido por uma relação de emprego, estão no rol dos direitos e garantias individuais enumerados no artigo 6º da CF/88. E neste mesmo diploma legal está o artigo 60, §4º, que considerada tais direitos como cláusulas pétreas, ou seja, núcleo duro do texto constitucional, indispensáveis à cidadania e que não poderiam ser modificados por Emenda. No entanto, o que temos visto na realidade brasileira vai de encontro ao previsto na CF/88. Os investimentos em saúde estão cada vez menores (contrariando os percentuais constitucionais mínimos de custeio) e as relações de trabalho estão cada vez mais precárias.
Cabe notar que a realidade acima não é recente. Um exemplo disso foi a Emenda Constitucional 95 (2016), aprovada no Governo Michel Temer, que congelou os gastos públicos por 20 anos, enquanto no Estado do RS o PLP 257/2016 (Projeto de Lei Complementar) veio em complementação da PEC para o “congelamento” dos gastos públicos do Estado por dois anos, em razão das “metas fiscais” para o refinanciamento das dívidas. Tais medidas impactaram diretamente na classe trabalhadora aqui do Estado do RS, sucateando a saúde, pois praticamente não houve nenhuma expansão/melhoria dos serviços públicos de atendimento básico, resultando no sucateamento do SUS e ferindo diretamente os direitos fundamentais dos cidadãos. Com o “congelamento” da verba destinada ao SUS não se investiu em qualificação e melhor remuneração dos trabalhadores do setor no Estado.
E, olhando o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) do Governo Federal de 2025, o cenário segue desanimador, uma vez que aponta para um declínio contínuo nos gastos com a saúde. Neste sentido, fundamental que se acompanhe a tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLP 62/2024), apresentado pelos Deputados Federais Sâmia Bomfim, Glauber Braga, Fernanda Melchionna e outros membros da Federação PSOL-REDE. O PLP busca a retirada do piso mínimo para gastos com Saúde e Educação do Arcabouço Fiscal.
Da mesma forma, o cenário segue desolador no Estado do RS, visto que há descumprimento sistemático da obrigação constitucional de aplicação, pelo ente público estadual, do percentual mínimo de 12% (doze por cento) da arrecadação no custeio das ações e serviços públicos de saúde, na forma do artigo 198, parágrafo 2º, inciso II da CF/88 e artigo 6º da Lei Complementar 141/2012. Além disso, outro agravante é a contabilização, naquele percentual, de despesas fora dos limites estabelecidos para as Ações e Serviços Públicos de Saúde, prática essa que vem se repetindo ao longo dos últimos exercícios. Por estas razões, encaminhada notícia de fato para o Ministério Público do Estado do RS (NF 00001.000.203/2024).
Nesse sentido, observações do próprio TCE no relatório prévio do exercício de 2021, analisado na sessão do Tribunal de Contas em agosto de 2023 (disponível em: https://tcers.tc.br/repo/parecer_previo/pp_2021.pdf): “Com base na Despesa Liquidada total do exercício, chega-se ao montante de R$ 4,34 bilhões, correspondendo a 9,62% da Receita Líquida de Impostos e Transferências – RLIT (R$ 42,07 bilhões), não tendo atingido o percentual mínimo de 12% exigido pela Emenda à Constituição Federal nº 29/2000, inferior, portanto, em 2,38 pontos percentuais.” Além do Parecer nº 10874/2022, o Ministério Público de Contas do Estado do Rio Grande do Sul assentou que: “45) Descumprimento do disposto na Emenda Constitucional Federal nº 29/2000, que estabelece a aplicação mínima de 12% da Receita Líquida de Impostos e Transferências – RLIT – em Ações e Serviços Públicos de Saúde – ASPS, ante a apuração de dispêndios no montante de R$ 4,34 bilhões, correspondentes a 9,62% da RLIT […] No entanto, a não apresentação de plano de ação voltado a confirmar o incremento gradativo do índice de aplicação, permanece a constituir fator que corrobora a desaprovação das presentes contas.”
Sendo assim, o setor de saúde, que já é considerado crítico por contar com poucos recursos aplicados, poderá ter sua situação agravada, certamente abrindo espaço para mais precarização e desregulamentação do emprego, deterioração das condições do trabalho, ampliação das jornadas de trabalho e redução dos salários. Ou seja, uma crescente desproteção social aliada ao desemprego. Cenário esse, agravado com a aprovação da Reforma Trabalhista de 2017, que reduziu direitos e buscou enfraquecer a organização e representação dos trabalhadores, atacando os sindicatos profissionais. Soma-se a isso o fato do Estado ter deixado de assumir sua responsabilidade enquanto gestor e financiador da saúde, o que faz com que o SUS dispute com o setor privado as políticas públicas de saúde no Brasil.
Nesse contexto, a precarização tem acontecido de várias formas, mas principalmente pelos contratos firmados entre os entes públicos e o chamado terceiro setor, para a oferta de serviços e a gestão do trabalho no SUS (em substituição ao Estado), e pela regulamentação das Organizações Sociais (OS) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), as quais contribuem para a terceirização da força de trabalho na saúde. E, na mesma linha, as Fundações Estatais de Direito Privado (FEDP), que mesmo contratando de forma direta, seguem as regras do setor privado. Soma-se a isso a destruição das carreiras do Estado, bem como as restrições fiscais, que não são de hoje, e podem ser exemplificadas pela Lei Camata, datada de 1995, a qual disciplina os limites das despesas com o funcionalismo público.
Sobre esta problemática da “mercantilização da saúde”, há um interessante artigo de Márcia Valéria Guimarães Cardoso Morosini, intitulado “Precarização do Trabalho: particularidades no setor saúde brasileiro” (https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00131). A autora refere que “cada vez mais difundidas e preconizadas como medidas de racionalização dos recursos, saneadoras e otimizadoras do trabalho, as novas formas de gestão incidem sobre o processo de trabalho em saúde, promovendo mudanças no conteúdo e na forma do trabalho, tendendo à sua simplificação e instrumentalização, à quebra das relações de confiança, à instauração de processos de competição e produtividade, em detrimento da solidariedade entre os trabalhadores.(…) Tensões que podem ser sintetizadas no conflito inexorável entre a compreensão da saúde como um bem coletivo, integralmente atendido por políticas e serviços públicos, e a saúde tomada como uma mercadoria, segmentada segundo os objetivos de acumulação do capital e acessada conforme o poder de compra dos diferentes estratos da população (classes e frações de classe)”.
A “mercantilização da saúde” tem deixado marcas na saúde dos trabalhadores dos hospitais brasileiros, inclusive do Estado do RS, resultando em flagrantes condições de trabalho inadequadas e relevantes incidências de doenças infecciosas e crônicas, evidenciadas nas altas taxas de acidentes de trabalho. Isso porque esses trabalhadores estão expostos a diversos fatores de risco, tais como: agentes físicos, químicos e biológicos; carga física e mental excessiva; ambiente extremamente hierarquizado; e assédio moral. Além disso, outros elementos do contrato de trabalho também servem como fatores de risco: as extensas jornadas; o horário noturno que gera dupla jornada, principalmente das trabalhadoras do sexo feminino; a baixa remuneração; e a necessidade de mais de um vínculo de emprego.
Segundo dados do Anuário Estatístico da Previdência Social, em 2021 foram computados 59.960 acidentes típicos no ramo da saúde e assistência social, de um total de 84.780 ocorrências. No entanto, mesmo diante dos altos índices registrados, tais dados ainda estão subestimados, principalmente pela falta de diagnósticos e omissão na notificação e na efetivação da CAT por parte das empresas. Há estudos que dizem que os dados estatísticos de hoje representam menos de 10% da situação vivida pelos trabalhadores, o que não é improvável, visto que os dados são elaborados de acordo com o número de comunicações de acidente de trabalho expedidas. Esta informação deficitária contribui para a falta de caracterização de determinado acidente ou doença ocupacional como decorrente do trabalho.
Constata-se, também, que a única forma de mudança dessa realidade é o reconhecimento da importância do trabalho dos profissionais de saúde. Tal reconhecimento deveria resultar em melhor remuneração dos trabalhadores, como por exemplo, com a observância da Lei 14.434/2022, que estipulou o Piso da Enfermagem. No entanto, o que seria uma vitória para cerca de três milhões de profissionais de enfermagem do país, tomou outro caminho com os últimos julgamentos do STF. O reconhecimento também deveria ser convertido em medidas preventivas com maior controle dos fatores de risco; ampliação do número de folgas mensais; aumento do número de profissionais para não haver sobrecarga de trabalho nas folgas; multas mais pesadas pela não declaração por parte da empresa de acidente de trabalho ou doença ocupacional; SESMT’s com participação efetiva dos sindicatos e fiscalizados pelos órgãos de saúde pública competentes; análise mais aprofundada por parte do INSS de doenças psicológicas, com o intuito de caracterizar aquelas decorrentes do trabalho; e condenações mais pesadas no caso de ocorrência de acidente do trabalho, por óbvio, levando-se em conta a gravidade da lesão e seqüelas resultantes, com o objetivo de estimular as empresas a adotarem medidas preventivas e a respeitarem as normas de segurança do trabalho. Além disso, deveria ser atribuída maior relevância (ilícito penal) ao art. 19, § 2º da lei 8213/91, que indica que “Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a empresa de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho”.
Portanto, a luta por melhores condições de trabalho deve ser prioridade não somente para a categoria, mas para as autoridades públicas, entidades sindicais e todos aqueles que esperam um atendimento com qualidade nas unidades de saúde, o que depende de trabalhadores em condições de oferecer tais cuidados. E tal questão é ainda mais relevante em um setor no qual o trabalho não pode ser automatizado, uma vez que o fator humano é imprescindível na área de saúde. Que consigamos contribuir para barrar os anseios capitalistas por lucro, para que a vida humana não se transforme em objeto de mercado!
Samara Ferrazza é advogada atuante na área de Direito Trabalhista e Sindical e pós-graduada em Relações de Trabalho pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS (2010).