Gláucia Campregher
O dilema de que fala o documentário de 2020 “O dilema das redes” (The Social Dilemma, no original) de Jeff Orlowski, a meu ver, não existe mais. Não há mais sequer uma vaga esperança de que a internet volte a significar preponderantemente uma força progressista como foi um dia. Pior, quando o dispositivo principal de acesso à internet, e às redes pseudo-sociais, passou a ser o celular, nos tornamos presa fácil do nosso próprio processo de esterilização. A levar em consideração o documentário em questão, não só eu penso assim, mas muitos e muitos homens e mulheres brilhantes, empresários inovadores, programadores, engenheiros, etc. diretamente responsáveis pelas “novas tecnologias da informação” que hoje se assustam ao verem, a si e a seus filhos, passivamente submetidos à Matrix que ajudaram a criar. Curioso é que sou mais otimista que todos eles, porque, a meu ver, há um dilema outro, mais antigo e poderoso que pode dar em desfecho diverso. Este diz respeito aos processos de coletivização e de individualização que vêm de muito antes, e persiste ainda de fora, das redes.
Creio que fica claro no documentário que não há mais dilema acerca do papel progressivo ou regressivo das novas tecnologias da informação. A coisa já foi mais longe do que alertava Edward Tufte, citado no filme, quando disse que só “duas indústrias chamam consumidores de usuários, drogas e softwares”. Um usuário de drogas pode consumir-se até a morte usando certos entorpecentes pesados, mas não é ele mesmo usado no processo. Nosso vício nos torna mais pilhas humanas eficientes do que drogados inúteis. Como mostrado no documentário, os desenvolvedores de softwares, ingenua ou propositalmente, desenvolveram também um modelo de negócios onde nossa atenção gera informação altamente vendável. Nosso vício gera valor! Mesmo zumbizados, fornecemos algo. E algo que potencializa nosso esvaziamento como pessoas, livres, potentes, criativas, vivas.
Não foi assim desde o início. No início web era sinônimo de hiper conectividade, e as telas um meio necessário para aproximar pessoas que, então, sairiam da frente delas. Era assim quando tudo era aberto, distribuído. Nesse tempo a internet foi uma construção coletiva que beneficiava o coletivo dos cidadãos, uma terra de ninguém que por isso mesmo era de todos. Deveríamos ter desconfiado que aconteceria com os softwares, os dados e as informações que os alimentam, o mesmo que aconteceu com a terra e o trabalho quando se tornaram mercadorias. O quê? Uma série de processos econômicos e também extra-econômicos – onde tem lugar o uso da força, menos ou mais violenta, de que os detentores do poder nunca abrem mão por completo – conduzindo uma desapropriação crescente dos indivíduos daquilo que antes era comunal. Saberíamos que, do mesmo modo como um dia artesãos e camponeses deixaram de poder fazer eles mesmos sua comida, mobiliário e vestimenta – porque perderam a posse dos rios, terras, árvores, ferramentas e, por fim, o conhecimento para tanto -, perderíamos também a capacidade de nos conectarmos, de paquerarmos, ou de fazermos política – ao perdermos a posse do que restou, o que pensamos, gostamos ou odiamos, o que sabemos sobre nós.
Devo esclarecer aqui que nem toda forma de desapropriação individual é negativa. No capitalismo, ao mesmo tempo que a burguesia desapropria os indivíduos da posse dos meios de produção, os torna também parte de um fantástico e poderoso “exército”, um que não se dedica à destruição, mas à produção. Por isso Marx fala no Manifesto Comunista que o Capitalismo libera o trabalho de seus grilhões. Isso ocorre porque, diferentemente do passado, a coletivização se torna norma, o trabalho coletivo uma potência criadora sem limites (o único limite sendo a capacidade de apropriação limitada devido ao assalariamento). Não é algo necessário para construir uma pirâmide, ou desviar o curso de um rio, ou mesmo para fazer as plantações e as colheitas no tempo na natureza, é algo cotidiano, em tudo e quanto é lugar onde se produza algo para o mercado. Esse poder do coletivo é tão forte que Marx imaginou que ele transcenderia o local de trabalho. Isso não ocorreu contudo… Até aqui o capital, na figura dos seus proprietários burgueses, tem sido bem-sucedido em tornar sua a consciência desse poder. Para manter privados os ganhos materiais sobre os resultados da produção coletiva, é hoje, mais do que nunca, fundamental fragmentar ao máximo as consciências individuais.
De fato, em diversas formações sociais anteriores os de cima tiveram de cuidar para que a coletivização que vez por outra tinha lugar não desse em união duradoura, ou seja, em força política a lhes confrontar. Em todas as sociedades, há que cuidar para que, fora do local onde os indivíduos se tornam um só corpo, haja algo que os distraia do seu poder. Todo discurso de união dos de baixo, político ou religioso, tem de ser combatido ou cooptado. E a distração da atenção se mostrou, desde sempre, a melhor forma de dissuasão. O diferente no capitalismo é que se a coletivização virou cotidiana, a distração também tem de sê-lo. O que ocorre no capitalismo é que Ela não opera nos momentos críticos, mas o tempo todo. Por isso, antes das telas hipnotizadoras dos computadores e celulares, tivemos o rádio e a televisão dentro dos lares, e antes deles, fora das casas, os altares, os corais e os vitrais das igrejas. Os profetas, padres e pastores vieram antes dos âncoras e dos influenciadores. Todos estes meios são fortes e belos, pois carregam a autoridade do todo, que é mais que a soma das partes, e não deixam claro que estão a serviço de uma delas. Seu poder é tamanho que, mesmo quando usados para socializar mensagens emancipadoras, de difusão de ideias de união, frequentemente promovem centralização do poder de alguns e a inação de muitos. Por óbvio, controlá-los é fundamental.
Dito isso, onde mora meu otimismo? Do fato de que em algum momento vai ficar evidente, para um número significativo de pessoas nas camadas altas e baixas, que a privatização continuada dos ganhos da coletivização alienada de si está colocando a todos em risco. Ou seja, as ideologias, e tecnologias que as espalham, de super individualismo estão implodindo o próprio indivíduo. Se isso pouco importa quando se trata de um peão de fábrica, de resto tornado desnecessário, importa, sim, quando atinge gente que ainda importa para gerenciar o conjunto do sistema. Além disso, os do topo da escala social também podem estar adoecendo, como mostra bem o nosso documentário… De fato, se o risco do desemprego não assusta a todos, se nem mesmo o risco de destruição do planeta assusta o suficiente, quero crer que o risco de esvaziamento das capacidades intelectuais e sociais assusta de verdade os do topo da escala social. Não à toa a proibição de celulares nas salas de aula começou nos países mais ricos como a Finlândia, Noruega, Suécia, e Holanda. Mas bem, já está sendo implementada e/ou discutida em outros tantos, como França, Itália, Portugal, Inglaterra e em muitos estados norte-americanos[1].
Espero que o vício nas telas – e os efeitos que causam como o hiper consumismo, o hiper radicalismo tolo (da lacração e não argumentação), as doenças psíquicas da depressão e da ansiedade, e as doenças sociais que levam ao comportamento de manada e de carência de líderes (via de regra autoritários e fascistas), continue a assustar não apenas os jovens e novos sócios dos donos do poder, como vimos no filme, mas os que estão aí desde que se estabeleceu o capitalismo mundo afora. Que estes tenham cada vez mais diante de si o seguinte dilema – vale a pena correr o risco de enfraquecer os dominadores para manter a dominação?
Nota