Cuidar de uma criança requer muitas coisas: vontade, dinheiro, carinho, paciência e, sobretudo, tempo. Apesar da constituição brasileira garantir direitos trabalhistas e de auxílio a famílias, a realidade é diferente. Hoje a licença paternidade permite apenas 5 dias de recesso remunerado do trabalho, o que é insuficiente para realizar as várias atividades de cuidado com crianças, especialmente de recém nascidos.
Há uma perspectiva de mudança com o Projeto de Lei 3.773/2023, que propõe a ampliação da licença paternidade para 60 dias, além de permitir a troca entre pais e mães de uso das licenças e atualizar leis relacionadas, como o Programa Empresa Cidadã, que já estende hoje em mais 15 dias a licença para pais. O PL foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) em julho deste ano e segue no processo de análise de outras comissões do congresso. A medida é bem avaliada por especialistas e ativistas da área do direito familiar, mas ainda levanta questões quanto ao impacto econômico e social que pode causar, e revela a passividade em relação à igualdade de gênero no mercado de trabalho.
A legislação atual da licença paternidade e possíveis mudanças
A Constituição de 1988 determinou que a licença paternidade deveria ser regulamentada pelo congresso nacional e, até isso ser feito, o período de recesso seria de 5 dias. Mais de três décadas depois, a pauta não foi votada, o que levou à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 20 que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro do ano passado. A ADO determina que o congresso brasileiro deve editar a lei em até 18 meses ou a pauta será determinada pelo STF. A decisão pode colocar uma pressão adicional sobre os legisladores para avançar com o projeto, porém, com a falta de clareza em quais serão as consequências da ADO, não é garantido que a regulamentação seja aprovada ao final do prazo.
Já o projeto de lei atual surge em agosto de 2023, mas ele é consequência de anos de trabalho de organizações da sociedade civil em defesa dos direitos da família. Segundo Rodolfo Canônico, diretor da ONG Family Talks, a discussão no congresso se deu desde 2020, quando foi realizado um Grupo de Trabalho (GT) sobre licença parental que seria um direito trabalhista para que pais e mães pudessem ter o tempo necessário para criação de seus filhos, e abrange todas as licenças mais conhecidas – maternal, paternal e de adoção. Esse tipo de direito já é garantido em alguns países europeus, como Portugal, e na América Latina apenas o Chile possui uma política similar.
A licença parental é recomendada e bastante discutida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), porém um dos problemas encontrados pelo GT de 2020 foi o desconhecimento tanto da população quanto dos parlamentares para tal política. Vários projetos de lei foram criados ao longo dos anos para expandir ou atualizar estas licenças, porém nenhum está ativamente em trâmite como o PL 3773. Com isso, o foco de trabalho de ONGs da causa passou a ser a licença paternidade, contribuindo para a criação da Coalização Licença Paternidade (CoPai), que une diversas ONGs de direito da família e equidade de gênero. Segundo Canônico, expandir a licença dos pais pode ser uma porta de entrada para expandir o tempo de recesso para pais e mães no futuro e incentivar o trabalho do cuidado em homens, pois, segundo ele, “igualdade de gênero no mercado de trabalho é ter igualdade no cuidado da família.”
Uma das modificações realizadas no projeto original foi o escalonamento do prazo de ampliação da licença-paternidade. Na proposta inicial do senador Jorge Kajuru (PSB-GO), o período de licença dos pais seria equiparado ao das mães, com 120 dias, e poderia ser compartilhado entre os genitores conforme sua preferência, inclusive de maneira simultânea. No entanto, a relatora do projeto, senadora Damares Alves (Republicanos-DF), ajustou o texto para implementar a extensão de forma gradual. Agora, o projeto prevê que a licença-paternidade aumente progressivamente: 30 dias nos dois primeiros anos de vigência da lei, 45 dias no terceiro e quarto anos, e, finalmente, 60 dias após o quarto ano. Segundo ela, o aumento gradual tem como objetivo minimizar o impacto financeiro para o Estado. “Muitos [empresas/Estado] apoiam assistência social e garantia de direitos, mas poucos querem pagar por isso”, avalia Rodolfo Canônico em relação à modificação e como vários projetos sociais sofrem impasse ou alterações por causa de questões econômicas.
Os desafios e oportunidades da ampliação da licença-paternidade
Ronner Botelho, advogado e consultor jurídico do Instituto Brasileiro da Família (IBDFAM), enxerga a proposta de ampliação da licença-paternidade para até 60 dias como uma oportunidade de equilibrar a divisão das tarefas no âmbito familiar, contribuindo para a igualdade de gênero. “A ampliação da licença-paternidade não é apenas uma questão de tempo, mas de redefinir o papel dos pais na família”, afirma. Ele também destaca que a possibilidade de parcelamento da licença em dois períodos é uma inovação que pode impactar positivamente a dinâmica familiar, permitindo que os pais estejam mais presentes em diferentes fases do desenvolvimento da criança, e facilitando o retorno da mulher ao mercado de trabalho.
Fora as obrigações trabalhistas já garantidas por lei, também há o programa Empresa Cidadã que, desde 2016, permite um acréscimo em 15 dias na licença paternidade e 60 dias na licença maternidade, e com a nova lei o período para os pais pode chegar a 75 dias no futuro. Hoje qualquer empresa pode aderir ao programa, porém o incentivo fiscal de redução de impostos é apenas para as que se enquadram no regime de lucro real, ou seja, empresas de grande porte. Mesmo com este corte, isso representaria 160.000 empresas aptas a estender licenças, mas apenas 14% delas fazem parte do programa, segundo pesquisa realizada pela Family Talks em 2022.
Outro desafio relacionado à licença são os impactos econômicos e a garantia dos direitos trabalhistas. Botelho aponta a necessidade de assegurar a proteção contra a demissão para trabalhadores que optarem por usufruir da licença ampliada. Ele acredita que essa “blindagem” é essencial para garantir a segurança jurídica e a efetividade dos direitos dos pais e das crianças. Além disso, ele destaca a importância de considerar o impacto econômico e social das mudanças propostas, sugerindo que o escalonamento da licença, conforme previsto no projeto de lei, pode ser uma forma de equilibrar esses impactos com os direitos das famílias.
Fonte: Humanista
Texto: Melga Marçal
Data original da publicação: 09/08/2024