Jornada de trabalho na escala 6×1: a insustentabilidade dos argumentos econômicos e uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras

semana de trabalho, tempo
Ilustração: Freepik

A forte adesão à proposta de acabar a jornada 6×1 é um grito de socorro contra a subordinação do tempo da vida somente ao trabalho, com escalas que desorganizam a vida, com baixos rendimentos e ausência de oportunidades de trabalho.

Pietro Borsari, Ezequiela Scapini, José Dari Krein e Marcelo Manzano

Fonte: Cesit
Data original da publicação: 16/11/2024

O Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) do Instituto de Economia da Unicamp divulgou o estudo “Jornada de trabalho na escala 6×1: a insustentabilidade dos argumentos econômicos e uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras”, de Pietro Borsari, Ezequiela Scapini, José Dari Krein e Marcelo Manzano. O trabalho destaca o crescente movimento social pelo fim da jornada 6×1, que tem mobilizado trabalhadores e trabalhadoras insatisfeitos com condições de trabalho precárias e jornadas exaustivas.

O estudo pode ser acessado no seu formato original, em pdf, no site do Cesit ou lido a seguir.

O texto da PEC que busca alterar a jornada de trabalho pode ser acessado aqui.

Na última semana a bandeira pelo fim da jornada de trabalho 6×1 retornou à agenda pública brasileira. A pauta, que tomou muito setores da esquerda de surpresa, tem atraído milhares de trabalhadores e trabalhadoras que veem suas vidas sufocadas pela jornada extenuante e por condições de trabalho cada vez mais precárias. Não são poucos os relatos nas redes sociais de sobrecarga e assédio no âmbito de trabalho e só a petição pública feita pelo Movimento Vida Além do Trabalho (VAT) já conta com mais de 2 milhões de assinaturas.

A forte adesão à proposta de acabar a jornada 6×1 e reduzir a jornada é um grito de socorro contra a subordinação do tempo da vida somente ao trabalho, com escalas que desorganizam a vida, com baixos rendimentos e ausência de oportunidades de trabalho. O grito é tão forte que sensibiliza grande parte da sociedade, especialmente, a juventude que busca ter horizontes mais promissores para a sua vida. A vida não é só trabalho. Pelo contrário, o trabalho precisa proporcionar as condições para as pessoas viverem ela em todas as suas dimensões. Mesmo quem trabalha na jornada “padrão” 5×2 está cansado o suficiente para saber que deve ser desumano trabalhar seis dias e folgar um, que nem sempre coincide com o domingo. O fim de semana de dois dias é curto e passa rápido – mal se descansou e o final de domingo se apresenta angustiante com o retorno ao trabalho na manhã seguinte. Na 6×1 não há fim de semana, há um respiro breve entre outros seis dias de trabalho.

As pessoas querem viver além do trabalho

A onda de protestos na sociedade contra a jornada 6×1 expressa um descontentamento mais amplo das pessoas com o mundo do trabalho.O sentimento é que se trabalha muito, se recebe insatisfatoriamente e resta pouco tempo para o descanso, o ócio, o lazer, a sociabilidade com a família e os amigos, o estudo, o cuidado com a saúde física e mental, a vida sexual e outras tantas dimensões que compõem o ser humano para além do trabalho. Ecoa-se o grito desesperado de quem percebe que sua vida está toda em função do trabalho e da reprodução social, ao passo que as coisas que importam são postas em segundo plano. Não há dúvida que o trabalho é um eixo estruturante da vida social. O problema não é trabalhar, mas somente trabalhar e entrar em uma dinâmica de luta pela sobrevivência que não lhe permite viver. Vale lembrar que a média salarial no Brasil, ainda que tenha tido um crescimento anual de 4%, é de R$ 3.222,00, segundo dados da PNAD (abril, 2024), e que 53 milhões de brasileiros necessitam uma ocupação ou uma ocupação melhor, somando desocupados, desalentados, pessoas sem condições de trabalhar mas que gostariam, trabalhadores sem carteira assinada ou que estão em busca de  estratégias de sobrevivência. Ainda, possuir um trabalho formal não é garantia de que se tenha um trabalho não precário.

A juventude tem encontrado um mundo do trabalho que lhe parece insuportável, para o qual está levantando sua voz e dizendo: isso não é vida. Ainda que a atenção no último período tenha se dado aos chamados “jovens sem-sem” (sem estudo e sem trabalho), o que corresponde a 25% dos jovens brasileiros, há hoje 70% de jovens inseridos no mercado de trabalho. Não à toa o movimento VAT é encabeçado por jovens, a exemplo do seu principal expoente Rick Azevedo. A promessa de que a educação lhes salvaria tem resultado em frustração para muitos, apesar de ter  níveis de escolaridade superiores aos de seus pais não tem garantido uma vida melhor. Aproximadamente 15% dos jovens que se formaram no ensino superior conseguem emprego na sua área de formação (NUBE, 2020). Há ainda uma grande frustração com o que se encontra no mercado de trabalho, que não somente é incapaz de proporcionar recompensas financeiras satisfatórias como oferece ocupações em que as pessoas não se realizam.

Nesse sentido, mais que uma crítica pontual ao regime de jornada trabalho seis por um, há uma manifestação social latente sobre as relações com o trabalho e as condições em que se trabalha. O nível de adoecimento psíquico decorrente do trabalho é alarmante e atinge toda a classe trabalhadora. Só em 2022, segundo o INSS, mais de 209 mil pessoas  foram afastadas do trabalho por transtornos mentais em nosso país. Reproduz-se uma sociedade adoentada, com jornadas exaustivas, assédios de diferentes natureza, pressões por resultados crescentes, insegurança financeira e a convivência com o medo permanente de perder o emprego. Para a OIT (2022), houve um aumento significativo no número de pessoas com algum problema de saúde mental, com um total de 13% de pessoas em 2019 em nível mundial e, estima-se, que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos devido a esse tipo de problema, custando ao redor de um trilhão de dólares à economia. Há uma relação direta entre jornadas extenuantes e adoecimento físico e mental do trabalhador.

Quanto à juventude, segundo o Dossiê da Fiocruz de 2024, Panorama da situação de saúde de jovens brasileiros, entre 2016 e 2022 , identificou-se que a taxa de acidente de trabalho foi maior entre os jovens em comparação com as demais faixas etárias – 219,78 casos para jovens de 20 a 24 anos, 209,44 no caso de jovens de 25 a 29 anos, ambos calculados  por 100.000 habitantes -, indicando uma maior exposição dos jovens ao acidente de trabalho, tendo como causa primeira as circunstâncias relativas às condições de trabalho. Os grupos profissionais mais notificados entre os jovens foram os trabalhadores da produção de bens e serviços industriais e os inseridos nas atividades de serviço, vendedores do comércio em lojas e mercados. Além disso, na última Conferência da Juventude em 2023, o tema da saúde mental foi o mais lembrado, recebendo 41% das propostas para resolução do problema. Não à toa, já que 8 a cada 10 jovens entre 15 e 29 anos apresentaram algum transtorno de saúde mental em 2022. Para a Fiocruz, o número de notificações de jovens com transtorno mental relativo ao trabalho é maior entre os jovens de 25 a 29 anos com prevalência do sexo feminino. As principais causas são estresse pós-traumático, transtornos de adaptação, transtorno misto ansioso e depressivo e ansiedade generalizada.  Em síntese, é um quadro assustador para o futuro do país.

A jornada 6×1 é apenas parte do problema. Não obstante, seu enfrentamento tem o potencial de mobilizar pautas historicamente centrais das lutas dos movimentos dos trabalhadores. Revogar a jornada 6×1 parece um passo importante na direção da redução da jornada de trabalho em geral – nunca é demais lembrar que as 44 horas por semana (acrescidas das horas extras) foram instituídas há 36 anos na Constituição Federal de 1988 e que o Brasil está bastante defasado frente experiências bem-sucedidas de implementação de jornadas laborais abaixo das 40 horas semanais em diversos países, tais como as experiências recentes de instituição de jornadas de quatro dias na Islândia, na Alemanha, na França, na Inglaterra, na Bélgica, nos Emirados Árabes, entre outros [2].

Vale também lembrar que uma parte significativa dos trabalhadores brasileiros não tem acesso aos direitos do trabalho, muitas vezes trabalhando numa escala 7×0, isto é, sete dias de trabalho sem descanso, a exemplo de muitos trabalhadores informais, por conta própria e de empresas de plataformas digitais – atualmente cerca de 40% dos trabalhadores estão na informalidade, traço histórico da formação do nosso mercado de trabalho. Com um excedente estrutural de força de trabalho que se manteve durante o processo de industrialização e da expansão do assalariamento, o nosso passado escravocrata legou à população negra, especialmente às mulheres, os trabalhos mais precários, com os piores salários e as piores condições laborais. Em um mercado de trabalho heterogêneo e marcado pela desigualdade, a informalidade e a precariedade não são específicas de um ou outro momento, mas marcas estruturais que se acentuaram no período neoliberal.

O falacioso argumento econômico

Os principais argumentos daqueles que se posicionam contrariamente ao fim da jornada na escala 6×1 são de natureza econômica – o que por si só é um fato interessante, pois no campo da sociabilidade, da autonomia humana e da saúde física e mental não há margem para dúvida: a escala 6×1 é péssima. A síntese do argumento econômico é que eliminar a possibilidade de escala 6×1 teria por efeito a redução de empregos e o aumento de custos para os negócios e, portanto, aumento de preços para os consumidores e prejuízo para as empresas. Os defensores da manutenção atual fazem “terrorismo” ao dizer que a simples aprovação da proposta seria ruim para o conjunto da economia, com perda de competitividade (e falência) das empresas, gerando aumento do desemprego.

Trata-se de um argumento recorrente, utilizado em outros momentos históricos para alarmar a sociedade que a introdução de um direito ou proteção social quebraria a economia e o país – foi assim quando da implementação do 13º salário ou do salário mínimo. Para exemplificar, se o governo brasileiro tivesse ouvido os economistas hegemônicos (neoclássicos), a grande mídia e os setores empresariais, não teria instituído a política de valorização do salário mínimo em 2004 em diante. Os argumentos hegemônicos apontavam que a elevação do salário mínimo geraria inflação, desemprego, informalidade e um imenso déficit nas contas públicas. Todos sabemos que os resultados não foram os previstos, pelo contrário, é incontestável que o salário mínimo teve efeitos muito positivos sobre a economia e uma melhora do bem estar de muita gente.

O fato é que o custo do trabalho é baixo no Brasil e não representa uma ameaça à competitividade das empresas. Entre 2012 e 2019, o custo unitário do trabalho na indústria teve tendência de queda. Em 2019 a queda foi de 3,6%, sendo o terceiro país com maior redução, atrás da Argentina e da França em primeiro e segundo lugar. Segundo a Confederação das Indústrias (2020), o principal fator para a queda do custo do trabalho foi o aumento da produtividade, cujo crescimento médio foi de 2,9%, somado à queda do salário real em 1,3%.

Na comparação do salário mínimo no plano internacional, segundo levantamento da OCDE em 2021, considerando seus países integrantes mais Brasil e Rússia, o valor da hora trabalhada foi de US$5,2 para o Brasil, deixando o país na 30° posição, a frente somente do México, cujo valor/hora trabalho é de US$ 3,3. Em primeiro lugar com o melhor valor/hora trabalho está Luxemburgo com US$27,7, seguido de Holanda com US$26,2 e Austrália com US$25,2.

Por outro lado, o Brasil possui uma das mais altas jornadas anuais do mundo. Segundo levantamento da OCDE (2022), o Brasil ocupa a 4° posição de 46 países considerados, com uma média anual de 1936 horas trabalhadas. Em primeiro lugar está o México com 2128 horas, seguido de Costa Rica com 2073 horas e, em terceiro lugar, Colômbia com 1964 horas anuais. Recordar-se que, durante o discurso de posse da presidenta do México, Claudia Scheinbaum, em outubro de 2024, a nova mandatária apontou como promessa do governo a redução da jornada de trabalho de 48 horas semanais para 40 horas. Já os países com a menor média anual são Alemanha em primeiro lugar com 1349 horas anuais, seguido de Dinamarca com 1363 horas e Luxemburgo com 1382 horas.

O importante é enfatizar que a redução da jornada de trabalho é uma demanda elementar dos trabalhadores no capitalismo, uma vez que os ganhos de produtividade decorrentes dos avanços tecnológicos, de processos e de gestão permitem se produzir cada vez mais com menos trabalho. Reduzir a jornada de trabalho com preservação dos salários é uma forma de distribuir esses ganhos de produtividade construídos pela coletividade.

O fim da escala 6×1 e a adequação dos negócios à nova realidade

A benéfica extinção da jornada 6×1 produziria efeitos modestos e diferenciados entre as empresas, conforme o setor de atividade, a estrutura de mercado e o porte do negócio. Em todo caso, as empresas se adequariam à nova realidade e essa excrescência que pesa sobre os ombros de milhões de trabalhadores deixaria de ser prevista na lei.

Para a economia como um todo, nada mudaria significativamente. Embora a alteração dos custos das empresas e o repasse para os preços dependam de muitos fatores, qualquer impacto seria pontual – once and for all, isto é, caso ocorra um aumento de preços em determinados bens e serviço, esse aumento não se repetirá, pois no momento seguinte a legislação será a mesma e, portanto, os custos também.

A elevação dos custos somente ocorreria simultaneamente ao aumento do nível de emprego, na medida em que os negócios que utilizam a escala 6×1 decidam contratar novos trabalhadores para suprir a ausência de força de trabalho ocasionada pela transição para outras escalas, como a 5×2 ou até mesmo a 4×3. Vale notar que, se isso acontecer, haveria um duplo benefício social: menos trabalhadores em jornadas degradantes e o aumento dos postos de trabalho. Portanto, o aumento de custos, por um lado, poderia produzir efeitos compensatórios na economia como um todo em virtude do aumento da massa salarial – mais gente trabalhando e proporcionando maior dinamismo econômico.

Como indicado, o repasse de custos para os preços depende de muitos fatores e pode variar significativamente de acordo com o segmento de atividade, a concorrência e a estrutura de mercado. Em mercados muito competitivos, como bares e restaurantes em grandes centros urbanos, o movimento dos preços deverá acompanhar a dinâmica de acomodação das novas escalas de trabalho. Certamente uma parte dos estabelecimentos buscará absorver a mudança legal sem novas contratações de trabalhadores, sem que os custos sejam impactados nesse caso. E, outra parte, que considera lucrativo manter o mesmo padrão de funcionamento do estabelecimento, poderá ampliar as vagas, incorrendo em algum aumento de custos, mas que se justificaria pelo volume de vendas – caso contrário não haveria contratação adicional. Ao mesmo tempo, com mais tempo livre para as pessoas, as atividades de lazer e cultura podem aumentar, o que traria mais clientes. Por outro lado, em mercados dominados por redes de grandes empresas, como os supermercados e farmácias, os novos custos associados à eliminação da jornada 6×1 podem ser absorvidos por esses negócios, de modo a produzir diferentes combinações entre redução marginal da taxa de lucro e aumento marginal nos preços dos bens e serviços vendidos.

Esses seriam os efeitos econômicos mais gerais que poderiam ser esperados com o fim da jornada na escala 6×1. Mas a realidade pode variar entre indústria, comércio e serviço; entre pequena, média e grande empresa. A esse respeito, faremos alguns apontamentos, destacando que a mudança é benéfica em todos os sentidos para os trabalhadores e trabalhadoras, e em nada impactaria negativamente a vida social – ao contrário. Assim como pode ser benéfica para economia, com menor nível de absenteísmo, adoecimentos, ganhos de produtividade, com trabalhadores satisfeitos e descansados, maior nível de atividade, pois pode ampliar o consumo.

Os pequenos negócios

A realidade dos pequenos empreendimentos no país é penosa independentemente das possibilidades de jornada de trabalho. De acordo com levantamento do Sebrae a partir dos dados da Receita Federal do Brasil entre 2018 e 2021, 21,6% das microempresas encerraram seus negócios após cinco anos de atividade, sendo essa taxa de mortalidade ligeiramente menor para as empresas de pequeno porte (17%)[3]. Tais dados estão considerando somente os empreendimentos formalizados. Segundo o Sebrae, aponta-se como justificativa o pouco preparo pessoal, dado que é pequeno o número de pessoas que passaram por algum tipo de capacitação; o planejamento deficiente do negócio, dado que 17% dizem não ter feito nenhum planejamento e 59% dizem ter feito para no máximo 6 meses; assim como uma gestão deficiente. Esses fatores se associam à baixa produtividade que caracteriza a dinâmica dos pequenos negócios no país, que operam com reduzida intensidade de capital (tecnologia, máquinas e equipamentos). Alterações nas possibilidades de jornada de trabalho dos empregados não seriam determinantes para modificar a realidade dos pequenos negócios.

Caso um negócio dependa integralmente da jornada 6×1 para se manter lucrativo, ou seja, necessite superexplorar seus trabalhadores para sobreviver, não é exatamente um negócio virtuoso. Cabe pensarmos se desejamos uma sociedade que ratifique nos termos da lei os negócios que impõem jornadas exaustivas aos seus trabalhadores para se manter operante. Mas esse não é o caso predominante. Em geral, ou o pequeno negócio já está na informalidade – isto é, não tem a totalidade de seus empregados com carteira assinada –, ou ele conseguiria reorganizar sua força de trabalho em torno de outros regimes de jornada. Assim, para os negócios que operam na informalidade (com escala 6×1, 7×0, sem direitos trabalhistas etc.), pouco mudaria com o fim da jornada legal 6×1 – eles continuariam superexplorando sua força de trabalho à revelia da lei.

Modificar a jornada de trabalho não é solução econômica para os problemas dos pequenos negócios, mas um avanço em torno de condições mais humanas de trabalho e de possibilidade de uma sociedade mais organizada, além de poder abrir novas oportunidades. Para enfrentar o problema econômico, o fundamental é construirmos um projeto político de desenvolvimento socioeconômico que ofereça melhores condições para aqueles que desejam empreender. Caberia, portanto, elaborar e aprofundar as políticas de democratização do acesso ao crédito, suporte e capacitação para a gestão de negócios, ampliação de programas de compras públicas no âmbito das prefeituras e, sobretudo, um projeto mais amplo de desenvolvimento econômico que coloque a estrutura produtiva do país em melhores condições de geração de postos de trabalho de qualidade, o que por sua vez reverberaria positivamente sobre os pequenos negócios. Os pequenos negócios dependem do nível de renda da sociedade, ou seja, de uma dinâmica econômica com crescimento, visto que salário é renda e esta se converte em consumo.

Médias e grandes empresas: o capital preocupado

Em momentos de questionamentos da exploração, os especialistas e representantes das grandes empresas buscam justificar a manutenção do status quo sob um argumento de perda de competitividade e uma posição oportunista de defesa dos pequenos negócios. Esse fato chama a atenção, pois é sempre em torno da defesa dos “vulneráveis” (pequenos negócios, trabalhadores e consumidores pobres, etc.) que se mobilizam os principais discursos do grande capital. No momento da competição econômica de mercado, os grandes negócios não se importam em quebrar os menores, mas quando os direitos trabalhistas são postos na mesa o que ocorre é uma manipulação oportunística na defesa dos mais vulneráveis.

Os grandes negócios operam com escala elevada, possuem estrutura de custos enxuta, têm poder de negociação com fornecedores, gozam de amplo acesso ao crédito (a despeito da elevadíssima taxa de juros no país), departamentos de contabilidade, marketing, tributos etc. que superam sobremaneira qualquer capacidade de competição dos pequenos negócios. Nos bairros, os pequenos mercadinhos, mercearias, frutarias, farmácias etc. não conseguem competir no preço com as grandes redes. Os que sobrevivem o fazem a duras penas, amparados por uma combinação de elementos que vão desde a clientela fiel ou o serviço diferenciado, até a sonegação de impostos e o não cumprimento das leis trabalhistas. Portanto, o fim da escala 6×1 não é o problema e a dinâmica da concorrência permaneceria a mesma. Melhorar a condição dos pequenos negócios está em outra esfera que não a da redução de direitos trabalhistas, como enfatizamos anteriormente.

Quem está verdadeiramente preocupado com a mudança são as grandes empresas, que operam na legalidade e teriam de se adequar imediatamente aos novos parâmetros de definição da jornada de trabalho. Para essas, todo avanço na legislação trabalhista que possa implicar em redução da lucratividade e de poder sobre a gestão da força de trabalho é um problema.

Apenas três grandes grupos de redes de farmácias detêm 40% do mercado no Brasil[4]: Grupo RD (Raia e Drogasil), Grupo Pague Menos (Pague Menos e Extrafarma) e Grupo DPSP (Pacheco e São Paulo). Em 2023, o faturamento do setor cresceu 13,5%, atingindo R$ 91,3 bilhões[5], liderados pelas grandes redes. Resta pouca dúvida sobre a capacidade financeira dos grandes grupos em absorverem eventuais elevações dos custos com o trabalho decorrentes do fim da exploração ao nível percebido na jornada com escala 6×1. Não obstante, embora o lucro das grandes redes de farmácia possa absorver tais custos, a disputa com o capital nunca é fácil – somente com muita pressão e mobilização social este avanço poderá ser atingido.

O caso das grandes redes de supermercado não é muito diferente. De acordo com a Associação Brasileira de Supermercados, os quinze maiores supermercados faturaram mais de 348 bilhões de reais em 2023[6]. A liderança do ranking é do Carrefour, que faturou R$115,4 bilhões (33% do total), seguido pelo Assaí Atacadista (R$72,7 bilhões) e Mateus Supermercados (R$30,2 bilhões). Juntos, as três redes foram responsáveis por 62,6% do faturamento das grandes redes, o que revela uma certa concentração de mercado no segmento econômico. Novamente, pergunta-se: o fim da escala 6×1 é inviável para esses grupos?

E o trabalhador?

Como visto, não há razões para crer que, por si só, o fim da jornada 6×1 reduziria os empregos, ao contrário, abre-se espaço para eventuais novas contratações que compensam o tempo de trabalho liberado em determinados negócios em que a conta da lucratividade faça sentido econômico e que tem funcionamento nos finais de semana.

Ora, no âmbito individual, caso a escala 6×1 seja abolida, pode haver uma parcela dos trabalhadores cuja renda variável sofreria uma eventual redução – o caso dos trabalhos que incluem comissões por vendas ou recebimento de gorjetas. É verdade que parte dos trabalhadores nessa situação buscaria compensar a redução do rendimento em outros postos de trabalho, sobretudo realizando bicos ou freelancers. Nesse caso, seu rendimento poderia ser preservado ou até mesmo elevado, a depender do trabalho eventual que o trabalhador encontrar.

No entanto, para outra parte dos trabalhadores migrar para uma jornada convencional 5×2 ou até 4×3 pode ser um alívio no sentido de devolver algum controle sobre seu próprio tempo de vida. As pessoas estão exaustas e não querem escolher entre trabalhar muito e não viver, ou trabalhar pouco e não receber o suficiente para gozar de uma vida digna. Elas querem exercer atividades que façam sentido para si e para a comunidade, com alguma autonomia sobre seu tempo, com remunerações compatíveis que lhes permitam uma vida que valha a pena viver. Certamente a existência da jornada 6×1 não contribui em nada nessa direção.

Em relação à dinâmica prática do consumo, a redução na jornada de trabalho não significa que bares, farmácias e supermercados terão necessariamente seu horário de funcionamento diminuído. E, caso isso ocorra pontualmente em determinados segmentos e localidades, observamos que diversos países operam com horários muito mais restritos de funcionamento de mercados e farmácias aos finais de semana, por exemplo, quando comparados com o Brasil. As pessoas deixam de consumir por isso? Não, simplesmente assumem essa condição como um dado – inclusive muito saudável para a estruturação dos tempos de trabalho e de não trabalho da sociedade – e se organizam da mesma forma que o fazem para levar os filhos de segunda à sexta na escola, frequentar cultos e igrejas aos sábados e domingos, entre outras tantas definições do tempo da vida social que organizam a vida dos indivíduos e da coletividade.

Insistimos que não se trata somente da questão econômica. Exagerando no argumento, o que seria mais lucrativo para os negócios do que reduzir a jornada 6×1? Aumentar para 7×0! Então por que isso não ocorre, já que seria mais lucrativo? Porque há limites físicos (capacidade do ser humano aguentar) e éticos (o quanto a sociedade tolera certos parâmetros de exploração). Acontece que a escala 6×1 está adoecendo os trabalhadores de forma mais acelerada que a jornada convencional 5×2, inclusive contribuindo para o aumento. O limite físico já está sendo rompido, porém os trabalhadores adoecidos pelo excesso de trabalho são, via de regra, rapidamente descartados e substituídos por outros, e assim a roda continua a girar.

O que tem sustentado até então a existência da escala 6×1 é o silenciamento da pauta e do sofrimento associado, amparado pela força do empresariado do comércio e de algumas atividades de serviço, que impuseram esse modelo de jornada em seu próprio proveito. Agora estamos assistindo a uma onda de contestação social da 6×1 – sua razoabilidade está sendo questionada pela sociedade. O resultado pode ser um grande marco para a renovação da agenda da classe trabalhadora em torno de pautas poderosas como a da redução da jornada de trabalho.

A necessidade de uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras

As mobilizações pelo fim da jornada 6×1 podem significar o início de um processo que aprofunde a realidade complexa e penosa do mundo do trabalho em que nos encontramos. Não só aprofundar como apresentar mudanças significativas na realidade de milhões de trabalhadores e trabalhadoras, apresentando uma agenda do trabalho que redefina as condições laborais, que abarque todos os trabalhadores sob o leque dos direitos trabalhistas e que ressignifique o que é trabalhar. Por isso, a luta pela redução da jornada 6×1 é só um dos desafios que estão colocados, fazendo-se necessário também considerar ao menos dez pontos essenciais para a construção de uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras:

  • primeiro, que o trabalho possui centralidade na vida das pessoas, ainda que ele tenha passado por reconfigurações e ressignificações profundas;
  • segundo, que as perspectivas neoliberais para resolver o problema do emprego e do trabalho fracassaram. A diminuição e retirada dos direitos do trabalho, a exemplo da Reforma Trabalhista de 2017, e o incentivo ao empreendedorismo comprovadamente acentuaram a precariedade do trabalho;
  • terceiro, que o crescimento econômico é necessário para geração de empregos. Contudo ele, por si só, não resolve o problema do trabalho;
  • quarto, que os postos de trabalho sejam repensados, considerando sua articulação e existência a partir de demandas reais e concretas para atender as necessidades sociais e ambientais contemporâneas;
  • quinto, que o Estado também seja fomentador e garantidor da geração de empregos, dado o problema estrutural tanto da falta de trabalho quanto da falta de trabalhos dignos;
  • sexto, que a luta pelos direitos trabalhistas precisa vir articulada à luta de demais formas formas de discriminação, exclusão e opressão, considerando gênero e raça;
  • sétimo, que a proteção social e a proteção trabalhista abranja todos os trabalhadores, independente da relação de trabalho estabelecida;
  • oitavo, que as instituições públicas responsáveis pela regulação do trabalho sejam fortalecidas e não solapadas, como vem ocorrendo;
  • nono, que a diminuição da jornada de trabalho venha acompanhada de condições mais dignas para os trabalhadores, garantindo tempo para o desenvolvimento de outras dimensões da vida fora do trabalho, fazendo com que o trabalho tenha real sentido e significado, assim como garantia salarial;
  • décimo, que os ganhos de produtividade acumulados ao longo do tempo, fruto de inovações produzidas pelo conjunto dos atores sociais, seja melhor distribuído entre trabalhadores e capitalistas.

Por fim, que se possa viver além do trabalho. Como disse Antonio Candido, “a luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: eu quero aproveitar meu tempo de forma que eu me humanize”. A necessidade de uma agenda humanizadora a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras há muito já está colocada.

Notas

[1] Pesquisadores e pesquisadora do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho).

[2] Como mostra Dal Rosso et al. no livro O futuro é a redução da jornada de trabalho (2022, p. 26): “[…] algumas experiências começam a chamar atenção, tais como na Finlândia (que está experimentando uma jornada de quatro dias por semana e há uma proposta da atual primeira-ministra de instituir no país uma jornada de seis horas diárias); experimentos, ainda que localizados, de redução da jornada de trabalho estão em curso na Bélgica, na Escócia, na Islândia, na Espanha, no Japão, nos Emirados Árabes, entre outros. Na Coréia do Sul, ainda que a jornada permaneça longa, houve uma redução de 6,3 horas por mês a partir de 2019. Na mesma perspectiva, a agenda da redução da jornada de trabalho ganhou visibilidade com a posição do IG Metal da Alemanha a favor da Jornada de Trabalho de 32 horas; o movimento “4dayworkweek” que iniciou na Nova Zelândia e rapidamente teve adesão de empresas nos EUA, Grã-Bretanha, Irlanda e logo depois em muitos outros países, inclusive no Brasil; na Grã- Bretanha, em 2019, o líder do Partido Trabalhista se posicionou favorável a semana de quatro dias sem perdas de salários e, como último destaque, em outubro de 2020, o Comitê Executivo da Confederação Europeia de Sindicatos (CES) sugeriu uma agenda coordenada de negociações para a redução da semana de trabalho sem redução dos salários e medidas para o controle do tempo de trabalho, qualidade de vida no trabalho e garantia de renda em caso de doença”.

[3] Os microempreendedores individuais (MEIs) são os que possuem a maior alta taxa de mortalidade empresarial, com 29% encerrando suas atividades em até cinco anos.

[4] https://medicinasa.com.br/redes-farmacias/

[5] https://gironews.com/farma-cosmeticos/principais-redes-de-farmacias-faturaram-r-913-bilhoes-em-2023-rd-segue-no-topo-do-ranking/

[6] https://exame.com/negocios/quais-sao-os-15-maiores-supermercados-no-brasil-e-quanto-eles-faturam-veja-a-lista

Pietro Borsari é pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit).

Ezequiela Scapini é pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit).

José Dari Krein é pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit).

Marcelo Manzano é pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit).

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