Impactos da jornada reduzida: um olhar feminista sobre o trabalho e uso do tempo

Fotografia: Agência Brasil

A defesa da redução da jornada pode estar associada ao debate mais amplo sobre a distribuição do tempo entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado, além da divisão das responsabilidades familiares entre todos os seus membros.

Rede Brasileira de Economia Feminista (REBEF)

O debate sobre a jornada de trabalho é fundamental para a organização da vida social, pois a distribuição do tempo é um dos problemas centrais de todas as sociedades. Os tempos são constantemente transformados por mudanças econômicas, sociais e culturais, mas essas transformações não ocorrem apenas na esfera produtiva, com o controle da extensão, distribuição e intensidade da jornada de trabalho remunerado. Elas também afetam o trabalho reprodutivo, determinando como mulheres e homens distribuem seu tempo entre essas duas dimensões, que estão intimamente articuladas.

Apesar da grande capacidade do capitalismo de transformar as condições de trabalho, ele não eliminou a necessidade do tempo dedicado à reprodução social de mulheres e homens. A disputa pelo uso do tempo tem sido um dos principais embates da classe trabalhadora ao longo do último século.

Atualmente a constituição federal define o limite máximo para jornada de trabalho de 44 horas semanais, e oito horas por dia. Há possibilidade de realizar horas extraordinárias com pagamento de, no mínimo, 25% a mais do que a hora normal de trabalho, ou realização de banco de horas, mas dentro dos limites de duas horas por dia e 10 horas por semana dentro das 44 horas semanais.

A redução da jornada de trabalho é uma bandeira histórica da classe trabalhadora no mundo e é a gênese da organização sindical. É uma luta de extrema importância para a classe trabalhadora que luta por tempo de vida fora do trabalho, que lhe permita participar de outros espaços (familiares, sociais, políticos, religiosos, culturais etc.). Além disso, há sinergia estreita entre a pauta da redução da jornada de trabalho remunerado com a necessidade de tempo para o trabalho de cuidados de crianças e/ou pessoas doentes, enfermas e idosas. Neste caso, há um viés forte de gênero, porque são as mulheres as principais responsáveis pelo trabalho não remunerado e terminam com jornadas totais de trabalho bastante elevadas.

Mesmo com os avanços tecnológicos, uma parte expressiva da classe trabalhadora mundial ainda cumpre jornadas superiores a 48 horas semanais, enquanto outra enfrenta condições de subemprego, com jornadas insuficientes que não garantem sequer a sobrevivência. No Brasil, de acordo com a RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) de 2023, 74,1% das pessoas empregadas sob o regime celetista (com acesso a direitos trabalhistas) trabalham 40 horas ou mais por semana. Entre todas as pessoas ocupadas (com ou sem direitos), de acordo com os dados 2ºT de 2024 da PNADc, o percentual é semelhante: 76,4%.

Embora as mulheres representem um percentual menor entre as pessoas ocupadas em jornadas acima de 40 horas semanais (71,7% entre mulheres brancas e 65,7% entre mulheres negras), elas são penalizadas pelo elevado número de horas dedicadas ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerados, que somam cerca de 21 horas semanais. A redução da jornada de trabalho poderia beneficiá-las de várias formas. Por serem maioria entre as desempregadas, a medida pode contribuir para a criação de mais postos de trabalho. Jornadas mais curtas também podem estimular uma maior participação dos homens nas tarefas domésticas, aliviando a carga das mulheres. Além disso, setores onde as mulheres predominam – como indústria, comércio e serviços – frequentemente não permitem acordos de compensação de horas, obrigando-as a trabalhar seis dias por semana com apenas um dia de folga, muitas vezes alternado.

Os dados sobre o uso do tempo no Brasil [1] revelam diferenças significativas no tempo despendido por homens e mulheres na realização de afazeres domésticos e de cuidado, mesmo quando consideradas as jornadas de trabalho remunerado de cada um. Enquanto mulheres brancas e negras que trabalham em jornadas de 40 a 44h semanais gastam, em média, 15 horas e 47 minutos e 16 horas e 38 minutos semanais, respectivamente, nos trabalhos não remunerados, homens brancos e negros com a mesma jornada laboral gastam 11 horas e 46 minutos e 11 horas 34 minutos, respectivamente. Para as mulheres que trabalham 49 horas semanais ou mais, as jornadas conjuntas de trabalho pago e não pago chegam a 65,5 horas, para as mulheres brancas, e 67 horas e 40 minutos, para as negras (IBGE, 2023). A sobrecarga das mulheres que conciliam extensivas jornadas de trabalho com o cuidado e afazeres domésticos as coloca em um ritmo médio de quase 10 horas de trabalho/dia. Nesse sentido, a redução da jornada de trabalho se coloca como um imperativo para a garantia da saúde e qualidade de vida de muitas mulheres, que, por necessidade econômica, encararam jornadas exaustivas por longos períodos de suas vidas.

Apesar de o IBGE não perguntar aos entrevistados sobre a quantidade de dias habitualmente trabalhados na semana, é possível observar os dados sobre trabalho de cuidado para as mulheres com ocupações em que há maior ocorrência da escala 6×1. Dentre as ocupações que respondem por pelo menos 50% da mão de obra feminina [2], as mulheres alocadas naquelas em que a escala 6×1 é mais comum [3] e em regimes de pelo menos 40 horas semanais despendem 16 horas e 58 minutos semanais com tarefas de cuidado. Nesse cenário hipotético, uma mulher que trabalhe 44 horas por semana no regime 6×1 (portanto, 7 horas e 20 minutos por dia com mais uma hora de intervalo durante o expediente) e decida aproveitar integralmente seu dia de folga precisa trabalhar pelo menos mais 2h50min por dia em trabalho de cuidado, acumulando uma dupla jornada de 11 horas e 10 minutos por seis dias da semana, sem contar com o tempo de deslocamento – que, nos centros urbanos, pode chegar a 2 ou 3 horas diárias.

A redução da jornada de trabalho é uma resposta necessária diante de uma sociedade que tende a absorver cada vez menos trabalho vivo. As tecnologias, historicamente, eliminaram postos de trabalho, e os novos investimentos não geram empregos na intensidade necessária. Atualmente, as novas fronteiras tecnológicas dissolvem padrões de trabalho tradicionalmente associados a diversas ocupações. Reduzir o tempo de trabalho necessário é a única maneira de enfrentar os problemas estruturais do trabalho no capitalismo.

Ao discutir a redução da jornada de trabalho, é crucial considerar dois aspectos centrais. (i) tendências de flexibilização do trabalho: desde os anos 1970, essas tendências, intensificadas nas décadas de 1980 e 1990, são uma resposta à inserção de economias periféricas em uma lógica internacional baseada na competitividade espúria. Essa dinâmica busca reduzir custos trabalhistas, flexibilizar contratos e retirar direitos, contribuindo para um cenário em que mais de 50% das ocupações no Brasil são informais; (ii) enfrentamento da falta estrutural de trabalho: com inovações tecnológicas poupadoras de mão de obra, o crescimento econômico, embora necessário, não é suficiente para gerar empregos decentes para toda a força de trabalho disponível. É essencial garantir ocupações socialmente relevantes para o coletivo, além do circuito de acumulação capitalista.

A discussão já vem sendo realizada em outros países do mundo e leva em consideração os efeitos de aumento da produtividade proporcionados pela informatização, e pelas novas tecnologias. Pode-se destacar alguns possíveis impactos da redução da jornada de trabalho, como: o aumento da demanda por trabalho, considerando que seriam contratadas mais pessoas para cumprirem os dias de trabalho semanais, o que pode beneficiar as mulheres, que têm menor participação na força de trabalho em função de sua maior responsabilidade com trabalho não remunerado (afazeres domésticos e cuidados). Atualmente, a taxa de participação total no mercado de trabalho brasileiro (relação entre população ocupada mais população que está procurando emprego em relação à população em idade ativa) é de 62,1%, sendo que a taxa de participação dos homens é de 72,3% e a das mulheres 52,6%. Em relação ao nível de ocupação (relação entre população ocupada e população em idade ativa), no Brasil é de 57,8%, sendo que entre os homens chega a 68,3% e entre as mulheres apenas 48,1%. As mulheres também sofrem mais com desemprego. A taxa de desocupação, que chegou a níveis bastante baixos, 6,9%, é menor para os homens, 5,6%, que para as mulheres, 8,6%.

A maior participação dos homens no mercado de trabalho remunerado é representada pela jornada de trabalho remunerada média total, que é de 39,2 horas semanais, sendo a dos homens de 41 horas e para as mulheres de 36,9 horas. Esta diferença reproduz o fato de as mulheres estarem mais frequentemente em trabalhos de meio período e de horários flexíveis, o que lhes possibilita cumprir a jornada de trabalho não remunerada. Se analisarmos o total de trabalhadores formais no país, a maior parte, 79,5%, está alocada em atividades com jornadas acima de 40 horas, trabalhando em comércio (26,8%), indústria (21,5%), e em atividades ligadas à informação, comunicação e atividades financeiras, mobiliárias, profissionais e administrativas (18,8%). Se a jornada for reduzida para 40 horas semanais, estima-se que haverá um aumento de 3 milhões de novos postos de trabalho, contribuindo para uma possível redução do desemprego e da própria informalidade, com a perspectiva de geração de empregos em ocupações mais protegidas, o que significa melhores condições de trabalho e garantia de direitos. Atualmente no Brasil, cerca de 40 milhões de pessoas estão trabalhando na informalidade. Devemos considerar ainda que o aumento do emprego tem impacto positivo sobre o consumo e, portanto, sobre produção e PIB.

Um segundo impacto importante a se destacar está relacionado à sustentabilidade da previdência social. O aumento do emprego geraria redução de despesas e aumento da arrecadação previdenciária e da assistência social. As despesas previdenciárias no Brasil correspondem a 50% das despesas primárias da União. Isto porque a alta informalidade e a baixa participação de mulheres no mercado de trabalho, reduzem a arrecadação e pressionam as despesas. Além disso, as jornadas mais extensas de trabalho têm impacto sobre as despesas previdenciárias em consequência do maior adoecimento decorrente das longas jornadas.

Terceiro impacto seria a melhoria na qualidade de vida da classe trabalhadora e a redução da perda de produtividade por esgotamento profissional. A escala 6×1 dificulta a compatibilização entre a vida pessoal e familiar e a profissional, considerando-se ainda que a maior parte das atividades de lazer, encontros com amigos e intervalos escolares ocorrem nos finais de semana. Além disso, o maior envelhecimento da população e a redução do tamanho das famílias têm gerado maior carga de cuidados para menor número de familiares. Isso conjugado a uma legislação trabalhista brasileira bastante restritiva em relação às faltas previstas para acompanhamento de filhos e familiares doentes, faz com que pessoas com familiares que demandam cuidados (crianças, pessoas idosas, enfermas ou com incapacidades) fiquem fora do mercado de trabalho formal. A maior parte dessas pessoas são de mulheres e principalmente de famílias de menor renda.

Importante destacar ainda que esta política é importante para melhorar a qualidade do emprego, mas não é suficiente. Isto porque há pressões por aumento da jornada de trabalho em categorias específicas como bancários e professores, que têm jornada menores. Por outro lado, para a efetivação da política é necessária uma maior fiscalização nos locais de trabalho, para combater fraudes nas políticas de terceirização de empresas (contratação de MEI, cooperativas de trabalho, pessoa jurídica) com a finalidade de redução dos custos trabalhistas. É necessário fortalecer os sindicatos para reduzir a pressão por acordos com previsão de bancos de horas.

A redução da jornada de trabalho deve ser recolocada como tema central para a geração e distribuição de empregos. Os avanços tecnológicos já permitem, em termos técnicos, essa redução. Contudo, como ocorre historicamente no capitalismo, a questão é política e ideológica.

A defesa da redução da jornada pode estar associada ao debate mais amplo sobre a distribuição do tempo entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado, além da divisão das responsabilidades familiares entre todos os seus membros. Considerando que as mulheres realizam parcelas maiores de trabalho não remunerado, é importante que se busquem formas de evitar que a redução das jornadas laborais ocasione um redirecionamento destas horas livres para mais trabalho de cuidado não pago. Assim, a discussão deve ir além da redução das jornadas e pensar estratégias para garantir que esse movimento traga mais tempo livre para todas e todos – não apenas para metade da sociedade. Trata-se, portanto, de um debate político que deve ser abordado como estratégia para enfrentar os graves problemas de emprego, pobreza, desigualdade e precariedade que afetam a maioria da classe trabalhadora.

Reduzir a jornada de trabalho significa ampliar o tempo livre para que as pessoas possam viver com dignidade e qualidade de vida.

Notas

[1] As médias de horas semanais despendidas em atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos foram calculadas utilizando os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc) de 2022, a partir da pesquisa suplementar “Outras Formas de Trabalho”.

[2] Conforme o Cadastro de Ocupações Domiciliares (COD), da PNAD Contínua, estes são: trabalhadoras dos serviços domésticos em geral; escriturários gerais; balconistas e vendedoras de lojas, trabalhadoras de limpeza de interior de edifícios, escritórios, hotéis e outros estabelecimentos; comerciantes de lojas; especialistas em tratamento de beleza e afins; professoras do ensino fundamental, cozinheiras; cuidadoras de crianças; profissionais de nível médio de enfermagem; caixas e expedidoras de bilhetes, recepcionistas em geral; professoras do ensino pré-escolar; trabalhadoras de cuidados pessoais a domicílios e vendedoras a domicílio.

[3] Dentre as ocupações mais presentes, foram selecionadas: balconistas e vendedoras de lojas, trabalhadoras de limpeza de interior de edifícios, escritórios, hotéis e outros estabelecimentos; comerciantes de lojas; especialistas em tratamento de beleza e afins; cozinheiras; cuidadoras de crianças; profissionais de nível médio de enfermagem; caixas e expedidoras de bilhetes, recepcionistas em geral; trabalhadoras de cuidados pessoais a domicílios e vendedoras em domicílio.

Autor é  ….

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *