Envelhecimento populacional e desigualdade de gênero nos cuidados: a contribuição dos sindicatos para a redistribuição justa

envelhecimento populacional
Legenda

Cristina Pereira Vieceli e Anelise Manganeli

Os últimos anos foram marcados pelo anúncio de duas políticas importantes na pauta de gênero no Brasil: a de igualdade salarial, Lei 14.611/2023, e a criação do Grupo Interministerial para a elaboração da Política Nacional de cuidados. O programa ainda não foi anunciado oficialmente, mas cujas discussões permeiam a sociedade civil. Não é à toa que os trabalhos de cuidados e a igualdade salarial por gênero sejam discutidos paralelamente. Isto porque, as mulheres são as principais ofertantes dessas atividades, que são exercidas de forma não remunerada e remunerada. Por consequência, a população feminina sofre penalizações tanto em termos salariais e participação laboral como também de escassez de tempo, haja vista as duplas e triplas jornadas de trabalho.

A questão dos cuidados se entrecruza com a vida laboral feminina, fator que permanece constante desde a infância até a velhice. As mulheres são transferidoras líquidas de cuidados, ou seja, exercem mais cuidados do que recebem durante toda a sua vida laboral, os homens, por sua vez, são receptores líquidos dessas atividades[1] (De Jesus, 2018). Essa dinâmica se torna ainda mais complexa considerando o envelhecimento populacional, e a necessidade cada vez maior de cuidados especiais com a população idosa.

No Brasil, o sistema de relações de cuidados, ou seja, a estrutura como o país se organiza para ofertar estes trabalhos, – através do mercado, famílias, Estado ou comunidade, – é baseado principalmente nas famílias, e, dentre estas, no trabalho das mulheres. Além disso, a legislação brasileira é falha no acesso aos tempos de cuidados, ou seja, à garantia que as pessoas responsáveis pelos cuidados terão plena segurança de exercê-los sem prejuízo laboral.

Dentre as políticas a serem adotadas para a elaboração de um sistema integral de cuidados está a política de tempos, que se referem às licenças em razão de nascimento e as licenças para acompanhamento de dependentes[2]. Além de não possuirmos uma legislação igualitária em termos de gênero no acesso à licença maternidade e paternidade, considerando as diferenças entre os tempos de licença, o direito a faltas para acompanhamento de dependentes que necessitam de cuidados é bastante restrito. Esse direito é regido pelo artigo 473 da CLT, que trata sobre as diversas possíveis faltas do trabalhador(a) sem prejuízo salarial, o inciso XI possibilita a falta “por um dia por ano para acompanhar filho de até seis anos em consulta médica”[3]. Além disso, há possibilidade de faltas no caso de falecimento de cônjuge em até dois dias (inciso I); cinco dias no caso de nascimento de filho, de adoção ou de guarda compartilhada; acompanhamento do cônjuge ou companheiro em até seis consultas médicas, ou exames complementares, durante o período de gravidez (inciso XI).

Ou seja, além da legislação garantir poucos dias de faltas com a finalidade de saúde no caso de crianças e gestantes, não há nenhuma prescrição legal para acompanhamento de pessoas idosas. Vale lembrar ainda que a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) indica a necessidade de consultas mensais ao pediatra nos primeiros seis meses de vida da criança, bimensais dos seis meses ao primeiro ano de idade, trimestrais dos 12 aos 18 meses, semestrais dos 18 meses aos cinco anos e anuais somente a partir do quinto ano de vida[4]. A legislação, portanto, não supre a garantia de oferta de cuidados da população.

Embora o trabalhador homem possa reivindicar um atestado médico para acompanhar dependentes, ele ainda enfrenta a necessidade de garantir que esse atestado seja aceito pelo empregador. Não é raro que empregadores questionem essa justificativa, o que acaba desestimulando os homens a participarem das atividades de cuidado. Esse cenário, apesar de também afetar as mulheres, não impede que elas assumam a responsabilidade por completo, garantindo o acompanhamento e arcando com as consequências, muitas vezes sozinhas. Nesse sentido, é inviável a discussão sobre políticas de gênero voltadas para igualdade salarial e de oportunidades sem se discutir o reconhecimento e a redistribuição dos trabalhos de cuidados.

Nesse âmbito os sindicatos possuem um papel extremamente importante, considerando a possibilidade de avanços nos direitos nos Acordos e Convenções Coletivas de Trabalho. Sobre este ponto, uma recente pesquisa elaborada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), faz um levantamento sobre as cláusulas dos acordos coletivos de trabalho que tratam sobre gênero[5]. O estudo aponta que, dentre as 2.286 mesas de negociações analisadas entre os anos de 2014 e 2022, cerca de 35% registraram cláusulas sobre o tema das faltas. Houve avanços, mas qual é o problema? Muitas vezes, as cláusulas apenas ampliam o número de dias de ausência ou reforçam direitos já previstos na CLT. Embora isso seja relevante no contexto atual, considerando a prevalência do negociado sobre o legislado e a constante pressão por reformas trabalhistas, essas medidas ainda são insuficientes para garantir uma proteção adequada aos trabalhadores em questões de cuidado.

Os principais setores que trataram sobre o tema nas cláusulas foram comércio, que abarcou 38,2% do total das cláusulas em 2022 e serviços 38,1%, ou seja, setores cuja participação feminina é majoritária, a indústria permaneceu na terceira posição compreendendo 33,5% das cláusulas. Em termos de conteúdo, as cláusulas trataram principalmente sobre abonos de falta para acompanhamento de filho ou dependente por motivos educacionais, e motivos de saúde, relativos ao acompanhamento para consultas médicas e odontológicas. Ou seja, há poucas evidências das questões relativas aos cuidados com idosos.

Acerca dos cuidados específicos com idosos cabe ressaltar ainda que a legislação trabalhista oferece nenhuma previsão para o acompanhamento de pais idosos em tratamentos de saúde ou outros cuidados diários. Esse fato é preocupante, porque pressiona a arranjos individuais que aumentam a jornada de trabalho não remunerada das mulheres. Segundo o Censo de 2022, realizado pelo IBGE, o número de pessoas com 65 anos ou mais aumentou 57,4% em doze anos. A população idosa com 60 anos ou mais chegou a 32,1 milhões, representando 15,8% da população total, um crescimento de 56% em relação a 2010, quando esse grupo era de 20,5 milhões (10,8%). A idade mediana da população brasileira subiu de 29 para 35 anos no mesmo período, revelando um envelhecimento progressivo da sociedade e a tendência de inversão da pirâmide etária, onde, até 2030, o número de idosos superará o de jovens com até 14 anos.

Entre 2000 e 2023, a proporção de idosos na população praticamente dobrou, passando de 8,7% para 15,6%. Em 2070, estima-se que 37,8% dos brasileiros serão idosos. Com famílias cada vez menores, a sobrecarga dos cuidados recai, sobretudo, sobre as mulheres, que ainda assumem esse papel de maneira predominante. Se hoje você tem cerca de 40 anos e uma filha de 10, em 2070, ela terá 56 anos, e, hipoteticamente, se não houver mais reformas na previdência que retardem sua aposentadoria, ela ainda estará no mercado de trabalho por pelo menos seis anos. É possível que ela tenha filhos adolescentes e pais entre 85 e 95 anos sob sua responsabilidade. Como essa realidade será viabilizada? Embora a projeção seja para 2070, esse cenário já acontece atualmente; a diferença é que, no futuro, afetará uma parcela ainda maior da população – mais da metade- considerando assistidos e quem deverá prestar a assistência.

Dados do Ministério dos Direitos Humanos mostram um aumento expressivo nas denúncias de abandono de idosos no Brasil. Em 2023, foram registrados 22.636 casos, em comparação aos 11.359 de 2022. Para resolver esse problema de forma eficaz, não basta criar políticas de conscientização contra o abandono; é essencial implementar medidas que promovam uma cultura de cuidado – responsabilidade tanto de homens quanto de mulheres, mas também do Estado, da comunidade e das empresas. Para que essa cultura seja concretizada, é crucial garantir meios para que isso aconteça. O cuidado com os ascendentes é um dever constitucional, e essa dedicação não deve recair desproporcionalmente sobre um único gênero. Além disso, o Estado deve promover uma conciliação entre as demandas de cuidado e o mercado de trabalho, universalizando o acesso ao direito de cuidar e ser cuidado, por meio de normativas e serviços adequados.

As normas do mercado de trabalho precisam estar cada vez mais alinhadas com o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003), que, por exemplo, assegura o direito ao acompanhante em casos de hospitalização, como previsto no artigo 16. Alguém que ainda não tenha enfrentado a necessidade de cuidar de idosos pode se perguntar: “Mas por que, se há médicos e enfermeiros no hospital?” Estudos mostram que idosos acompanhados durante doenças se recuperam mais rapidamente do que aqueles que enfrentam a enfermidade sozinhos. O suporte emocional e social oferecido por familiares ou cuidadores tem um impacto significativo no bem-estar físico e psicológico, melhorando a adesão ao tratamento, aumentando a motivação para a recuperação e reduzindo o risco de complicações como depressão e ansiedade. Sentimentos de solidão afetam negativamente o sistema imunológico. Mas como esse idoso contará com esse suporte se o descendente não pode se ausentar do trabalho para acompanhá-lo?

Diante disso, acerca da atuação sindical, cláusulas que garantam o abono de faltas para o acompanhamento de consultas médicas e hospitalização de ascendentes são urgentemente necessárias. Elas estão embasadas em princípios éticos, morais e legais que reconhecem a dignidade e o valor de cada pessoa. Baseiam-se em razões como reconhecimento e gratidão, solidariedade intergeracional, direitos humanos e justiça social e de gênero. Não é porque alguém envelheceu que deve ser marginalizado ou desprotegido e não é dever apenas das mulheres socorrer. Garantir uma vida digna em todas as fases é uma responsabilidade coletiva, e as convenções coletivas de trabalho devem colaborar para esse objetivo.

Referências

[1] De Jesus, Cristina. Trabalho doméstico não remunerado no Brasil: uma análise de produção, consumo e transferência. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional. Belo Horizonte, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/FACE-B27PW9/1/ppgdemografia_jordanacristinajesus_tesedoutorado.pdf

[2] Governo Federal. Lançamento GTI para a Elaboração da Política Nacional de Cuidados. Disponível em: https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_Cuidados_e_Familia/Arquivos/Cartilha/Cartilha.pdf

[3] Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Artigo 473: https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/busca?q=art.+473+consolida%C3%A7%C3%A3o+das+leis+do+trabalho&utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=lr_dsa_legislacao&utm_term=&utm_content=legislacao&campaign=true&gad_source=1&gclid=Cj0KCQjwyL24BhCtARIsALo0fSBhskgyXlwOlLhM-njX5DmeDf09YY4hLy-8S9l-KFmbczQkiUSCd0MaAin_EALw_wcB

[4] https://www.sbp.com.br/especiais/pediatria-para-familias/cuidados-com-a-saude/consulta-de-puericultura/

[5] https://www.dieese.org.br/pesquisaDIEESE/2024/igualdadeGenero.pdf

 

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, Visiting Fellow no Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, colunista do site DMT .

Anelise Manganelli é economista, Mestre em Economia pela PUCRS, tem especialização em Gestão Estratégica em Políticas pela Unicamp e Economia do Trabalho pela escola DIEESE. Atua em análises e estudos com ênfase em mercado de trabalho, políticas públicas e desenvolvimento econômico. Trabalha como Técnica no DIEESE e integra o Núcleo de Análise da Política Econômica (NAPE/FCE – UFRGS).

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