
Quem representa os trabalhadores hoje? O que resta do sindicalismo tradicional diante de novas morfologias do trabalho?
Renato Koch Colomby
No dia 1º de Maio de 2025, enquanto o calendário celebrava o Dia Internacional das Trabalhadoras e dos Trabalhadores, as lojas da rede Zaffari em Porto Alegre foram palco de um movimento que expressa algo muito além do dissenso pontual. A paralisação de mais de 350 trabalhadores — organizada fora das estruturas sindicais tradicionais — denunciou não apenas condições degradantes de trabalho, mas também a erosão de legitimidades no campo da representação, a crise do sindicalismo formal e a resistência cotidiana frente à intensificação da precarização no setor do varejo.
O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região reconheceu a legitimidade da greve e proibiu demissões e descontos salariais antes de uma negociação. Ainda assim, o que se viu nas lojas foi repressão simbólica e física, controle interno, intimidações e o uso da vigilância como instrumento de coerção — práticas que têm se tornado comuns nas organizações empresariais contemporâneas (BOURDIEU, 1999; DEJOURS, 2006).
O setor supermercadista e a lógica da intensificação
A greve se insere em um contexto mais amplo. O setor supermercadista brasileiro, mesmo com crescimento expressivo de receitas, mantém uma estrutura ocupacional marcada por salários baixos, alta rotatividade e jornadas exaustivas. Segundo a Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), há mais de 357 mil vagas abertas no setor — um dado que, longe de indicar expansão, revela dificuldade crônica de retenção da força de trabalho.
A principal razão? A permanência de modelos como a escala 6×1, jornadas superiores a 8 horas diárias e ausência de garantias básicas como pausas adequadas e remuneração justa. Pesquisa do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro (SECRJ, 2025) mostra que 72% dos trabalhadores do setor recebem até R$ 2.120,00, e 93% são favoráveis à substituição da escala 6×1 por jornadas mais equilibradas, evidenciando os impactos sobre a saúde mental, vida familiar e sociabilidade.
A resposta empresarial à escassez de mão de obra tem sido ilustrativa: o recrutamento de egressos das Forças Armadas — como ex-integrantes da Marinha e dos Fuzileiros Navais — em programas de inserção direta nas redes supermercadistas. A estratégia, já em curso no Rio de Janeiro, recorre à formação disciplinar desses trabalhadores para suprir funções operacionais com baixa atratividade.
Esse fenômeno pode ser entendido enquanto uma “militarização do varejo” — uma tentativa de internalizar lógicas hierárquicas e de obediência próprias do campo militar no cotidiano do trabalho comercial. Embora essa não seja uma formulação literal de Ricardo Antunes, ela dialoga diretamente com sua análise sobre a intensificação do controle, da vigilância e da servidão consentida no novo proletariado de serviços (ANTUNES, 2018). Nessa lógica, as formas empresariais de gestão se aproximam de modelos autoritários, moldando subjetividades a partir de um regime de metas, punições e invisibilidade política — especialmente nos setores de base da economia urbana.
A crítica ao sindicalismo e a emergência de novas formas de organização
Entre as singularidades da greve está a dissociação em relação ao sindicato oficial da categoria, o Sindec-POA. Rejeitado por significativa parte dos grevistas, o sindicato é acusado de manter acordos “a portas fechadas” com a empresa, sem consulta à base. A categoria recupera, assim, a expressão histórica “pelego”, oriunda do sindicalismo atrelado ao Estado no período Vargas — um dirigente que, em vez de representar, atua como amortecedor dos conflitos (KREIN, 2007; OLIVEIRA, 2003).
Como bem analisa José Dari Krein (2007), o modelo sindical brasileiro ainda carrega traços do sindicalismo corporativo, dependente do reconhecimento estatal e do monopólio da representação. Isso tem gerado, nas últimas décadas, uma crise de legitimidade, especialmente diante das novas configurações do trabalho — mais instáveis, individualizadas e desprotegidas.
Nesse vácuo representativo, emerge a União dos Trabalhadores do Zaffari — coletivo autônomo que articula trabalhadores por meio das redes sociais, organiza pautas, mobiliza solidariedade e coordena ações diretas. Esse tipo de organização se aproxima do que Dejours (2015) chama de “micropolítica do trabalho”, em que a resistência não vem da estrutura, mas do cotidiano, das brechas, da reinvenção pela base.
Reivindicações que desafiam a gestão contemporânea
As demandas da greve não são novas, mas sua centralidade é reveladora:
- Aumento de 100% nos salários;
- Escala 5×2, com ao menos um fim de semana livre;
- Jornada máxima de 40h semanais;
- Fim das horas extras obrigatórias;
- Respeito ao direito de ir ao banheiro;
- Fim da manipulação do banco de horas;
- Fornecimento de EPIs adequados sem ônus ao trabalhador.
Essas reivindicações escancaram o quanto as práticas empresariais se distanciam das garantias mínimas previstas na legislação e evidenciam a persistência de uma lógica que transforma o corpo do trabalhador em instrumento a ser exaurido até o limite (SOUZA-E-SILVA & MARQUES, 2012).
A paralisação é, assim, mais do que uma reação conjuntural: é a recusa em continuar funcionando dentro de uma engrenagem que exige tudo e oferece pouco. É o que Bourdieu (1999) chamaria de um gesto de desnaturalização — a recusa a aceitar o “óbvio” como destino.
Solidariedade e visibilidade
A greve encontrou eco. Clientes manifestaram apoio nas redes sociais, vídeos viralizaram, boicotes foram propostos e uma vaquinha solidária foi criada. A greve extrapolou os corredores do supermercado: tornou-se símbolo de uma recusa coletiva à precarização como norma.
Trata-se de uma mobilização híbrida, onde o chão da loja encontra o espaço virtual, e onde a solidariedade entre consumidores e trabalhadores assume papel central. Essa configuração confirma o que autores como Dardot e Laval (2016) têm chamado de novas formas de subjetivação política, que não se organizam apenas por estruturas verticais, mas por redes de afeto, reconhecimento e construção coletiva de sentido.
Considerações finais
A greve no Zaffari nos obriga a pensar: quem representa os trabalhadores hoje? O que resta do sindicalismo tradicional diante de novas morfologias do trabalho? Como disputar dignidade em espaços onde a precarização é institucionalizada e estetizada?
Mais do que um conflito localizado, essa mobilização projeta luz sobre as tensões estruturais do mundo do trabalho contemporâneo no Brasil: entre capital e representação, entre silêncio e visibilidade, entre gestão e resistência.
Num país onde o trabalho segue marcado por exploração e silenciamento, a greve não é só ruptura: é reexistência coletiva diante da precarização normalizada.
Referências
ANTUNES, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo.
BOURDIEU, P. (1999). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo.
DEJOURS, C. (2006). A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV.
DEJOURS, C. (2015). Subjetividade, trabalho e ação. Brasília: Paralelo 15.
KREIN, J. D. (2007). As transformações no sindicalismo brasileiro e o novo sindicalismo. Revista da ABET, n. 6.
OLIVEIRA, F. de. (2003). Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo.
SECRJ. (2025). Pesquisa sobre condições de trabalho no setor supermercadista do Rio de Janeiro. Observatório do Estado Social Brasileiro.
SOUZA-E-SILVA, M. C. de; MARQUES, R. M. (2012). Gestão do sofrimento no trabalho e estratégias de resistência. Psicologia & Sociedade, v. 24, n. 1.
Renato Koch Colomby é gaúcho, professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR – Campus Palmas), diretor de Extensão, Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação e editor-chefe da Conexos – Revista de Estudos Interdisciplinares. Doutor e mestre em Administração pela UFRGS, é líder do Grupo de Pesquisa NEPT – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Organizações e Pessoas e integra a coordenação do tema “Trabalho, Organizações e Subjetividade” na ANPAD. Atua com ênfase nas relações entre trabalho, subjetividade e políticas públicas.